• Nenhum resultado encontrado

Hoje eu sei que eu sou uma mulher negra periférica e me orgulho disso. Mas nem sempre foi assim. A experiência branca – branquitude – que vivenciei na escola fez com que eu constituísse uma consciência silenciada do meu próprio eu, que pode ser entendida como uma “[...] consciência então limitada por causa da minha formação hegemonicamente influenciada pela branquitude” (ROSSATO; GESSER, 2001, p. 20). Foi uma forma de evitar as feridas

9 SARDENBERG, Cecília M. B. Conceituando “empoderamento” na perspectiva feminista. p. 6. Disponível

em: https//repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/6848. Acesso em: 5 mar. 2018. [Transcrição revisada da comunicação oral apresentada ao I Seminário Internacional: Trilhas do Empoderamento de Mulheres – Projeto TEMPO, promovido pelo NEIM/UFBA, em Salvador, Bahia].

profundas que o racismo causa. O branqueamento é observado aqui como uma forma de silenciamento em relação à existência do outro e de si mesmo.

O processo de branquitude obriga negros e negras a assumirem atitudes que representam e, portanto, aproximam-se da experiência branca como, por exemplo, alisar os cabelos, relacionar-se com pessoas brancas, esperando que seus filhos nasçam mais claros, submeter-se a procedimentos estésticos para clarear o tom de pele, buscando um tipo de selo de aceitável.

O branqueamento é tido como um problema do negro que, na sua insatisfação estética, procura ao máximo parecer-se com o branco, enfraquecendo a autoestima e a autovalorização da população negra. Como nos diz Bento (2002, p. 2):

[...] essa apropriação acaba legitimando sua supremacia econômica, política e social. O outro lado dessa moeda é o investimento na construção de um imaginário extremamente negativo sobre o negro, que solapa sua identidade racial, danifica sua auto-estima, culpa-o pela discriminação que sofre e, por fim, justifica as desigualdades raciais.

Nomeação de branquitude, conforme a coordenadora executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), Cida Bento (2002, p. 21), refere-se a “[...] traços da identidade racial do branco a partir das idéias sobre branqueamento, um dos temas mais recorrentes quando se estuda as relações raciais no Brasil”.

A branquitude é uma atitude racista que fortalece a reprodução do racismo, desvaloriza o outro somente pelo que ele é, “[...] fazendo com que, conforme a cor da pele, as pessoas se sentissem mais ou menos privilegiadas umas em relação às outras” (ROSSATO; GESSER, 2001, p. 16). O racismo descaracteriza as pessoas negras como seres humanos, reforçando a crença de que a negritude na nossa sociedade é sinônimo de desajuste, já que o modelo padrão de humanidade é o branco. E é esse desajuste e descaracterização que precisamos evitar para que possamos ser minimamente respeitados(as).

Quando não se entende a profundidade e a importância da negritude, enxergamos a branquitude como uma válvula de escape de todo o horror que o preconceito e o racismo venham gerar, quando, na verdade, este processo de branqueamento é um grande produtor de conflitos internos e externos. Munanga (2009, p. 41) destaca que, em relação a negros e negras, esse processo “[...] criou sua desestabilidade cultural, moral e psíquica, deixando-o sem raízes, para melhor dominá-lo e explorá-lo”. A branquitude foi arquitetada e legitimada pelos ancentrais europeus, brancos, masculinos das classes dominantes. Segundo Cida Bento (2002, p. 7),

[...] o ideal do branqueamento nasce do medo, constituindo-se na forma encontrada pela elite branca brasileira no final do século passado para resolver

o problema de um país ameaçador, majoritariamente não-branco, repercutindo, ainda nos dias atuais, nos currículos escolares, nas formações de professoras(es), nas interações dentro das escolas, nas práticas educacionais, enfim, em toda a sociedade, exceto nos grupos e espaços em que, pela natureza conscientizadora, lutam-se contra ele.

Nos espaços escolares, assim como no restante da sociedade brasileira de modo geral, a exclusão baseada simplesmente na cor da pele salta aos olhos. A branquitude dentro das escolas, espaços de reprodução das desigualdades, influencia também os contextos pedagógicos e sociais. Embora o espaço escolar devesse ser um ambiente regularmente inclusivo para nossas crianças e adolescentes, ao contrário, é o meio no qual eles(as) aprendem a internalizar práticas racistas, como algo natural. A escola aplica e permite situações de opressão e preconceito, quando, por exemplo, permite que rótulos e estigmas roubem o direito à dignidade do “outro”.

[...] diferentes estudiosos têm se preocupado com a maneira como os negros foram e vêm sendo atingidos pela ideologia do branqueamento no Brasil. A militância negra tem destacado persistentemente as dificuldades de identificação racial como um elemento que denuncia uma baixa auto-estima e dificulta a organização negra contra a discriminação racial (BENTO, 2002, p. 27).

As naturalizações e minimizações de discriminações na escola só aumentam as desigualdades raciais e sociais, uma herança negra do período da escravidão. Em oposição a isso, a herança das classes dominantes é o processo de branqueamento/branquitude que atua historicamente para perpetuar a supremacia branca. Nesse sentido, encarar as consequências da escravidão é primordial, se quisermos pensar a negritude como a busca por outro caminho de justiça social.

Para tanto, é preciso que a escola assuma esta responsabilidade de debater essas questões, a partir de um diálogo verdadeiro sobre a ambiguidade da libertação, demonstrando as contradições presentes na relação de dominante e dominado. Essa é uma missão de todos(as), que não se faz possível sem uma reflexão crítica e analítica sobre o papel do branco nas relações de desigualdades raciais e sociais no Brasil, rompendo com o pré-conceito de que as discussões raciais dizem respeito apenas aos negros e negras.

O papel pedagógico da escola com os(as) alunos(as), professores e demais segmentos da comunidade tem como intuito, no mínimo, desmotivar as discriminações e as desigualdades, para não repetirmos os erros do passado. Rossato e Gesser (2001, p. 29) consideram que, para enfrentar essa situação, “[...] é importante dar nome a nossos sentimentos, nossas atitudes e mapear este fenômeno tão fortemente enraizado mundialmente”. Discutir para a compreensão deste problema na escola significa construir novos valores e melhores condições de vida para toda a humanidade.

Aportando-se em Freire (2018b, 1996a), Rossato e Gesser (2001, p. 29) afirmam que o “[...] diálogo autêntico é a forma de reduzir esta relação de opressão entre raças. Consequentemente, essa atitude construiria vias de convivência respeitosa em que todos fossem considerados, visando assim a um plano de bem-estar comum”.

Os autores do capítulo “A experiência da branquitude diante de conflitos raciais:

estudos de realidades brasileiras e estadunidenses” nos alertam quanto aos “invisíveis no

currículo da escola” (ROSSATO; GESSER, 2001, p. 30). Essa invisibilidade que marca a história destes indivíduos gera, dentre outras situações, o abandono escolar, que é compreensível, já que crianças e jovens, através do processo de branquitude e a experiência do racismo sofrido dentro da escola, concluem, consciente ou inconscientemente, que aquele lugar não lhes pertence.

Opondo-se à branquitude, a negritude vem se constituindo como um movimento de retomada histórica das origens do povo negro e suas relações com a cultura contemporânea. Trata-se de refletir sobre a construção da identidade negra desde a diáspora africana, problematizar a escravidão, o colonialismo, a libertação, a colonialidade e as suas diversas consequências, bem como de criar e promover movimentos e narrativas de emancipação.

Como se observa, ainda que a negritude tenha sido alvo de muitos questionamentos teóricos, conforme documentado por Munanga e outros pesquisadores, no contexto brasileiro, ela se faz decisiva, primeiramente, para a tomada de consciência de crianças, adolescentes, jovens e adultos, da situação na qual negras e negros foram postos, e, num segundo momento, para a ação transformadora. Tornar a negritude significativa, a fim de fazer este processo de assunção da identidade é, em si, uma reação à agressão racial branca. Conforme analisa Munanga (2009, p. 44), “[...] a liberação do negro deve efetuar-se pela reconquista de si e de uma dignidade autônoma. O esforço para alcançar o branco exigia total autorrejeição; negar o europeu será o prelúdio indispensável à retomada”.

Sendo a emancipação resultado da relação intrínseca de negro(a) com a negritude, a tomada de consciência, primeira etapa da conscientização, vem afirmar e construir solidariedades entre os grupos, fortalecendo, assim, o movimento mais amplo de luta pela libertação. A negritude, para o antropólogo e professor Kabengele Munanga (2009, p. 63), representa um protesto contra a atitude do europeu em querer ignorar outra realidade que não a dele, uma recusa da assimilação colonial, uma rejeição política, um conjunto de valores do mundo negro, que deve ser reencontrado, defendido e mesmo repensado.

Para a formação da identidade é preciso memória. Memória construída através das vivências pessoais e também do grupo, fornecidas pela socialização, dados da história que

estabelece os tipos de referências. Permitir ao(à) negro(a) encontrar-se na história e conhecer os benefícios que seu povo proporcionou e a partir daí conquistar seu lugar no mundo moderno, propiciar expressões e aspirações, a fim de compreender o indivíduo negro potente que sempre foi, que é e ainda pode ser.

Em uma sociedade excludente como a brasileira, a escola é “[...] condição para a inserção social e privilégio de poucos indivíduos” (SOUZA, 2001, p. 182). Em contraposição a isso, a escola deveria intervir desenvolvendo discussão e reflexão do conceito de negritude, para suscitar nos(nas) alunos(as) o exercício da busca pela construção de argumentos para lidar com situações preconceituosas e discriminatórias, de forma que possam, ao menos, defender- se, além de aprender a buscar argumentos para as concretizações de suas afirmações na sociedade. A negritude na escola é uma das diversas formas de incentivo ao respeito às diferenças, como protagonismo, e não mais como uma fraqueza.

Precisamos urgentemente falar das experiências racistas que nossas crianças negras passam e de como isso interfere na sua construção como negro (a). Precisamos ensiná-las a se amar e precisamos ensinar também as crianças brancas a abaixar o chicote do racismo. Cada ponto por menor que seja será usado contra nós pela branquitude. (GELEDÉS, 2018).

A negritude se faz necessária na escola, sobretudo para acabar com o silenciamento. Quantas vezes denunciamos diversas discriminações sofridas e atitudes racistas e esperávamos que os(as) professores(as) e a escola nos ajudassem, mas, ao contrário disso, simplesmente éramos ignorados. Não se dava importância em nossa fala, isto é, em nossa existência, já que a educação, como Freire ensinou, só ocorre quando as pessoas conseguem dizer a sua palavra. Nessa escola, o silenciamento nos forçava a acreditar o quanto éramos irrelevantes naquele lugar. A negritude nos ensina que a escola para ser verdadeira é aquela em que toda e qualquer violência sofrida por alguém ou aplicada a alguém deve importar.

2 EDUCAÇÃO: IDENTIDADE, DISCRIMINAÇÃO E RACISMO

Assumir a negritude feminina no atual contexto em que vivemos, dentro de uma cultura machista, racista e discriminatória é um ato de bravura, uma vez que mulheres não negras podem optar sobre ser e estar, e a mulher negra traz na pele uma marca que não lhe proporciona outra opção em ser. Uma vez reconhecidas como tal, surge a necessidade da luta por respeito e dignidade! São muitas complexidades em nossas vidas e as mulheres negras não desistem! (ROSA, 2013, p. 37).