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Autoaceitação e autoestima como tomada de consciência

1.4 EMPODERAMENTO: ENTENDENDO E CONCEITUANDO

1.4.1 Autoaceitação e autoestima como tomada de consciência

Partiremos neste subtópico da discussão do empoderamento na perspectiva da construção de autoestima por sujeitos que são oprimidos por sistemas de dominação. Considerando o contexto no qual os sujeitos negros estão inseridos, por exemplo, entendemos que a negação de sua identidade e história, proveniente da inferiorização oriunda do racismo, faz com que esses sujeitos tenham uma relação conflituosa com seus corpos.

O momento da tomada de consciência no qual nós, sujeitos negros, podemos adquirir uma visão crítica das normas opressoras as quais somos submetidos, devido à prática do racismo, pode auxiliar no processo do empoderamento. Paulo Freire (1979) nos fala que apenas os sujeitos oprimidos serão capazes de construir ferramentas de libertação, para si próprio e para os seus opressores, e quando falamos em autoestima e autoaceitação, principalmente das mulheres negras, refletimos sobre como esses corpos são afetados pelos olhares e palavras duras de uma sociedade com supremacia branca. Nesse momento é importante trazermos a discussão da conscientização, como ferramenta libertadora da opressão.

Para Gomes (2003, p. 79) “o corpo pode simbolizar diferentes identidades sociais, extrapolando a dimensão do indivíduo e da pessoa”, a autora afirma que nenhum outro animal realiza transformações de forma voluntária em seu corpo, apenas o ser humano. Essas alterações são resultados de suas identidades, cultura, lugar que ocupa e etc, podendo indicar outros tipos de significados como “[...] hierarquia, idade, símbolo de status, de poder e de realeza entre sujeitos de um mesmo grupo cultural ou entre diferentes grupos” (GOMES, 2003, p. 79). Mesmo compondo mais da metade da população (PNAD, 2019), esses indivíduos negros acabam por buscar meios para se embranquecerem22, tentando fugir desses estigmas que relacionam sua identidade como aspecto negativo, tendo suas características estéticas desvalorizadas. As mulheres negras são reféns desse estigma, seja pelo cabelo, pelo corpo, nariz ou boca, seus traços sempre foram desvalorizados nos espaços e relações sociais.

[...] em conformidade com outros movimentos sociais progressistas da sociedade brasileira, o feminismo esteve, também, por longo tempo, prisioneiro da visão eurocêntrica e universalizante das mulheres. A conseqüência disso foi a incapacidade de reconhecer as diferenças e desigualdades presentes no universo feminino, a despeito da identidade biológica. Dessa forma, as vozes silenciadas e os corpos estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de opressão além do sexismo, continuaram no silêncio e na invisibilidade. As denúncias sobre essa dimensão da problemática da mulher na sociedade brasileira, que é o silêncio sobre outras formas de opressão que não somente o sexismo, vêm exigindo a reelaboração do discurso e práticas políticas do feminismo. E o elemento determinante nessa alteração de perspectiva é o emergente movimento de mulheres negras sobre o ideário e a prática política feminista no Brasil (CARNEIRO, 2003, p. 228).

O processo de autoestima e autoaceitação, principalmente quando falamos de mulheres, geralmente está ligada a discussão da estética. Quando falamos de sujeitos negros, essa discussão também é levada para o campo da ideias. Sueli Carneiro se refere ao termo epistemicídio como “uma forma de sequestro da razão em duplo sentido: pela negação da racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural que em outros casos lhe é imposta” (CARNEIRO, 2005, p. 97), nos revelando como a intelectualidade do sujeito negro é afetada e ignorada pelos sujeitos dominantes. Quando pensamos em mulheres negras, essa autoestima

22 Neuza Santos Sousa (1983) fala que os negros na busca por uma ascensão social colocam a representação do branco como única possibilidade para “torna-se gente”. Essas formas de embranquecimento na verdade são ações que possam desencadear aproximações dos sujeitos brancos e os afastem dos aspectos e imagem dos sujeitos negros. Aproximações e distanciamento na perspectiva de poder e subalternidade, que promovem negação da sua raça e cultura. (GONZALEZ, 1988).

precisa ser construída a partir do confronto com o padrão de beleza dito como ideal, uma estética branca, além de confrontar a invisibilidade dada a suas narrativas e seu intelecto.

Atualmente houve uma crescente discussão acerca do empoderamento feminino negro através da construção da autoestima e autoaceitação, principalmente através do cabelo crespo ou cacheado, que é um elemento importante quando falamos sobre a estética negra. Essa temática vem se tornando peça fundamental para a iniciação da tomada de consciência de alguns indivíduos, principalmente das mulheres negras.

Mas os cabelos são apenas um primeiro elemento e de grande importância que responde sozinho, sobretudo nas mulheres negras, pelo orgulho necessário para adentrar no âmbito dos processos de empoderamento. Há também a aceitação dos sinais fenotípicos do rosto e do corpo, além da cor da pele. Nossos rostos, que trazem as informações reais de nossas origens africanas, também são alvo constante de escárnio e depreciação. Nariz e boca são campões nisso. Humoristas e comediantes, com seus trabalhos marcadamente racistas e desumanizadores sempre usaram esses destaque de nossos rostos como elemento de suas piadas, exagerando e caricaturando de maneira extremamente violenta. O intolerável Blackface, técnica teatral usada no começo do século XX que consistia em fantasiar pessoas brancas de negras de forma grotesca, é um exemplo clássico de como os veículos de comunicação e as artes em geral tiveram – e ainda tem – papel importante no flagelo de nossa autoestima e autoaceitação (BERTH, 2018, p.96).

Nilma Lino Gomes retrata que o cabelo tem um papel fundamental na afirmação da identidade negra além de ser um elemento que influencia na maneira em que o negro se vê e é visto pelo outro (GOMES, 2003). Dentro dessa perspectiva dos fenótipos e características das pessoas negras, o trabalho da aceitação e afirmação da identidade é visto como algo individual, apenas o próprio sujeito tem o poder de alterar a forma que se enxerga o que se correlaciona com o conceito de empoderamento.

Pessoas negras, portanto, podem reproduzir em seus comportamentos individuais o racismo de que são as maiores vítimas. Submetidos às pressões de uma estrutura social racista, o mais comum é que o negro e a negra internalizem a ideia de uma sociedade dividida entre negros e brancos, em que brancos mandam e negros obedecem. Somente a reflexão crítica sobre a sociedade e sobre a própria condição pode fazer um indivíduo, mesmo sendo negro, enxergar a si próprio e ao mundo que o circunda para além do imaginário racista. Se boa parte da sociedade vê o negro como suspeito, se o negro aparece na TV como suspeito, se poucos elementos fazem crer que negros sejam outra coisa a não ser suspeitos, é de se esperar que pessoas negras também achem negros suspeitos, especialmente quando fazem partes

de instituições estatais encarregadas da repressão, como é o caso de policiais negros (ALMEIDA, 2018, p. 53).

Mesmo sendo uma construção histórica e social, demarcada pelas diferenças, a identidade da pessoa negra para ser afirmada precisa ser internalizada. Essa internalização é considerada então como “um processo de tomada de consciência crítica por parte dos sujeitos, de cunho social e político” (DE OLIVEIRA; DOS SANTOS; TEIXEIRA, 2016, p.107), e é através dessas ações que “há um reconhecimento do poder das pessoas, essas últimas passam a lutar para modificar as relações desiguais, discriminatórias e excludentes em sua sociedade”

(DE OLIVEIRA; DOS SANTOS; TEIXEIRA, 2016, p. 107). Os meios de comunicação

foram peças chaves para que as pessoas negras, principalmente as mulheres negras, renegassem sua identidade e não enxergassem o sistema hegemônico e as opressões que elas estavam aprisionadas.

Imaginemos uma criança em plena década de 60 que, por uma sorte – ou azar -, já tinha contato com uma televisão excludente que trabalhava incansavelmente para a elevação do padrão branco como o único a deter beleza, elegância, etc. e ao mesmo tempo, tendo contato com as propagandas e programas que caricaturavam a imagem de sujeitos negros, aguçando a repulsa racista já devidamente plantada no imaginário social. O efeito óbvio na criança negra seria de repulsa de si mesma e de criança branca de superioridade de sua condição e rejeição a condição da criança negra. E isso ainda perdura nos dias de hoje, fazendo com que os negros e negras que apontam esses crimes premeditados e intencionais sejam destratados e confinados na figura de rebeldes, vitimistas ou o que seja equivalente e oposto ao real impulso de autodefesa de sua dignidade e dos seus (BERTH, 2018, p. 96).

Portanto entende-se que o empoderamento a partir da perspectiva da identidade negra está no ato de reconhecer a si mesmo e aos demais sujeitos negros, através de suas características, proporcionando assim uma consciência crítica afirmando sua identidade e indo ao contrário da negação, reivindicando direito, espaço e poder. A autora Berth (2018) ressalta a importância de possuirmos movimentos de resistência que lutam pela reafirmação da beleza negra, pois esses movimentos são capazes de produzir debates que remetem ao empoderamento através da estética, fazendo com que os indivíduos se articulem e busque meios de interromper esse sistema.

A dinâmica de poder insere as mulheres numa disputa por narrativa na busca de um padrão de beleza ideal, esse padrão geralmente é branco, cabelo liso, alto, magro, fazendo

com que muitas mulheres tentem buscar formas de entrar nesses moldes. As mulheres negras tentam buscar esse ideal através do embranquecimento dos seus traços, elas alisam seus cabelos, fazem procedimentos estéticos invasivos em seus rostos, o que também acontece com mulheres não negras, que buscam por um corpo dito como perfeito.

Essa discussão da autoaceitação e autoestima acaba por adentrar a discussão feminista quando essas mulheres confrontam esse padrão de beleza dominante e buscam por uma aceitação de si mesma ou compreendem em qual categoria de opressão estão inseridas. Nesse momento, pensarmos na interseccionalidade como método de análise é fundamental para visualizar as opressões em que mulheres negras e não negras são acometidas. A análise da dinâmica da autoaceitação e enfrentamento se dá de maneiras diferentes, enquanto mulheres não negras pautavam dentro do feminismo uma discussão da liberdade sexual, as mulheres negras tinham seus corpos hipersexualizados desde a escravidão. Quando colocamos o processo de autoaceitação e enfrentamento do padrão de beleza dito como ideal, precisamos analisar esse processo através das diferentes ligações de opressões inseridas nesses grupos.

Todo o debate desses fenômenos após o advento das redes sociais vem fazendo com que as subjetividades dos sujeitos possam ser pensadas e discutidas por perspectivas diferentes, trazendo para a mídia discussões que por muitos anos foram invisíveis na mídia tradicional. Segundo Lima as autoras Patrícia Hill Collins e Sirma Birge “afirmam que a internet mudou a cara e a idade média do feminismo, hoje há forte presença de mulheres jovens, inclusive adolescentes” (LIMA, 2017, p. 8). Devido ao seu alcance midiático, as questões do feminismo conseguem estabelecer um melhor diálogo com as mulheres a partir das redes sociais, Lima também fala que “a ampliação da presença de feministas negras na internet ampliou os debates sobre interseccionalidade, especialmente em blogs escritos por mulheres negras” (LIMA, 2017, p. 9).

Se o empoderamento e o processo de conscientização são individuais e precisam ser um resultado de si mesmo, é necessário entender que esse processo de internalização está diretamente ligado a imagem que temos de nós mesmos. Se essa imagem é vista e perpetuada por meio de aspectos negativos, continuaremos a internalizar essa mesma ideia. Quando surgem ferramentas e elas são utilizadas para confrontar essas imagens, através de ações individuais ou coletivas, é necessário entender essas novas representações de si mesmo e construir uma narrativa em que o debate acerca da libertação de seus corpos seja entendido como um processo de conscientização. Exercer um discurso de si mesmo é a forma de

entendermos e confrontarmos a realidade a que fomos colocados (SOUZA, 1983). Novamente, refletindo sobre a obra de Freire (1979), o autor nos fala que a tomada de consciência é um caminho e não o fim. A tomada de consciência é um dos caminhos que nos leva a conscientização, pensar em empoderamento é pensar em romper com as lógicas dominantes e de fato só pode acontecer por meio da tomada de consciência no processo de uma conscientização. Para os sujeitos negros a tomada de consciência a partir a autoestima e autoaceitação pode ser um processo para afirmar sua existência e seu lugar na sociedade (SOUZA, 1983).

CAPÍTULO II

As formas de dominação dos corpos negros que se fazem presentes no imaginário social dos sujeitos são perpetuadas através de mecanismos que resultam em relações de poder, e quando a mídia é o aparato utilizado para propagar essas formas de dominação, acabamos por entrar numa discussão de representação de imagens de controle. A representação dos sujeitos negros através de estereótipos e imagens de controle perpassa as produções midiáticas e se perpetua na sociedade, fazendo com que a mídia se consolide como uma ferramenta de reprodução racista. O presente capítulo tem como objetivo apresentar as representações de imagens das mulheres negras que por muitos anos se fizeram presentes nas produções midiáticas, analisando em conjunto as novas formas de representação no ambiente digital, além de compreender como essas questões estão inseridas dentro da cultura participativa.