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CAPÍTULO 4 PROCEDIMENTOS RACIONAIS E PROCESSOS DE

4.1 ESTRATÉGIAS DE PROTEÇÃO: RACIONALIDADES

4.1.4 Auto-proteção e racionalidade

A semelhança entre as estratégias dos taxistas recifenses e as indicações feitas aos australianos mostra que, independentemente de ser ou não tratada como assunto oficial, a violência é alvo de preocupação por parte dos entrevistados desta pesquisa e eles têm, em graus diferenciados, consciência do fato de que suas atitudes interferem na maior ou menor probabilidade de serem vitimizados.

As estratégias dos taxistas de Recife, desenvolvidas através de experiência e troca de informações, assemelham-se em muitos pontos às indicações dos manuais de segurança elaborados com base em pesquisas acadêmicas. O principal ponto que diferencia essas duas maneiras de delinear linhas de ação é que os manuais, aplicando racionalidades científicas que não fazem parte dos modos de pensar cotidianos, apresentam essas estratégias de maneira organizada e as relacionam mais claramente aos fatores que tornam o taxista vulnerável.

A criação desses padrões de ação parece estar guiada por racionalidades do tipo “comparação” (em que situações fui agredido? O que elas têm em comum entre si e com os relatos que ouvi? Que tipo de pessoas, lugares e procedimentos estiveram presentes nessas situações de agressão?), “busca de sentidos” (o que certas propriedades de um indivíduo representam para o meu trabalho e que sinais emitidos pelos indivíduos estão relacionados a tais propriedades?), “regras de procedimento” (o que é permitido fazer para sondar um passageiro, como proceder para negar ou encerrar uma corrida? Como monitorar o comportamento dos passageiros?) (GARFINKEL, 2006)

A maneira como esses elementos práticos serão aproveitados depende das habilidades cognitivas de cada taxista (as anteriores ao taxiar e também as que são desenvolvidas ma profissão)2.

Diante da percepção desses padrões e da racionalidade contida em sua delineação, surge uma segunda questão: até que ponto a ação dos taxistas é rotinizada, fruto de padrões? Um bom indicativo de que existem propriedades estáveis nas atividades da vida cotidiana, é o fato de que estes são padrões perceptíveis tanto pelos taxistas, como pelos maus passageiros,

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Gambetta e Hamill (2005:187) observam que não é fácil saber ao certo o quanto esses habilidades são desenvolvidas na profissão ou se o aparecimento de habilidades mais desenvolvidas em taxistas antigos pode ser resultado de uma espécie de seleção natural, pela qual, só durariam na profissão, os taxistas capazes de proteger- se, e portanto, de sentirem-se seguros.

que também os apreendem e, para ludibriar o taxista, procuram, ao máximo, adequar-se ao perfil esperado daquele que seria um bom passageiro.

Dessa maneira, por mais que seja importante e possa ajudar a um taxista a conhecer os riscos da profissão, ficar atento a eles e aprender certos padrões de como agir e de como avaliar corridas e passageiros, o acesso a manuais e treinamentos não é o suficiente para que um taxista tome decisões na prática, porque o conhecimento necessário para cada avaliação precisa ser acessado e avaliado a cada situação.

Além disso, é preciso lembrar que os taxistas têm interesse em levar passageiros, em assumir os riscos, pois é fazendo isso que podem ter o benefício associado a cada interação. Isso faz com que suas decisões sofram duas pressões díspares: produzir segurança (evitar corridas arriscadas) e produzir renda (fazer corridas) (GAMBETTA & HAMILL, 2005). Dessa maneira, fica claro que não é possível negar todos os passageiros com propriedades arriscadas ou recusar-se a passar por locais considerados perigosos, tornando-se necessário desenvolver a capacidade de flexibilizar esses padrões de ação a partir de cada situação real, levando em consideração que:

1- O estabelecimento de quais são as propriedades relevantes depende do contexto em que se atua. Categorizar de maneira genérica que mulheres são mais confiáveis que homens e que um grupo apresenta mais risco para um taxista que uma pessoa sozinha não é o suficiente para tomar uma decisão. Isso ficou claro ao longo das entrevistas, quando tentei apresentar alguns tipos de passageiros para observar como, respondendo sobre cada tipo, os taxistas poderiam criar uma espécie de escala de confiabilidade prévia3. Todos os taxistas responderam a essas questões de maneira reticente ou, após respondê-las, adiantaram-se em relativizar a categorização com exemplos de situações específicas. Tipos gerais são insuficientes para a avaliação dos taxistas porque negar todos os passageiros de um tipo geral considerado arriscado, provavelmente, fará o taxista terminar o dia no prejuízo e, por outro lado, tomar um passageiro como confiável muito rápido pode fazer o taxista ser enganado, como ocorre no caso dos mímicos.

Albérico: É, hoje em dia não tem mais essa coisa de mal vestido, bem vestido de... de... de essas coisas não, algum tempo atrás você observava, hoje em dia tá muito difícil de desconfiar, se for assim, desconfia de todo mundo.

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Mais uma vez é possível remeter à crítica de Garfinkel (2006) à teorização abstrata, equívoco que teria sido cometido neste trabalho se o plano de elaborar um gradiente de confiabilidade a partir dos perfis dos passageiros tivesse sido levado adiante, sem referência aos diferentes contextos.

2 - Os sinais que indicam a presença ou ausência das propriedades são emitidos por indivíduos e, portanto, não aparecem de forma clara e podem ser imitados. Surge daí, como aparece nas entrevistas com os taxistas, a necessidade de conversar com o passageiro, sondá- lo em busca de informações, sinais considerados mais seguros para a avaliação. Assim, tanto um aparente mau passageiro quanto um aparente bom passageiro podem ser reavaliados a partir da observação de sinais que se considera difíceis de imitar, como olhar, postura segura e certeza quanto ao destino desejado.

3- Assim como as propriedades, os sinais também precisam ser contextualizados, ou podem levar a erros de avaliação. Suar nem sempre é nervosismo, pode ser distonia; não olhar nos olhos nem sempre é má intenção, pode ser timidez; ser expansivo nem sempre é ser simpático, pode ser tentativa de distrair o outro. É assim que se torna clara a frase de um taxista com quem conversei na fase exploratória e afirmou que, para saber quem é quem na hora de aceitar um passageiro “a gente tem que ser um pouco psicólogo”. Mais que um observador de pessoas capaz de identificar sinais, o taxista precisa ser capaz de perceber o que esses sinais significam na situação. O desenvolvimento dessa habilidade avaliativa foi posteriormente comentado pelo taxista Marcelo com a mesma metáfora que me chamou atenção anteriormente:

Gilberto: E quais são as atitudes que um taxista deve ter pra se manter seguro? Marcelo: As atitudes... Experiência, em primeiro lugar.

Gilberto: Experiência, é? Por que?

Marcelo: Experiência, assim, no convívio da sociedade, né? Você sabe quem é quem. Um taxista é um psicanalista urbano, né?

Gilberto: Ah, é?

Marcelo: É. Você sabe quem é quem. A pessoa começou a se expressar, você começou a perguntar coisas pra ele, a gente percebeu que ele não tá mentindo, beleza.

A complexidade resultante do caráter incerto das avaliações cria para o taxista a necessidade de desenvolver uma habilidade avaliativa que lhe possibilite observar, caso a caso, os sinais de confiabilidade emitidos por um passageiro. Essas avaliações parecem envolver outro conjunto de racionalidades cotidianas: estratégia, análise de alternativas, preocupação com o tempo, escolha, fundamentos da escolha.

Ao falar sobre seus modos de proceder, os entrevistados apontaram critérios como sexo, roupas, lugares e quantidade de pessoas como elementos que guiam as avaliações de todos os taxistas, enquanto os critérios que lhes pareciam menos claros (jeito, olhar, postura, “luz”) foram apontados como particularidades suas, como fruto de um processo subjetivo de sentir, intuir que algo errado pode ou vai acontecer.

O fato de os taxistas não perceberem de forma clara todos os elementos envolvidos em suas decisões não significa que não haja racionalidade nesse processo seletivo, que se baseia na leitura de informações que são disponibilizadas durante a interação. O que estou tentando descaracterizar é a visão de um processo sobrenatural, transcendental, e argumentar que a habilidade avaliativa (sensibilidade, intuição, talento) pode ser mais ou menos desenvolvida em um indivíduo, estando seu desenvolvimento relacionado à experiência em contextos específicos.

Tomar decisões em situações práticas, nas quais há pouco tempo pra fazer avaliações, não permite que o tomador de decisão exerça uma reflexão exaustiva acerca da interação que se desenrola. No caso dos taxistas, essas condições de tempo são exíguas e não é à toa que muitos utilizam estratégias para ganhar tempo hábil de contato com o passageiro antes de aceitar a corrida. Há, nesse caso, uma clara demonstração do desejo e da necessidade de angariar informações para avaliar o passageiro, o que pode demonstrar a centralidade do conhecimento nesse processo nesse tipo de interação.

4.2 APRENDIZAGEM