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1.3 REPENSANDO A INTERSECCIONALIDADE

1.3.1 Mulher, negra e feminista

A autora americana Ângela Davis afirma que é “[...] importante para os feminismos desvencilharem-se da noção de que há uma qualidade universal que podemos chamar de mulher” (DAVIS; DENT, 2003, p. 527), elas possuem questões específicas que não são atendidas apenas nas discussões de gêneros. Para Christofoletti e Watzko (2009, p. 99) “[...] em face dessa dupla desvalorização, as mulheres negras são a fatia mais marginalizada da sociedade”, para os autores, esse fato não era coincidência, mas proveniente de uma série de práticas discriminatórias. Para Carneiro (2003), a categorização da universalização do “ser mulher” reduzia todas as mulheres às mesmas demandas, como se não houvesse nenhuma diferença que pudesse restringir um direito de uma ou outra.

15 GELEDÉS. Sojourner Truth. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/sojourner-truth/>. Acesso em: 13 ago. 2018.

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. São suficientemente conhecidas as condições históricas nas Américas que construíram a relação de coisificação dos negros em geral e das mulheres negras em particular. Sabemos, também, que em todo esse contexto de conquista e dominação, a apropriação social das mulheres do grupo derrotado é um dos momentos emblemáticos de afirmação de superioridade do vencedor. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportação (CARNEIRO, 2003, p. 49).

A estudiosa bell hooks (2015) fala que as mulheres que participavam do feminismo ou não compreendiam a inter-relação entre opressões ou se recusavam a entender e por isso não podiam falar por todos os grupos de mulheres. Era preciso compreender que existiam – e existem - diferenças que afetavam as mulheres negras devido a ligação entre raça, gênero e classe.

O feminismo negro norte-americano surgiu a partir dessa perspectiva e contra a universalização do ser “mulher”, categorizando todas as mulheres em uma identidade única e fixa. As autoras negras como Patrícia Hill Collins, Kimberlé Crenshaw, Audre Lorde, Angela Davis e bell hooks, foram responsáveis por contestar essa categorização e discutir as opressões que invisibilizavam as mulheres negras dentro da pauta feminista. No Brasil, o movimento negro não compreendia que a bandeira das mulheres negras também deveria ser defendida pelo coletivo e, dessa forma, as pautas das mulheres negras permaneceram inviabilizadas (MALTA; DE OLIVEIRA, 2016, p.58). A luta antimachista não era atendida ou compreendida dentro do movimento, e no movimento feminista a luta antirracista não era prioridade.

A discussão em torno do Feminismo Negro no Brasil só foi iniciada por Lélia Gonzalez, que segundo Cláudia Pons Cardoso (2014) refletia atentamente sobre a exclusão das mulheres negras e indígenas no Brasil: “ela foi pioneira nas críticas ao feminismo hegemônico e nas reflexões acerca das diferentes trajetórias de resistência das mulheres ao

patriarcado, evidenciando, com isso, as histórias das mulheres negras e indígenas, no Brasil, na América Latina e no Caribe” (CARDOSO, 2014, p. 965).

No Brasil, a distinção de gênero não pode ser compreendida de modo adequado sem considerar-se a questão racial. Na hierarquia da renda, o primeiro fator determinante é a raça, depois o gênero. As mulheres brancas mantêm uma posição nitidamente privilegiada em relação aos homens negros, e as afro-brasileiras estão no mais baixo degrau da escala de renda e emprego. Os homens brancos recebem mais de três vezes o que ganham as mulheres afro-brasileiras, que por sua vez ganham menos da metade do valor da renda mediana da mulher branca (NASCIMENTO. 2003, p. 117 apud MALTA; DE OLIVEIRA, 2016, p. 59).

Para Lélia Gonzalez, todas as discussões que as mulheres negras eram contempladas dentro das ciências sociais eram exclusivamente por caráter racial, anulando qualquer outra reflexão sobre a sua relação com o gênero (GONZALEZ, 1984, p. 225). Ao participar do movimento feminista, criticou duramente a falta de visibilidade da mulher negra. Para ela, as mulheres brancas que estavam compondo o movimento feminista tratavam apenas de demandas individuais, enquanto as mulheres negras estavam pensando no coletivo e em discutir e lutar por direitos de suas comunidades.

O que se opera no Brasil não é apenas uma discriminação efetiva; em termos de representações mentais sociais que se reforçam e reproduzem de diferentes maneiras, o que se observa é um racismo cultural que leva, tanto algozes como vítimas, a considerarem natural o fato de a mulher em geral e a negra, em particular, desempenharem papéis sociais desvalorizados em termos de população economicamente ativa (GONZALEZ, 1979, p. 19).

Raquel Barreto (2005) reflete16 um ponto importante para explicitar a diferença do debate dentro do feminismo. Enquanto as feministas estavam debatendo a questão do corpo e sexualidade, as mulheres negras “lembravam das marcas inscritas nesse corpo: sexualização; racialização, punição e para além dessas questões históricas” (BARRETO, 2005, p. 53). Corpos que historicamente foram abusados e violentados, até considerados como não pertencentes a elas, não podiam estar na mesma leva de reivindicação por libertação sexual, que jamais foi obtida pelas mulheres negras, como também o trabalho fora de casa e sem autorização do marido, que segundo Ribeiro (2018, p. 45) não era uma reivindicação das

16 BARRETO, Raquel de Andrade. “Enegrecendo o feminismo” ou “Feminizando a raça”: narrativas de libertação em Angela Davis e Lélia González. Dissertação (Mestrado em História) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2005.

mulheres negras e pobres. Em uma análise sobre a relação das feministas negras, Lélia Gonzalez afirma que

[...] nossas experiências com o Movimento de Mulheres, caracterizavam-se como bastante contraditórias: em nossas participações em seus encontros ou congressos, muitas vezes éramos consideradas “agressivas” ou “não- feministas” porque sempre insistimos que o racismo e suas práticas devem ser levados em contas nas lutas feministas, exatamente porque, como o sexismo, constituem formas estruturais de opressão e exploração em sociedades como a nossa. Quando, por exemplo, denunciávamos a opressão da exploração das empregadas domésticas por suas patroas, causávamos grande mal-estar; afinal, dizíamos, a exploração do trabalho doméstico assalariado, permitiu a “liberação” de muitas mulheres para se engajarem nas lutas “da mulher”. Se denunciávamos a violência policial contra os homens negros, ouvíamos como resposta que violência era aquela da repressão contra os heróis da luta contra a ditadura (como se a repressão, tanto num quanto noutro caso, não fizesse parte da estrutura do mesmo estado policial- militar). Todavia, não deixamos de encontrar solidariedade da parte de setores mais avançados do Movimento de Mulheres, que demonstraram interesse em não só divulgar nossas lutas como em colaborar conosco em outros níveis (GONZALEZ, 1984, p. 9-10).

Para Luiza Bairros o feminismo negro era “um conjunto de experiências e ideias compartilhadas por mulheres afro americanas que oferecem um ângulo particular de visão do eu e da comunidade e da sociedade, que envolve interpretações teóricas da realidade de mulheres negras” (BAIRROS, 1996, p. 6). Além de Lélia Gonzalez, nós pudemos contar com a contribuição de outras autoras negras brasileiras, Beatriz Nascimento, Luiza Bairros, Sueli Carneiro, Jurema Werneck e atualmente Djamila Ribeiro vem se destacando por suas contribuições com seus livros O que é lugar de fala? e Quem tem medo do feminismo negro? promovendo uma discussão não só a partir de seus livros, mas se apropriando das redes sociais para debater a respeito da importância do feminismo negro. Para Ribeiro (2018), as feministas negras ainda são vistas por muitos como “identitárias”, que promovem uma discussão apenas em gênero e raça, mas não aprofundam nas questões de classe, por exemplo. Mas o Feminismo Negro se faz exatamente ao contrário do que é dito por essas pessoas, pois ele se faz uma ferramenta eficiente para articular novos meios de contestar o poder hegemônico.

A identidade negra posta socialmente pela branquitude17 faz uma relação direta com os frutos da escravidão. As reivindicações das mulheres negras aqui relatadas estão correlacionadas com o imaginário social que se propagou desses indivíduos. Almeida (2018, p. 51) afirma que precisamos compreender que a visão que temos a respeito da sociedade não é um reflexo da realidade e sim uma representação dela, e que a ideologia é um explicitamente um produto do imaginário social. Compreender esse fato é entender que estamos aprisionados pela prática da ideologia.

O estereótipo de seus corpos perpetuado durante séculos influencia uma gama de atividades realizadas no cotidiano dessas mulheres. Elas precisam partir da tomada de consciência do lugar que ocupam dentro da sociedade, e de todo o processo que influencia diretamente na construção de sua identidade como mulher negra, para enfim formarem uma identidade sólida, já que o racismo age praticamente em todas as ações às quais elas são acometidas.

O conjunto de experiências que formam a nossa identidade é influenciado pelo racismo, as mulheres negras em sua maioria relatam exemplos de como racismo já afetou em suas relações interpessoais e as impediu que vivenciassem por completo determinadas experiências. Como já mencionado aqui, é a partir desses marcadores de diferenças que as identidades são formadas e as mulheres negras precisam percorrer um caminho longo repleto de negação e outras problemáticas ocasionadas pelo racismo para enfim se tornarem negras.