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Complexidade pelo Ruído

Capítulo 2: A Auto-organização de Henri Atlan e Edgar Morin

2.2. A Ordem a Partir do Ruído de Henri Atlan

2.2.1. Complexidade pelo Ruído

Comecemos com as definições de Henri Atlan para “organização” e “complexidade”, quando aplicadas a sistemas biológicos. Repetição, regularidade, redundância parecem ser contrapostas pelo autor a outros ingredientes presentes em organizações dinâmicas: variedade, imprevisibilidade, contingência e complexidade. A “organização” estaria vagamente relacionada a um tipo de ordenamento, uma estrutura; “complexidade” representaria a plasticidade de um organismo.

A organização – entendida, por Atlan, como estrutura e invariância – é o que deve ser legado a gerações seguintes dos seres vivos. Para além, a idéia de repetição

“What is necessary that life and intelligence should appear? The answer is not carbon, or amino acids

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or any other special feature but only that the dynamic laws of the process should be unchanging, i.e. that the system should de isolated. In any isolated system, life and intelligence inevitably develop (they may, in degenerate cases, develop to only zero degree)” (Ashby, 1962, p. 272).

Veremos brevemente o papel da memória nos processos de auto-organização conforme

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desenvolvimentos de Debrun (Seção 3.3.1.2) e, mais particularmente, a relação da memória com a consolidação da Nação e da Identidade Nacional, na Seção 4.4.

invariante da estrutura traz em seu bojo um componente teleológico , visto que a 14

sucessão geracional simplesmente atualiza conteúdos pré-existentes nos organismos vivos.

“A teleologia – raciocínio através das causas finais – é como uma mulher sem a qual o biólogo não consegue viver, mas com quem tem vergonha de ser visto em público” (Atlan, 1993, p. 17). Jacques Monod utiliza o conceito de teleonomia, substituindo a teleologia ou o finalismo: um processo teleonômico não funcionaria em virtude das causas finais, apesar de ter esta aparência e embora pareça orientado para a realização de formas que só se evidenciariam ao final do processo. O que o determinaria, de fato, seria a realização de um programa (contido no genoma) causalmente determinado pela sequência de estados pelos quais o organismo passou.

Para sermos mais precisos, optaremos por definir, arbitrariamente, o projeto teleonômico essencial como o que consiste na transmissão, de uma geração a outra, do conteúdo de invariância característico da espécie. Todas as estruturas, todas as funções, todas as atividades que contribuem para o sucesso do projeto essencial, serão portanto designadas por “teleonômicas”. (Monod, 2002, p. 19) 15

Esta definição de teleonomia por Monod contribuiu decisivamente para o estabelecimento do “Dogma Central” da biologia molecular, segundo o qual a síntese das proteínas consiste na transmissão e tradução da informação codificada nas cadeias de DNA sob a forma de sequências de bases nucleotídicas. É de se notar a universalidade do código de correspondência entre as sequências nucleotídicas dos genes e as sequências de aminoácidos das proteínas. O “Dogma Central” traz em seu bojo um duplo caráter: por um lado, a redução dos fenômenos da vida a reações físico- químicas; por outro, a necessidade de incorporação, na física e na química, de todo um conjunto de noções cibernéticas (programa, código, informação). Desta maneira, trata- se de uma redução do fenômeno vivo a uma físico-química ampliada – justamente a chamada físico-química biológica. O que diferencia a físico-química biológica da outra

Cabe notar que, ao contrário do que afirma o autor, a repetição estrutural é condição necessária mas não

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suficiente para componentes teleológicos: existem estruturas que se repetem como carimbos no papel

sem a teleologia.

“Pour être plus précis, nous choisirons arbitrairement de définir le projet téléonomique essentiel comme

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consistant dans la transmission, d’une génération à l’autre, du contenu d’invariance caractéristique de l’espèce. Toutes les structures, toutes les performances, toutes les activités qui contribuent au succès du projet essentiel seront donc dites ‘téléonomiques’” (Monod, 1979, p. 27).

físico-química e a aproxima da lógica das relações psicossociais é a complexidade do “projeto essencial”, do ser vivo.

Programa, código, informação, transcrição, mensagem, tradução: todo esse vocabulário da biologia molecular é diretamente importado da descrição das comunicações entre seres humanos. Portanto, é a uma física repintada nas cores da psicologia que a biologia foi reduzida! Na realidade, sabemos que houve um intermediário, e que esse intermediário foi... a cibernética, essa disciplina que, justamente, adotara como objetivo “derrubar a muralha que separa o magnífico mundo da física do gueto da mente”, para retomar os termos líricos de Warren McCulloch. (Dupuy, 1996, p. 96) 16

Entretanto, faz-se necessário questionar, “primeiramente, de fato, de que programa se trata? Trata-se, a rigor, de uma metáfora” (Atlan, 1993, p. 18), e uma metáfora (bem-sucedida, diga-se de passagem) que leva a um reducionismo genético que já vem se enfraquecendo, mas que foi dominante nas posturas intelectuais do final do século 20. Em seu artigo de 1998 (Intentional Self-Organization, presente na coletânea Atlan (2011)), o autor afirma que parte importante das funções biológicas é devida à dinâmica metabólica das regulações citoplasmáticas, levando a diferentes padrões de atividade do genoma em diferentes situações e células.

[…] nenhuma das metáforas DNA-como-programa ou DNA-como- dado deveria ser tomada literalmente, já que uma visão mais realística da célula deveria ser a de uma rede em evolução de reações metabólicas na qual um dado padrão da atividade genética determina a estrutura da rede metabólica; a dinâmica dessa rede pode levar a um estado estável temporário, capaz, por sua vez, de modificar o padrão de atividade genética, e assim por diante. (tradução nossa)17 18,

A questão da evolução das espécies também passou por um processo de questionamento: segundo o esquema geral do neo-darwinismo, mutações ocorridas ao

“Programme, code, information, transcription, message, traduction: tout ce vocabulaire de la biologie

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moléculaire est directement importé de la description des communications entre êtres humains. C’est donc à une physique repeinte aux couleurs de la psychologie qu’a été réduite la biologie! En réalité, on sait qu’il y a eu un intermédiaire, et que cet intermédiaire est… la cybernétique, cette discipline qui, précisément, s’était donné pour objectif d’effondrer la muraille qui sépare le monde magnifique de la physique du ghetto de l’esprit, pour reprendre les termes lyriques de Warren McCulloch” (Dupuy, 1994, p. 77).

“[…] neither of the two metaphors, DNA as program and DNA as data, should be taken literally, since a

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more realistic view of the cell would be that of an evolving network of metabolic reactions, in which a given pattern of gene activity determines the structure of the metabolic network; the dynamics of this network can lead to a temporary steady state capable, in turn, to modifying the pattern of gene activity, and so on” (Atlan, 2011, p. 75).

Para mais sobre o assunto, ver Guimarães & Moreira (2000).

acaso produzindo mudanças nas características hereditárias de uma espécie – associadas à seleção decorrente de pressões devidas às restrições físicas e ecológicas do meio ambiente – favorecem os organismos mais adaptados que, sendo assim os mais fecundos, logo substituem as formas anteriores. Não está muito claro o modo pelo qual este mecanismo de seleção pela fecundidade pode acarretar um aumento progressivo (ou também possível “diminuição?”) de complexidade, bem como a aparente orientação da evolução, em direção a um aumento de complexidade (ou de possibilidades de autonomia, ou de organização).

Jacques Monod atribuiu o caráter pouco convincente deste modelo explicativo às insuficiências de nossa imaginação e de nosso senso comum, acostumados a serem aplicados a sistemas relativamente simples. Esta situação seria, para Monod, análoga ao que ocorre com a física quântica ou a relativista, casos em que nosso senso comum estaria acostumado a tratar o mundo físico imediato, mesoscópico, não nos fornecendo instrumentos de representação capazes de tratar do mundo microscópico de partículas-onda elementares ou aquele dominado por velocidades relativísticas. “Dado que nenhuma razão nos força a presumir que as mesmas categorias da representação sensorial sejam válidas em todos estes universos, concordamos em renunciar a essa representação concreta em prol de uma representação matemática, mais rigorosa” (Atlan, 1993, p. 23).

Isto nos leva à necessidade de estender a física e a química em novas dimensões em que os fenômenos do ser vivo encontrem lugar. Se a maioria dos biólogos moleculares utiliza noções cibernéticas, é para dar conta da finalidade observada na biologia, de um modo em que não seja necessária a invocação de causas finais; “ao contrário, a nova finalidade seria aceitável por provir, não de um idealismo teleológico, mas de um neomecanicismo” (Atlan, 1993, p. 22) . 19

Com efeito, a própria noção de máquina se modificou: anteriormente havia uma oposição entre máquina e sistema organizado, uma vez que a organização era

No Capítulo 3 veremos uma proposta concreta de Michel Debrun de neomecanicismo. Henri Atlan não

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nos apresenta uma conceituação explícita de neomecanicismo, mas é possível inferir que se trata da física clássica tomada em conjunto com a teoria da informação de Shannon (e consequentes noções introduzidas pela cibernética), além da diferença entre máquinas artificiais e naturais (estas últimas capazes de absorver ruído do meio; ver próxima Seção).

considerada característica irredutível da vida. As finalidades, também, eram impostas às máquinas por nós, não sendo dirigidas por processos de controle. Foi a cibernética que revolucionou as idéias de máquina e de organização, por meio das noções de controle, retroação, tratamento de informação, aplicadas às máquinas. A partir daí, opera-se uma inversão de coisas (que Atlan considera “justa”) com a aplicação dos conceitos provenientes do conhecimento dessas “máquinas organizadas” aos seres vivos, agora pensados como “máquinas naturais”.

Vê-se que essas questões vão muito além da clássica disputa sobre a possibilidade ou impossibilidade de reduzir a vida à físico-química. Essas questões sobre a lógica da organização buscam respostas simultaneamente válidas para os sistemas físico-químicos não-vivos e para os sistemas vivos. (Atlan, 1993, p. 23) 20

Esta simultaneidade implica não uma redução do vivo ao físico-químico,

mas uma ampliação deste para a biofísica dos sistemas organizados, simultaneamente

aplicável a máquinas artificiais e naturais, e os trabalhos sobre auto-organização rumam neste sentido. Quando, ao invés de “organismo”, tratamos o ser vivo como um “sistema auto-organizado” ou “autômato auto-reprodutor”, enfatizamos suas características cibernéticas particulares, ou seja: (a) sua especificidade está mais ligada a princípios organizacionais do que a propriedades vitais irredutíveis e, (b) tais princípios devem poder ser aplicados a autômatos artificiais.