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CAPÍTULO 1 CARACTERIZAÇÃO DO PROBLEMA E

1.2 POR UMA EXPLICAÇÃO RACIONAL DA CONFIANÇA

1.2.3 Avaliação de confiabilidade: aprender a confiar

Apontar o taxista como aquele que, individualmente, toma a decisão de pegar ou não pegar seus passageiros, não significa que ele realize tal processo a partir de uma experiência atomizada no mundo. O taxista, como qualquer outro indivíduo, conhece e lida com o mundo à sua volta a partir de experiências compartilhadas com outros indivíduos, trocando informações com outros taxistas, olhando para a realidade através da mediação de certos “filtros” que são aprendidos e atualizados nas interações sociais e, portanto, nas suas experiências particulares e grupais.

Afasto-me, assim, de uma perspectiva que aborda as escolhas dos indivíduos como o resultado de uma racionalidade completa e perfeita, como criticado por Schutz em relação às abordagens clássicas da “escolha racional”, nas quais o indivíduo é retratado como possuidor de um quadro de preferências e de referências bem estabelecido (GARFINKEL, 2006:277, 288). Em vez disso, trato de indivíduos que precisam a todo o momento sondar seus possíveis passageiros, que necessitam interpretar as informações à luz do contexto social no qual estão inseridos. É necessário considerar tanto a intencionalidade dos atores e interdependência de suas ações, quanto o contexto no qual eles interagem. Diante deste quadro, busquei desenvolver um estudo que levasse em consideração, prioritariamente, as interpretações dos atores sociais e sua relação com elementos contextuais relevantes para a questão da confiança. As interpretações estão sendo pensadas aqui a partir da ideia de que os indivíduos realizam avaliações a partir das informações disponíveis em cada situação social.

No dilema de avaliar o passageiro, o taxista espera encontrar nos seus possíveis clientes os sinais de confiabilidade que ele atribui ao que considera um bom passageiro. Isso significa que a confiabilidade depende de quais atos de confiança esperamos de alguém numa dada situação. A noção de confiabilidade utilizada aqui diz respeito a propriedades pessoais que não são aplicadas em todas as situações, mas em ações específicas (GAMBETTA & HAMILL, 2005:06).

Podemos dizer, então, que, ao observar sinais nos passageiros, os taxistas procuram por propriedades relevantes da confiança/desconfiança, capazes de indicar, em certas

circunstâncias, a presença de confiabilidade. A sinalização nos leva então para o seguinte problema da confiança: “Devo ou não acreditar nos sinais de confiabilidade emitidos por fulano?” (RATTON & MORAIS, 2002). Nesse contexto, a variedade de fontes de confiabilidade “inclui não apenas o auto-interesse, mas também princípios morais, normas sociais, e até mesmo disposições específicas que, em um determinado jogo podem tornar alguém confiável”, o que implica uma abordagem que vai além da escolha racional (GAMBETTA & HAMILL, 2005:06).

Esta declaração não representa uma negação da teoria da escolha racional (da qual a teoria dos sinais é parte), e sim um reconhecimento dos limites da racionalidade, que é característico do neorracionalismo. A teoria dos sinais acrescenta, portanto, algo positivo na avaliação racional da confiabilidade, possibilitando complexificar o estudo da produção de sentido, levando em conta as razões práticas dos tomadores de decisão, os sentidos atribuídos na interação social aos sinais que o ator considera como indicadores da confiabilidade em diferentes situações, contextos e interesses.

Hamill (1993) destaca o problema da confiança a partir de como os atores, individualmente, a desenvolvem, em seus mecanismos particulares e cotidianos. Para ele, é fundamental que o pesquisador una as ferramentas das teorizações abstratas, como a Teoria da Escolha Racional, com informações coletadas num plano empírico, prático, buscando desenvolver uma epistemologia cotidiana da confiança, o que ele chama de “the street-level epistemology of trust” (HAMILL, 1993, 505). Deste modo, a busca de informações acerca de como os atores agem e a forma como eles compreendem os processos sociais aqui tratados ganha importância central na explicação6 dos fenômenos sociais e na validação/teste do arcabouço teórico utilizado na produção de explicações acerca do social (ELSTER, 1994).

Ao abordar esta questão, Gambetta e Hamill (2005) aplicaram a teoria da escolha racional à explicação de como os taxistas acessam a confiabilidade de possíveis passageiros de maneira apenas aparentemente intuitiva (irracional). Esse estudo revelou que, nos dois casos estudados (Nova Iorque e Belfast), as avaliações dos taxistas eram, em grande medida,

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Uma explicação, segundo Elster, deve ser capaz de mostrar os mecanismos causais, como de fato os fenômenos sociais acontecem, ao contrário de grande parte das explicações nas Ciências Sociais que se prestam apenas a fazer generalizações, ou seja, leis gerais que não apontam os mecanismos reais de causalidade.

baseadas em visões e estereótipos sobre grupos sociais, ambientes, tipos de comportamento tidos como confiáveis, etc. Além desses elementos norteadores e relativamente estruturados, temos um importante papel dado ao processo de identificação e interpretação dos sinais de confiabilidade, que podem indicar bons ou maus passageiros.

A questão da sinalização desenvolvida para o caso dos taxistas por Gambetta e Hamill (2005), traz um dilema para a discussão sobre confiança, que é o da necessidade que um ator tem de sondar o quão genuínos ou falsos são os sinais apresentados por outros atores – o que implica não apenas a capacidade de interpretação do taxista, mas também a habilidade do passageiro para emitir os sinais de confiabilidade. Muitos passageiros falham em comunicar confiabilidade aos taxistas, de forma que subjaz ao problema da comunicação um processo de aprendizagem, intencional ou não, de como emitir esses sinais. Assim como os passageiros aprendem a sinalizar, os taxistas também desenvolvem a capacidade de identificá-los, a partir da experiência adquirida nas interações. Identificados os sinais, é preciso interpretar quão verdadeiros eles são, pois maus passageiros podem aprender a imitar os sinais que se espera de um bom passageiro.

A realização de processos avaliativos da confiabilidade implica a utilização de um conhecimento adquirido por meio da experiência. Muito desse background é aprendido simplesmente como produto da vida e da observação cotidiana numa determinada área, principalmente pela experiência direta, capaz de fornecer informações para situações futuras. No caso dos taxistas, a ocorrência de um assalto ou de um golpe traz sempre novas ferramentas cognitivas aplicáveis a outras situações. É assim que muitos motoristas de taxi procuram conhecer e adquirir informações sempre renovadas com colegas mais antigos de profissão, com o objetivo de prevenir-se e preparar-se para eventuais contingências, estabelecendo e atualizando estratégias de avaliação de passageiros, ao passo que desenvolvem estratégias gerais de precaução. Em outras palavras, os indivíduos em suas relações cotidianas põem em cheque suas crenças acerca do funcionamento do mundo, de modo que este conjunto de informações é testado, reavaliado e atualizado. O desenvolvimento da capacidade de confiar diz respeito, então, ao aprendizado cotidiano de

como e quando se deve confiar, a jogos de confiança específicos, para os quais uma dada pessoa pode ser ou não confiável (HARDIN, 1993: 514; GAMBETTA & HAMILL, 2005:6)

O taxiar exige, portanto, o desenvolvimento de mecanismos e habilidades cognitivas específicas voltadas para a auto-defesa que permitam discernir – a partir dos sinais de confiabilidade emitidos pelos passageiros - entre clientes “genuínos” e aqueles que apenas simulam serem bons passageiros (GAMBETTA & HAMILL, 2005:1). A leitura feita pelos taxistas acerca da confiabilidade dos passageiros está pautada em um processo de aprendizagem, que habilita os atores envolvidos nas transações, através de experiências específicas. Para o taxista, a experiência de trabalho é fundamental, visto que na atividade cotidiana ele se depara com desafios práticos de tomada de decisão com risco, experimentam situações nas quais colocam em xeque seu conhecimento prévio do mundo, seus preconceitos e visões acerca de quais são os bons ou maus passageiros, quais os lugares da cidade são os mais e menos seguros. É no jogo cotidiano de tentativa e erro, que os taxistas desenvolvem seus mecanismos particulares de avaliação dos perigos a que estão expostos.