• Nenhum resultado encontrado

3.3 VIVÊNCIAS, PERCEPÇÕES E CONSCIÊNCIA

3.3.1 Autodeclaração

Considerando as abordagens dos estudiosos da temática negra, tratadas aqui, pode-se compreender que a conscientização proporciona ao negro e à negra, dentre outros processos, um reencontro consigo mesmo(a). Este reencontro significa a construção de valores positivos em relação à sua própria pessoa, ao que parece ser um pequeno e singelo passo de orgulho de sua negritude, assim como a busca pela sua identidade – recuperar a dignidade dela – e o mais importante, encarar a negritude de forma mais positiva possível. É, na verdade, o início de um processo de autoafirmação e conscientização contra a opressão. Esse reconhecimento da negritude é o princípio da consciência negra, conforme expõe Biko (1978, p. 114-115):

[...] a compreensão dos negros de que a arma mais poderosa nas mãos do opressor é a mente do oprimido. Se dentro do nosso coração estivermos livres, nenhuma corrente feita pelo homem poderá nos manter na escravidão [...]. Por isso, pensar segundo a linha da Consciência Negra faz com que o negro se veja como um ser completo em si mesmo. Torna-o menos dependente e mais livre para expressar sua dignidade humana. Ao final do processo, ele não poderá tolerar quaisquer tentativas de diminuir o significado de sua dignidade humana. A conscientização que se inicia pela autodeclaração como negra, negro, preta e preto, tem como um de seus viéses, a erradicação da distância entre dois grupos raciais, negros e brancos. Pensar sobre identidades na nossa sociedade é a prática de um ato de ideologia, conforme escreveu, há quase quatro décadas, Neusa Santos (1990)23, em Tornar-se Negro: “[...] ‘saber-se negra’ é viver a experiência de ter sido massacrada (o mesmo, é certo para o homem negro) em sua identidade, confundida em suas expectativas, submetida a exigências absurdas além de ser constrangida com expectativas alienadas” (GELEDÉS, 2011). E esse processo de superação ocorre em diferentes momentos e lugares, especialmente fora do ambiente escolar, conforme relata Dandara:

E com certeza não foi na escola, não foi... Foi justamente o local da minha invisibilidade, o fato de eu estar empoderada agora, tranquila, eu acho que começou quando eu cortei o meu cabelo, quando eu fiz a transição do meu cabelo, isso tem mais ou menos uns quatro anos, quando eu fiz a transição [...]. (grifo nosso).

23 SANTOS, Neusa. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. 2.

Como podemos observar, neste depoimento, a escola pouco ou nada teve relação com a sua assunção como negra, frequentemente até dificultando este processo. E ao que demonstra a fala de Dandara, ela passou por todo o processo de assumir-se negra. Para Munanga (2008, p. 14), “Essa identidade passa por sua cor, ou seja, pela recuperação de sua negritude, física e culturalmente”. Chama atenção nas declarações de Dandara a relevância da assunção do cabelo crespo, como fator de assunção da cor da pele, das características negras de modo geral, para a concretização do processo de constituição da identidade negra. Esse processo de conscientização é, portanto, de transformação, conforme observa Paulo Freire (2018a, p. 40) ao dizer que, “Não é possível a assunção que o sujeito faz de si numa certa forma de estar sendo sem a disponibilidade para mudar”. Mas a conscientização não suprime a memória, conforme explica Nilma Gomes (2003, p. 176):

As experiências de preconceito racial vividas na escola, que envolvem o corpo, o cabelo e a estética, ficam guardadas na memória do sujeito. Mesmo depois de adultos, quando adquirem maturidade e consciência racial que lhes permitem superar a introjeção do preconceito, as marcas do racismo continuam povoando a sua memória.

Quem quer ser negro e negra em um País que nega a humanidade e o desenvolvimento deste grupo étnico? Quem quer ocupar os cargos mais subalternizados? Quem quer frequentar por menos tempo a escola? Quem quer ganhar os menores salários e ser alvo principal de todo e qualquer tipo de violência? Por estes e tantos outros motivos, tornar-se negro e negra no Brasil é também um ato ideológico, rompe com o ciclo vicioso de uma política que promove a inferioridade dos negros, retirando-lhes, sempre que possível, poder político e econômico, alimentando a distância entre os dois principais grupos étnicos. Já em 2004, o Estado brasileiro, por meio de suas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana alertava sobre o abismo que existe entre esses dois grupos que mantêm os privilégios, principalmente os financeiros que continuam sob o grupo branco. A afirmação identitária deveria ser direito de todos(as), mas, conforme outra participante da pesquisa, não é estimulada ou ensinada pela escola básica. Muitas vezes, ela emerge em outro nível de formação, mas, certamente, não por conta do tempo da escola, mas, ao contrário, apesar dele. É o que observamos na fala de outra entrevistada:

Eu me autodeclaro como negra, mas isso é bem recente... bem recente, eu nunca tive essa concepção. Quando eu era criança, quando eu era adolescente, mais nova, eu sempre falava que eu não era negra, eu falava que eu era morena. Então é bem recente, eu só comecei a pensar sobre isso e questionar quando eu entrei na faculdade, que a gente começa a abrir mais a mente, mas hoje eu me autodeclaro como negra. (CAROLINA MARIA DE JESUS).

Moura (2005, p. 79) diz que é “[...] descaso da escola pelo reconhecimento das múltiplas ‘identidades’”. Mesmo depois da sanção da

Lei nº 10.639/03-MEC, que altera a LDB (Lei Diretrizes e Bases) e estabelece as Diretrizes Curriculares para a implementação da mesma. A 10.639 instituiu a obrigatoriedade do ensino da História da África e dos africanos no currículo escolar do ensino fundamental e médio. Essa decisão resgata historicamente a contribuição dos negros na construção e formação da sociedade brasileira. (BRASIL, 2004, p. 8).

E a ausência de reflexões acerca dessas questões reforça as representações negativas e o imaginário social depreciativo que a população brasileira possue em relação às pessoas negras. Com isto, a escola deixa de cumprir a sua função. Conforme descrita na Lei nº 9.394/96, das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em seu Art. 2º, a educação é “[...] dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania [...]” (BRASIL, 1996). Todavia, essa cidadania, na prática, não se aplica de forma democrática a alunos e alunas negros e brancos.

Na contramão do que deveria ser, o ambiente escolar, conforme as nossas entrevistadas, parece interferir negativamente no processo de rejeição e aceitação dos indivíduos. A autoafirmação não é algo abstrato que se limita à própria consciência. É o caminho para a luta por condições melhores de vida, através do respeito e da visibilidade negra; é uma reivindicação do direito de existir, o reconhecimento como seres humanos dotados com os mesmos deveres e direitos; a mesma cidadania que, numa perspectiva democrática, aplicar-se-ia a todos(as).

Para Paulo Freire, é papel da escola promover o protagonismo discente em sua identidade política, levando em consideração as experiências discentes, a fim de proporciona- lhes uma educação mais significativa e emancipadora, porque, segundo ele, “[...] o educador democrático não pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão.” (FREIRE, 2018a, p. 28).

Autodeclarar-se negra e negro, conscientemente disso, é reivindicar um de seus direitos mais fundamentais como cidadão, o reconhecimento. Felizmente, o caminho para a conscientização tem encontrado, na autodeclaração, um elemento central nesse processo de conquista, nos últimos anos. Já que aumentou o número de pessoas que se autodeclaram pretas(os) e pardas(os), como dito anteriormente. Evidenciar a identidade negra é uma forma de afirmar um grupo que está em processo de reivindicação e de reconhecimento. Para isto, é preciso a delimitação da categoria negro – “[...] composta por pretos e pardos conforme o

IBGE.” (SILVA, 2012, p. 60). Esta afirmação fortalece o movimento da negritude auxiliando os avanços do grupo étnico negro de modo geral.