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3.3 VIVÊNCIAS, PERCEPÇÕES E CONSCIÊNCIA

3.3.2 Empoderamento feminino

Empoderamento, conforme o entendimento do professor e estudioso Paulo Freire, é um processo de emancipação de pessoas e/ou grupos, principalmente, se estes são tidos como “minoritários”, o que muitas vezes não é, como o caso da comunidade negra que compõe mais da metade do povo brasileiro. Ao falar do contexto estadunidense, onde nasceu esse conceito, Freire (2018a, p. 98-99) diz que “[...] nada justifica a minimização dos seres humanos, no caso, das maiorias compostas de minorias que não perceberam ainda que, juntas, seriam a maioria”. Emancipação para que essas pessoas e grupos tenham mobilidade social, para que as oportunidades também cheguem nesta ponta da sociedade. Por isso, socialmente, o empoderamento pode ser compreendido como uma forma de fortalecer os grupos oprimidos. O empoderamento é o caminho para alcançar a emancipação social, política, econômica, cultural e estética.

O empoderamento se faz necessário, sobretudo no contexto brasileiro feminino, em que a assunção das características negras aparentam ser o início desse processo. Descobrir em si mesmo possibilidades, que talvez nunca tenham sido pensadas antes, como o reconhecimento definitivo da beleza negra, é um caminho necessário. Para Dandara, esse foi um marco em seu processo: “Porque já havia um trabalho de mulher empoderada, eu já era a mulher empoderada, mas a partir daquele momento foi que eu assumi a mulher empoderada, negra [...]”. Ela se refere ao momento em que assumiu o seu cabelo natural: “‘Corta!’. E aí ele cortou, e acho que aquele momento foi o dia que eu assumi a capa, do estou empoderada” (DANDARA). Outra entrevistada, Luisa Mahin, revela perspectiva semelhante em sua história:

Hoje eu posso dizer que eu me declaro, eu acredito que eu sou uma mulher empoderada. E antes, desde de mais nova, eu não tinha, assim, esse empoderamento, essa confiança, essa autonomia [...] não me considerava uma mulher empoderada, mas hoje eu me considero, porque eu não vou mais pela maioria, pela sociedade, e sim pelo que me faz bem, pelo que eu me sinto eu, [...] e eu comecei a realmente me aceitar e me sentir realmente uma mulher empoderada. Quando eu me aceitei, aceitei não só a minha cor, mas também o meu cabelo.

Como se observa, o empoderamento é, nesse sentido, um enfrentamento às estruturas opressoras e dominantes, quer sejam econômicas, quer sejam políticas, quer sejam estéticas.

Empoderadas podemos perceber a reconstrução de caminhos que rompem com uma tendência opressora. É dizer existimos, estamos presentes e queremos participar. Berth (2018, p. 19), estudiosa do conceito, explica que compreende “empowerment” como “[...] o processo de ganhar liberdade e poder para fazer o que você quer ou controlar o que acontece com você”. Assim como Freire (1987), ao relacionar empoderamento à classe social, Calvés (2009, p. 735- 749 apud BERTH, 2018, p. 25) entende que somente por meio da reconstrução da própria cultura é que se obtém-se o poder social e político: “O empoderamento refere-se a princípios, como a capacidade de indivíduos e grupos agirem para garantir seu próprio bem-estar”.

Mas, o empoderamento não se faz sozinho, ele se constitui no contexto de uma rede de apoio e proteção. E quanto mais rápido as meninas e mulheres se inserem nessa rede, mas rápido se estrutura o processo de consciência negra. Ao ser questionada sobre isso, Lélia Gonzalez responde:

Sim, acredito. Primeiro porque pela cor da melanina, então nunca tive dificuldade de me olhar no espelho e entender qual era o meu local, qual era meu lugar, qual era minha identidade. [...] tive uma mãe [...] que nunca teve também dificuldade de entender a identidade dela, uma avó e as tias também. [...] me fez entender o papel das mulheres na minha família dentro dessa sociedade [...]. O lado da família do meu pai, eu também tinha uma quantidade de tias, já que meu pai tinha seis irmãs, então minhas tias eram casadas, compreendiam a sua natureza negra, o seu papel de mulher negra, gostavam de samba, gostavam de roupas coloridas, entendiam na articulação do meu avô e da minha avó, do lado da minha mãe eu tinha um avô negro que tinha um centro espírita. Então todo esse processo me ajudou na minha identidade no meu reconhecimento de mulher negra. Então, eu nunca tive essa dificuldade, de me reconhecer, nem de me apresentar como.

Essa rede de apoio/proteção, cujo berço é a própria família, fez com que ela se estabelecesse de forma segura e positiva desde criança acerca de sua identidade. Assim, a descrição de Lélia Gonzalez, sobre seu avô e sua religião, vem ao encontro do que Neusa Santos aponta como a negação da identidade. Para ela, “[...] afastado de seus valores originais, representados fundamentalmente por sua herança religiosa, o negro tomou o branco como modelo de identificação, como única possibilidade de tornar-se gente.” (GELEDÉS, 2011).

Nessa direção, outra participante da pesquisa aponta a rede de apoio/proteção no processo de seu empoderamento: “[...] sim. [...] Toda a minha vida, sempre. Porque eu fui criada assim, e eu entendo quem eu sou, como eu sou, e não deixo que isso faça diferença entre mim, e as outras pessoas.” (TEREZA DE BENGUELA).

Considerando a missão educadora da instituição escolar, ao lado da família ou mesmo sem ela, a escola deve ser também essa rede. Por isso, superando a tradicional omissão, deve intervir e proporcionar ela mesma esse apoio/proteção dentro de seu ambiente. As falas de

outras participantes revelam a composição dessa rede de diferentes formas, demonstrando o quão importante ela se faz nesse processo de emancipação:

[...] e foram aparecendo mais pessoas com o cabelo assim, lá no meu trabalho, algumas pessoas também cortaram, então não era mais só eu. Então, eu creio que a minha decisão, ajudou na decisão delas também. Então, foi uma ajudando a outra, meio que nas entrelinhas [...]. (LUISA MAHIN).

Outra forma de rede de apoio/proteção, conforme o depoimento de Carolina Maria de Jesus, foi

[...] na faculdade [...] a gente começa a conhecer muitas pessoas, conhecer muitas histórias [...] foi onde eu comecei a me questionar em relação a várias coisas, a vários tipos de preconceitos, e até preconceito meu mesmo, em relação a outras coisas. Então eu me considero em processo, eu acho que eu estou me empoderando aos poucos.

Neste último caso, é possível observar que a rede de apoio/proteção estruturou-se no ambiente universitário, lugar que, em geral, volta-se para o questionamento crítico e pela presença de uma diversidade que, progressivamente, se afirma.

Freire e Ira Shor (1987), ao tratar do empoderamento, em Medo e Ousadia, ressaltam que essa libertação não deve acontecer apenas de um modo individual, já que assim não será o bastante para atingir a transformação social. Para eles, é preciso que a emancipação seja coletiva e transforme a percepção crítica da realidade, ajudando a todos e a todas a se libertarem.

Para Freire (2018a), este é o desafio da escola, tornar-se um ambiente que proporcione a consciência crítica, transcender seus(as) educandos(as), estendendo-se a toda a sociedade.

[...] pedagogia do oprimido: aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de resuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará. (FREIRE, 2018b, p. 43, grifos do autor).

A conscientização é uma categoria de libertação que, como forma de atuação, permite que os indivíduos e coletivos desconstruam e reconstruam suas consciências críticas de uma forma indissociável do empoderamento. Para Freire (2018a, p. 56-57), esse processo de constituição de consciências é “A consciência do mundo e a consciência de si como ser inacabado necessariamente [que] inscrevem o ser consciente de sua inconclusão num permanente movimento de busca”, para a contestação das relações de poder, questionando práticas e discursos opressores.