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O PODER DO CONSUMO NA REPRESENTAÇÃO

Claramente existe uma problemática quando falamos de representação e representatividade negra na mídia. Mas o que é representação e o que é representatividade? A autora bell hooks (2019, p. 34) em Olhares negros Raça e representação fala que “é mais evidente que o campo da representação permanece um lugar de luta quando examinamos criticamente as representações contemporâneas da negritude e das pessoas negras”, nos fazendo refletir sobre quais os modos de representatividade estamos buscando na comunicação contemporânea.

Para aqueles que ousam desejar de modo diferente, que procuram desviar o olhar das formas convencionais de ver a negritude e nossas identidades, a questão da raça e da representação não se restringe apenas a criticar o status quo. É também uma questão de transformar as imagens, criar alternativas, questionar quais tipos de imagens subverter, apresentar alternativas críticas e transformar nossas visões de mundo e nos afastar de pensamentos dualistas

acerca do bom e do mau. Abrir espaço para imagens transgressoras, para a visão rebelde fora da lei, é essencial em qualquer esforço para criar um contexto para a transformação. E, se houve pouco progresso, é porque nós transformamos as imagens sem alterar os paradigmas, sem mudar perspectivas e modos de ver. (HOOKS, 2019, p. 36).

Um acontecimento recente, no ano de 2018, envolvendo a novela do horário nobre da Tv Globo, Segundo sol, recebeu críticas antes mesmo de sua estréia. A narrativa da novela acontecia no estado da Bahia - um dos estados com maior concentração de negros do país - praticamente não possuía atores negros no elenco. Nas redes sociais, principalmente Twitter, Facebook e Instagram, as pessoas – em sua maioria negras – utilizaram-se desse espaço para questionar a falta de representatividade das pessoas negras na novela. Outro aspecto levantando pelos espectadores foi de que aparentemente os atores principais - brancos e não negros – passaram por seções de bronzeamento artificial, trazendo a tona uma busca por uma morenidade, mas sem chegar a negritude.

As marcas publicitárias também estão sendo monitoradas por esse público cada vez mais atento, e alguns casos vêm demonstrando essa atuação. A marca Colgate, que empreende uma linha de produtos de higiene oral e saúde bucal27, ao divulgar os

influenciadores digitais28 que iriam compor o time de embaixadores do seu novo produto, o

Colgate Luminous, surpreendeu ao exibir apenas uma pessoa negra – e negra de pele clara - dentro do seu quadro de onze pessoas. A discussão ganhou as redes sociais e muitos questionaram a empresa se as pessoas negras não poderiam fazer uso do produto, a hashtag #SeNãoMeVejoNãoCompro, reivindicava a presença de pessoas negras na publicidade. A marca emitiu um pronunciamento se desculpando e expandiu o seu quadro de embaixadores29.

O público está cada vez mais atento a mídia, como meio de representatividade e vem buscando novas maneiras de discutir seus lugares nesses espaços. Com o advento das redes sociais e sua facilidade de comunicação, muitas pessoas negras estão usufruindo desse espaço para debater assuntos que estão diretamente ligados a sua identidade, mas ainda enfrenta-se o

27 Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Colgate>. Acesso em: 15 out. 2018.

28 “Influenciadores digitais são formadores de opinião virtuais que representam uma alternativa para empresas que confiam na comunidade reunida em torno desses perfis como público-alvo de divulgação. Esses indivíduos expandiram conceitos de teorias consolidadas que versam sobre o processo de difusão de inovações e o fluxo comunicacional entre líderes de opinião e seguidores” (DE ALMEIDA et al., 2017, p. 116). Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rac/v22n1/1982-7849-rac-22-01-0115.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2019.

29 RAMOS, Aline. Para a Colgate, aparentemente só pessoas brancas escovam os dentes no Brasil. Disponível em: <https://www.buzzfeed.com/ramosaline/colgate-embaixadores-brancos-racismo- representatividade?utm_term=.cfP1L33gy6#.gqaNjnnBJd>. Acesso em: 15 out. 2018.

incomodo por parte de pessoas brancas quando não se vêem nos lugares que já estão acostumados, o lugar do protagonismo. Um exemplo prático desse ponto foi da empresa O Boticário, que recentemente foi alvo de críticas e ataques racistas por produzir e veicular uma campanha do dias dos pais, com uma família afrocentrada. A empresa vem adotando em suas propagandas um discurso contra hegemônico pautado na diversidade. Viana e Belmiro (2019, p. 79) destacam que a questão racial não foi verbalizada em nenhum momento durante a propaganda, “o incômodo foi em razão de um personagem branco, historicamente acostumado a se ver representado e protagonista, não estar presente no filme”. Para os autores a sociedade brasileira não está acostumada a visualizar pessoas negras em lugares de destaque, sendo protagonistas em qualquer ação ou ambiente, o que ficou claro nos comentários feitos no YouTube, onde o vídeo foi publicado, alguns comentários apontaram “racismo reverso”30, pois

se sentiram excluídos.

Para Mielke31 (2017) o caso da jornalista Maria Júlia Coutinho que sofreu ataques

racistas quando escalada para o quadro fixo do Jornal Nacional que desencadeou reações de insatisfação por parte dos sujeitos,

[...] é um bom exemplo da negação da diferença e da produção do racismo. Parte da sociedade não assume enxergar a diferença dela, a sua negritude. Mas bastou ela ocupar um lugar ao qual não era historicamente “destinada” para enxergarem a sua pretidão (MIELKE, 2017).

O diretor de filmes Jordan Peele também foi recebido com indignação ao afirmar que não pretendia trabalhar com protagonistas brancos em suas narrativas32, mesmo

utilizando de argumentos extremamente válidos e relevantes, inúmeros comentários repudiaram a fala de Peele, alegando que o diretor estava realizando segregacionismo.

30 Em entrevista a Carta Capital a intelectual Grada Kilomba afirma que o “racismo tem a ver com poder, com privilégios. A população negra não tem poder historicamente” (KILOMBA, 2018), dessa maneira ressaltamos que a discussão acerca de racismo reverso não é válida, pois para esse fato pudesse acontecer as pessoas negras precisariam estar em posições de poder para com as pessoas brancas, o que historicamente não acontece na nossa sociedade. KILOMBA, Grada. “O racismo é uma problemática branca”, diz Grada Kilomba. Carta Capital. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/201co-racismo-e-uma-problematica-branca201d-uma- conversa-com-grada-kilomba/>. Acesso em: 15 set. 2018.

31 MIELKE, Ana Cláudia. Negros e mídia: invisibilidades. Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/negros-e-midia-invisibilidades/>. Acesso em: 23 dez. 2018.

32 "Não consigo me ver escalando um cara branco para o papel principal em nenhum dos meus filmes. Não é que eu não goste de caras brancos, eu só sinto que já vi esse filme antes" (PEELE, 2019). PALOPOLI, Ygor. Jordan Peele diz que não pretende escalar brancos como protagonistas de seus filmes. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-147111/>. Acesso em: 10 abr. 2019.

Os lugares que historicamente não são associados ou acessados por pessoas negras, atravessam o imaginário social e causam indignação por parte das pessoas brancas, como se o fato de obter tal bem ou ocupar tal lugar fosse um modo de afronta e opressão reversa. A autora hooks (2019, p. 76) fala que pesquisas de mercado na década de 1940 – momento em que os Estados Unidos (EUA) viviam a segregação racial de forma mais severa - mostraram que a maioria dos consumidores do refrigerante Pepsi era pessoas negras, esse resultado, fez com que a marca utilizasse mais imagens de pessoas negras em suas propagandas. Esse fato nos mostra a necessidade das empresas, dentro do sistema capitalista, em afetar diretamente seus consumidores. Como vimos no tópico anterior, alguns influenciadores digitais negros levantaram a questão #SeNãoMeVejoNãoCompro e as marcas precisam estar atentas para esse novo momento, não que ele seja totalitário, mas vem seguido de desconforto e questionamento perante as minorias. É preciso estar atento não só à questão de representatividade, mas também de representação, em uma mídia que historicamente controla as imagens dos sujeitos negros, não é suficiente termos uma pessoa negra em determinada narrativa se a representação desse sujeito é realizada de forma incoerente ou maldosa.

A estudiosa hooks (2019) disserta a respeito das produções visuais e critica a representação das mulheres negras no meio audiovisual, a autora fala que em nenhum momento as pessoas negras ficaram surpresas com o tipo de representação ali inseridas ou por não se enxergarem naquelas imagens, “a maioria das mulheres negras com quem conversei era irredutível ao dizer que nunca ia ao cinema esperando ver representações convincentes de feminilidade negras” (HOOKS, 2019, p. 221), ela fala que inclusive muitos sujeitos ou deixaram de frequentar cinemas, por exemplo, pelo motivo de não concordarem com os estereótipos ali propagados, ou como disse uma das mulheres entrevistadas “eu sempre podia ter prazer com os filmes, desde que não olhasse com profundidade” (HOOKS, 2019, p. 225), confirmando a não satisfação da representação de suas imagens nas produções midiática americanas.

Trazendo sempre consigo violências nas imagens ao representar mulheres negras como seres agressivos, lascivos ou que estão em nossa sociedade para servir a branquitude, as mulheres brancas possuíam o discurso e imagem universais de mulher, e as mulheres negras continuavam dentro do sistema de dominação tendo sua imagem atrelada à subalternidade.

Quando voltei a frequentar o cinema na juventude, depois de um longo período de silencio, tinha desenvolvido um olhar opositor. Não só eu não era magoada pela ausência de mulheres negras, ou pela inserção de uma representação agressiva, como questionava a obra, desenvolvia uma forma de olhar além da raça e do gênero para aspectos de conteúdo, forma, linguagem (HOOKS, 2019, p. 226).

O poder de dominação (FOUCAULT, 1989) exercido nos corpos negros desde os tempos da escravidão reflete até hoje a partir de diversas perspectivas na nossa sociedade. A desigualdade social e suas imbricações trazem conseqüências graves no cotidiano da população negra. Dentro do imaginário social coletivo criaram-se determinadas representações dos sujeitos negros, e os meios de comunicação tiveram papel importante para a propagação do racismo na sociedade (RAMOS, 2007). Para a autora Silvia Ramos (2007, p. 8) a mídia deveria discutir “as dinâmicas da mídia frente às questões de raça e etnicidade”, pois assim estaria discutindo as matrizes do racismo no Brasil, mas o que pode ser visto nesses espaços é a propagação de estereótipos ou a invisibilidade desses sujeitos, levando-nos a discutir a respeito dos marcadores de diferença ali representados ou excluídos33.

O consumo é uma prática social e está associada com as especificidades dos indivíduos, a partir de valores e signos que os sujeitos constroem no decorrer de sua vida, tendo como aporte, a formação de sua identidade, atrelada aos marcadores de diferenças simbólicos. Segundo Canclini (1995, p. 59) “o consumo é um processo em que os desejos se transformam em demandas e em atos socialmente regulados”, e quais os desejos dos sujeitos negros? Quando entramos no contexto da reivindicação pela valorização e respeito desses marcadores de diferenças, podemos encontrar na discussão da formação da opinião pública, uma ferramenta potente no quesito de mobilização. Essa discussão nos faz adentrar na perspectiva da formação da opinião pública no ciberespaço, em particular, nas redes sociais.

Para Canclini (1995, p. 15) as formas de consumir afetam nos modos de exercer a cidadania dos sujeitos e que o local a que esses sujeitos pertencem e os direitos que se obtêm estão diretamente ligados aos bens privados. Nesse momento repensamos em como a cidadania dos corpos dos sujeitos negros, dentro do imaginário social vem sendo retirada, a

33 “Além de ser um caso exemplar dos mecanismos de reprodução das relações raciais, a mídia desempenha um papel central e único na produção e manutenção do racismo. Através dos meios de comunicação, especialmente dos meios de massa, como a televisão e o rádio, as desigualdades raciais são naturalizadas, banalizadas e muitas vezes racionalizadas. Em grande medida, através da mídia de massa as representações raciais são atualizadas e reificadas. E dessa forma, como ‘coisas’, circulam como noções mais ou menos comuns a toda a sociedade e como ideias mais ou menos sensatas” (RAMOS, 2007, p. 9).

política de trabalhar com as subjetividades dos indivíduos nas mídias de massa, apenas reproduz a branquitude como padrão ideal e universal e reforçam ainda mais esse apagamento por intermédio do racismo.

Os sujeitos que buscam a partir de uma estratégia política, a utilização de aparatos como a mídia de massa, por exemplo, para denunciar casos de abuso, opressão, fazem isso de modo que sua voz seja alinhada ao de outros sujeitos, como se ali estivesse um representante de toda a comunidade disposto a expor as dificuldades em que são acometidos. Mas se esses sujeitos, que tem o acesso a esses locais, são sujeitos brancos e sem reconhecimento de seus privilégios, quais casos de abusos e opressões serão vistos como universais? A voz de quais sujeitos será vista como representante? Para hooks (2019, p. 237) as “pessoas brancas nos filmes não conseguem ‘ver’ que a raça influencia suas relações com o olhar” e esse fato não ocorre apenas em produções midiáticas, mas é perpetuado no cotidiano da sociedade, influenciando de forma direta nas concessões dos direitos das pessoas negras, que são concedidos por pessoas brancas em um sistema político pautado na branquitude, machismo e heteronormatividade, que além de não conseguirem questionar seus privilégios, na maioria dos casos não enxerga a importância da representatividade, não no sentido de termos um representante de cada grupo social, mas termos uma proporcionalidade que retrate a realidade da nossa sociedade.

Mas estes avanços ainda são pequenos do ponto de vista da qualidade – é preciso garantir maior representatividade positiva do negro nos meios de comunicação – e também do ponto de vista da quantidade, visto que esta representatividade ainda está bem distante da proporção numérica da presença do negro na sociedade brasileira. (MIELKE, 2017)

Canclini aponta que “é neste jogo entre desejos e estruturas que as mercadorias e o consumo servem também para ordenar politicamente cada sociedade. O consumo é um processo em que os desejos se transformam em demandas e em atos socialmente regulados” (CANCLINI, 1995, p. 59), no mesmo modo que podemos associar o consumo tanto com as maneiras de se exercer cidadania, também podemos associá-lo a atribuição de poder. Assunto complexo quando relacionado às mulheres negras, que para Carneiro (2018, p p.270) “a relação entre mulher negra e poder é um tema praticamente inexistente. Falar dele é, então, como falar do ausente”, passagem essa que nos leva novamente a problemática da intersecção nas questões de raça e gênero abordadas no capítulo anterior.

Para Mielke (2017) “não se trata apenas de um debate sobre o consumo, mas do entendimento de que a não representatividade produz consequências devastadoras para a construção da identidade de um povo”, do mesmo modo que a representação desses sujeitos de forma incoerente com a realidade os retira sua humanidade e os reduz apenas ao olhar da branquitude, que por sua vez enxerga apenas os temas relacionados a si como importantes ou universais, “a criança negra afasta-se de si própria, de sua raça, em sua total identificação com a positividade da brancura que é ao mesmo tempo cor e ausência de cor” (BHABHA, 2007, p. 118), promovendo mais uma vez não só discursos, mas imagens do que é naturalizado como belo e padrão.

2.3 FORMANDO OPINIÃO: UMA ESTRATÉGIA DE CONSUMO, REPRESENTAÇÃO E