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2 ESCRITA DE SI / ESCRITA DO OUTRO

2.2.2 Autoficção: uma aventura teórica

A discussão em torno do conceito de autoficção não é pacífica. Isso se deve tanto à polissemia da palavra, que remete a duas significações distintas – criação ficcional de si mesmo e/ou mescla dos gêneros romanesco e autobiográfico –, quanto à origem do fenômeno. O próprio Serge Doubrovsky admite não ser o seu criador, apenas do nome dado a essa forma romanceada de escrever uma autobiografia: “não sou de modo algum o inventor dessa prática, da qual já citei ilustres exemplos: sou o inventor da palavra e do conceito” (DOUBROVSKY, 2014, p.120).

Assim, mesmo que, para alguns, a autoficção surja como uma solução para os impasses legados pela autobiografia, o conceito em seu sentido mais amplo – estratégia narrativa em que o autor escreve um romance baseado em suas próprias experiências de vida – corre o risco de ser utilizado de forma indiscriminada, como aponta Lejeune, ao chamá-lo de “palavra-valise”. Para outros, em contrapartida, o termo não faz mais do que “rotular” uma prática há muito tempo utilizada pelos escritores: o uso de elementos ficcionais em obras que assumem um caráter ambíguo entre a ficção e a autobiografia. Com base nisso, poder-se-iam incluir sob a alcunha de autoficção livros como Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, O Aleph, de Jorge Luis Borges, O amante, de Marguerite Duras, e, inclusive, A divina comédia, de Dante Alighieri.72

Falta, conforme afirma Philippe Gasparini (2014, p.183-184), “entrar em entendimento sobre seu conteúdo e seus limites”, bem como “determinar se a ‘autoficção’ corresponde a uma categoria que já existia [...] ou designa um meio de expressão totalmente novo, próprio de nossa época”. Em outras palavras, “se ele é o nome atual de um gênero ou o nome de um gênero atual” (GASPARINI, 2014, p.184). Inclusão na teoria geral dos gêneros

71 Jean-Louis Jeannele discute, em “A quantas anda a reflexão sobre a autoficção”, o que designa precisamente o

termo autoficção e chega à conclusão de que passado tantos anos da invenção do termo, continua sendo impossível responder a essa pergunta. Com base nisso, ele propõe outra definição, de âmbito bastante geral: “a autoficção é uma aventura teórica”, composta de “três fatores essenciais que são a teoria, a polêmica e o prazer” (JEANNELE, 2014, p.127).

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Para Vincent Colonna (1989, 2014), o neologismo autoficção inscreve-se em um âmbito mais geral de ficcionalizações de si. Nesse sentido, todo livro em que se pode perceber a projeção do autor em situações imaginárias pode ser considerado como uma autoficção.

que, por outro lado, também não deixa de suscitar problemas, haja vista que a classificação genérica propicia a eliminação de ambiguidades ou equívocos durante a interação e a autoficção propõe-se a explorar justamente o contrário: o inacabamento, as confusões e a indecidibilidade do texto.

Essa imprecisão terminológica e constitutiva fez com que outros estudiosos pudessem apropriar-se do termo e redefini-lo. Tal como realiza Jacques Lecarme (2014, p.68): “a autoficção é inicialmente um dispositivo muito simples: ou seja, uma narrativa cujo autor, narrador e protagonista compartilham da mesma identidade nominal e cuja denominação genérica indica que se trata de um romance”. Sentido simplificado e de viés pragmático que permite ao crítico abarcar sob o bojo do neologismo escritores como André Malraux, Louis- Ferdinand Cèline, Roland Barthes, Georges Perec, Philippe Sollers, Patrick Modiano, dentre outros.

Longe de suscitar consenso, o novo conceito passou a ser estudado e questionado tanto no âmbito francês quanto fora dele. Jacques Lecarme constitui-se em seu primeiro defensor, mas, com certeza, foi a sua rápida repercussão o que levou muitos teóricos a refletir sobre o vazio terminológico abarcado pelo termo autoficção. Trata-se de obras que, na falta de uma denominação genérica apropriada, eram difíceis de classificar e, consequentemente, de estudar.

Na esteira dessa problemática, Vincent Colonna defendeu, em 1989, sob a orientação de Gerard Genette, uma tese sobre o assunto – L’autofiction (essai sur la fictionalization de soi em Littérature) –, publicada quinze anos depois (com alterações) sob o título Autofiction & autres mythomanies littéraires. Em seu trabalho, ele propõe outra acepção para o neologismo autoficção, estendendo o termo a um conjunto de procedimentos de “ficcionalização de si”, que remonta a Luciano de Samósata e remete a técnicas há muito tempo utilizadas na pintura: “‘La fictionalisation de soi’, la démarche qui consiste à faire de soi un sujet imaginaire, à raconter une histoire en se mettant directement à contribuition, en collaborant à la fable, en devenant un élément de son invention” (COLONNA, 1989, p.9).73

Com base nessa nova acepção da palavra, Colonna apresenta uma tipologia da autoficção, na qual o modelo doubrovskyano seria apenas uma de suas manifestações. Haveria uma autoficção fantástica, cujo herói possui o mesmo nome do escritor, mas “transfigura sua existência e sua identidade em uma história irreal” (COLONNA, 2014, p.39),

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Tradução nossa: “‘A ficcionalização de si’, o percurso que consiste em fazer de si um sujeito imaginário, em contar uma história colocando-se diretamente em contribuição, colaborando na fábula, tornando-se um elemento de sua invenção”.

ou seja, inventa-se outra vida completamente diferente da sua biografia. Uma autoficção biográfica, que, ao contrário da anterior, caracteriza-se pela fabulação de experiências reais (“mentir-verdadeiro”), evitando, portanto, o fantástico. Uma autoficção especular, em que há um reflexo do processo de escrita e/ou do escritor dentro do texto, semelhante aquele utilizado por Velasques no quadro As meninas. E, por fim, uma autoficção intrusiva (autoral), na qual o escritor, que não faz parte da intriga como personagem, intervém nela por meio de seus comentários, criando uma história paralela, espécie de história da história, como faz Balzac e mesmo Machado de Assis.

O seu objetivo é definir as especificidades dessa prática, por conta, principalmente, da inscrição íntima do autor – que se inventa uma personalidade e uma existência puramente fictícias, mas conserva o seu nome verdadeiro –, em um mundo imaginário que lhe é próprio. Essa definição resulta na ampliação do termo tanto geográfica, fora dos limites da França, quanto temporalmente, compreendendo produções que não estão circunscritas apenas à modernidade ou à pós-modernidade.74 Obviamente, tal reformulação resultou em numerosas críticas, por conta principalmente de sua extensão temporal e do papel conferido à figura do escritor-autor (elemento de referência fundamental para Colonna, contrariando a ênfase dada por Doubrovsky ao trabalho com as palavras).

Em oposição às inovações propostas pelo neologismo doubrovskyano, Gerard Genette, em Fiction et diction (1991 apud LECARME, 2014), parte da diferença pragmática que os textos de ficção e de não-ficção/dicção formulam em relação às categorias de autor e de narrador para definir as autoficções verdadeiras daquelas consideradas como falsas. Em resumo, nos textos não-fictícios, o autor marcaria a sua adesão sincera ao relato, identificando-se com o narrador (autobiografia e relato histórico, por exemplo), enquanto que, nos textos fictícios, a diferença de identidade entre eles permitiria ao autor realizar afirmações sem comprometer-se efetivamente com elas (romance, sobretudo). No caso da autoficção, Genette compreende que essa forma de escrita é caracterizada pela identidade nominal autor- narrador-personagem, mas que, apesar disso, mantém a dissociação entre o autor e o narrador própria da ficção:

74 Podemos situar a pós-modernidade, se é que essa nova configuração tempo-espacial realmente ocorre, a partir

da segunda metade do século XX. Em síntese, o conceito faz referência à condição sociocultural e estética que prevalece no capitalismo contemporâneo e a consequente crise das ideologias que dominaram o mundo após a queda do muro de Berlim. O emprego do termo pós-modernidade, no entanto, gera uma série de controvérsias quanto ao seu significado e à sua pertinência, uma vez que, aliado à recusa do paradigma moderno e de seus modos de racionalidade, de seus valores e das grandes narrativas que o legitimaram, ele inclui em sua acepção, de um lado, a própria ideia moderna de pensamento crítico e, de outro, pressupõe uma sequência temporal, com a consequente superação da modernidade.

Figura 2 – Relação autor (A), narrador (N) e personagem (P) na autoficção

A

≠ = N = P

Fonte: (GENETTE, 1991 apud LECARME, 2014, p.71).

De acordo com o teórico, a “autoficção verdadeira” é um mero jogo metafictício de imersão fingida do autor em seu próprio texto, que não compromete a verossimilhança do relato. Por isso, não há porque defender a correspondência entre autor e narrador em um texto que se declara como de ficção, uma vez que essa identidade somente seria possível em textos de dicção. Em contrapartida, as autoficções que asseguram o compromisso em transmitir conteúdos verdadeiramente autobiográficos são consideradas por Genette como “falsas autoficções” ou “autobiografias envergonhadas” que se escondem por detrás do paratexto romance. Definição de caráter valorativo na qual se percebe a permanência de uma visão conteudista e formal de literatura, em que pese o intento do teórico de superá-las ao considerar o contexto de produção e recepção dos textos de dicção.

Outros trabalhos sucederam-se ao de Colonna e de Genette, apontando ora para a possibilidade de estabelecimento desse novo gênero como uma variante ou uma renovação da autobiografia (tese defendida por Serge Doubrovsky, Jacques Lecarme e Alain Robbe- Grillet),75 ora vinculando-a aos romances em primeira pessoa, como realiza Marie Darrieussecq76 e Philippe Forest.77 Contraponto importante, pois, agora, “não era mais [...] somente em função do modelo autobiográfico que se indagava sobre esse tipo de narrativas intermediárias, mas sim em função do modelo romanesco” (JEANNELLE, 2014, p.137), o qual, devido a sua plasticidade constitutiva, poderia oferecer novas possibilidades de desenvolvimento para o gênero.

75 De acordo com Jean-Louis Jeannelle (2014), Jacques Lecarme defende a autoficção como uma renovação do

gênero autobiográfico e Alain Robbe-Grillet chama-a de “Nova Autobiografia”.

76 Segundo Manuel Alberca (2005-2006, p.117), “Marie Darrieusecq considera la autoficción como una variante

subversiva de novela en 1ª persona, pues iría derecho a transgredir el último reducto del realismo: el nombre propio”.

77 Para Philippe Forest (2001 apud VILAIN, 2009), a autoficção participa tanto do que ele denomina de “ego-

Aliado a isso, o debate introduzido por Philippe Gasparini, em sua obra Est-il je, de 2004, reavivaria velhas questões insuficientemente problematizadas até aquele momento. Assim, se a crença na validade referencial da autobiografia passou a ser vista, no mínimo, como ingênua, a reivindicação dessa categoria pelos escritores que praticam a autoficção (“Ficção de acontecimentos e fatos estritamente reais”) também é posta em análise.

Para Gasparini, o problema reside na compreensão talvez equivocada da definição de autobiografia proposta por Philippe Lejeune. Na opinião do crítico, a definição do pesquisador francês deixa em suspenso à eterna questão da verdade dos enunciados para enfatizar a intenção do autor, o “seu compromisso em buscar e retranscrever os rastros de sua experiência pessoal” (GASPARINI, 2014, p.190). Por conseguinte, torna-se irrelevante verificar se os dados ficcionalizados aconteceram ou não daquela forma na vida “real”, pois o pacto autobiográfico não é firmado nesses termos, mas se estabelece a partir do momento em que o leitor reconhece o esforço do escritor no processo de reconstituição e de interpretação da própria experiência.

Dessa forma, ao assumir a forma de um contrato, o qual depende, obviamente, do contexto sociocultural no qual foi instaurado, Lejeune deixa claro que a sua definição de autobiografia não é rígida ou acabada, mas relativa, porque é histórica. Por essa razão, ele não lhe destina apenas uma casa do seu quadro explicativo (reproduzido no subcapítulo 2.2 – Figura 1), mas uma zona inteira, a qual se amplia consideravelmente ao invadir também o campo do romance. Fenômeno intitulado pelo pesquisador de “espaço autobiográfico”, o qual demonstra que, em determinadas circunstâncias, obras concebidas como de ficção podem ser lidas segundo as leis do pacto autobiográfico.

Gasparini defende, com base nisso, que “o termo autoficção deveria ser reservado aos textos que desenvolvem, em pleno conhecimento de causa, a tendência natural a se ficcionalizar, própria à narrativa de si” (2014, p.217). Nesses textos, diferente da autobiografia, não há a intenção do escritor de dizer a verdade sobre a sua vida, pois eles oferecem-se puramente como ficcionais. Defende ainda que, de um ponto de vista pragmático, a autoficção estaria em contiguidade com o romance autobiográfico, pois ambos baseiam-se em um duplo contrato de leitura: o verídico e o romanesco. Apesar disso, ao serem denominados pelo neologismo, os textos literários contemporâneos transformam-se em outra coisa:

Não são mais textos isolados, esparsos, inclassificáveis, nos quais um escritor dissimula com mais ou menos engenho suas confidências sob um verniz romanesco,

ou vice-versa. Inscrevem-se em um movimento literário e cultural que reflete a sociedade de hoje e evolui com ela. (GASPARINI, 2014, p.217).

Portanto, para o crítico, a palavra insere-se em um momento oportuno ao traduzir e cristalizar uma série de dúvidas e questionamentos levantados, desde o início do século XX, por teóricos e poetas como Freud, Nietzsche, Sartre e Valéry. Esses questionamentos abalaram as noções de sujeito, identidade, verdade, sinceridade e escritas do eu, constituindo- se nos antecedentes históricos do termo autoficção. Gasparini opõe-se, desse modo, a ideia de que se trata de um novo gênero, “une forme d’expression inédite, postmoderne, sans antécédent, sans généalogie, sans histoire” (2004, p.12), e defende a tese que o neologismo é antes o nome atual de um gênero historicamente excluído: o romance autobiográfico. Ou melhor, não se trata de um gênero stricto sensu, mas de um “espaço genérico”, pois o romance autobiográfico na sua acepção (baseada na definição de Philippe Lejeune) 78 comporta graus, visto que cada texto adota uma posição particular sobre o eixo ficção/referente.

A palavra autoficção abarcaria, desse modo, todos os textos – passados ou contemporâneos, narrativos ou discursivos, com ou sem contrato de verdade – em que se supõe a inscrição íntima e reveladora de um indivíduo, o autor. Ela compreenderia o espaço autobiográfico inteiro, funcionando como um “arquigênero” ou uma “palavra-narrativa que basta desdobrar para que apareçam todos os tipos de histórias pessoais” (GASPARINI, 2014, p.218).

Extensão problemática em nosso entendimento, pois pressupõe que o discurso autoficcional é a mola propulsora desse processo de ampliação do espaço biográfico na contemporaneidade, quando talvez seja apenas uma das suas manifestações, bem como pressupõe que não há nenhuma diferença entre as formas pertencentes ao campo das escritas do eu ou que o leitor é incapaz de percebê-las. Sendo assim, ainda que estejamos de acordo com Philippe Gasparini em relação aos antecedentes históricos do termo, a sua percepção sobre o fenômeno carece de aprofundamento no que tange a uma teoria dos gêneros discursivos.

Compartilhamos, neste sentido, do destaque dado por Manuel Alberca ao trabalho do pesquisador francês:

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Para Lejeune, na categoria de romance autobiográfico entrariam “todos os textos de ficção em que o leitor pode ter razões de suspeitar, a partir das semelhanças que acredita ver, que haja identidade entre autor e personagem, mas que o autor escolheu negar essa identidade ou, pelo menos, não afirmá-la” (2008, p.25).

Podemos considerar las autoficciones hijas o hermanas menores de las novelas autobiográficas, pero en ningún caso debemos confundirlas, pues en las segundas el autor se encarna total o parcialmente en un personaje novelesco, se oculta tras un disfraz ficticio o aprovecha para la trama novelesca su experiencia vital debidamente distanciada mediante una identidad nominal distinta a la suya. (2005-2006, p.116).79

Há, por conseguinte, uma diferença composicional e de recepção entre o romance autobiográfico e a autoficção que precisa ser considerada. Ademais, como salienta Mikhail Bakhtin (2006, p.262), “o repertório de gêneros do discurso [...] cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo”. Desse modo, se considerarmos a heterogeneidade constitutiva dos gêneros, ou seja, o fato de que eles incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (da comunicação oral imediata, como o diálogo e a conversação cotidiana) e também secundários (formas escritas que surgem de um convívio cultural mais complexo: jornalísticos, literários, políticos, científicos, jurídicos, etc.), torna-se redutor afirmar que a autoficção seja somente um desdobramento pós-moderno da autobiografia ou então do romance autobiográfico. Provavelmente ela seja o resultado da hibridização de mais de um gênero discursivo, decorrente da complexificação e da ampliação do campo das narrativas do eu que vem se processando desde o final do século XIX.

Com base nessas considerações, o debate em torno da autoficção parece-nos oscilar entre uma conceituação mais restrita, que se baseia tão somente em dois critérios, genérico (paratexto romance) e nominal (homonímia entre autor-narrador-personagem principal), com a peculiaridade de que ambos devem apresentar-se como uma decisão literária voluntária; e outra mais ampla, que estende o conceito a outras formas de ficcionalização de si (fabulação imaginária de eventos e da figura autoral) ou, então, compreende-a como pertencente a um espaço autobiográfico ampliado, próximo do romance autobiográfico e/ou do romance em primeira pessoa.

Se partirmos da conceituação mais restrita, a discussão tende a retomar sempre para as mesmas questões que a autobiografia já suscitava. O que leva a uma espécie de circularidade teórica que não aponta para perspectivas inovadoras e realmente profícuas, capazes de dar conta das dificuldades de representação de um “eu” cada vez mais descentrado, fragmentado e múltiplo. Em nossa opinião, isso se deve à falta de problematização em relação à incorporação por parte da autoficção da homonímia entre autor-narrador-personagem

79 Tradução nossa: “Podemos considerar as autoficções filhas ou irmãs menores dos romances autobiográficos,

mas em nenhum caso devemos confundi-las, pois nas segundas o autor se encarna total ou parcialmente em um personagem romanesco, se oculta atrás de um disfarce fictício ou aproveita para a trama romanesca sua experiência vital devidamente distanciada mediante uma identidade nominal distinta à sua”.

principal, tendo-se em vista o contexto histórico de nascimento do termo e o fato de o nome próprio do autor não ser um nome qualquer, antes exercer uma função-autor de ordem classificatória e descritiva.

Em contraposição, se partirmos da conceituação mais ampla, a autoficção tende a perder toda a sua especificidade e autonomia teórica, uma vez que a relação problemática acerca dos limites entre verdade/ficção é facilmente desfeita em prol desta última. Mesmo assim, não há como negar que a exploração da figura do autor por parte do romance e a ruptura e a hibridização dos gêneros tradicionais na literatura contemporânea conduziram a uma extensão considerável do espaço (auto)biográfico.

Encruzilhada conceitual que nos fez pensar sobre a escrita autoficcional a partir de caminhos teóricos aparentemente díspares: o funcionamento problemático do nome próprio e a sua importância no processo de construção identitária de um sujeito fragmentado, ou ainda, nos termos propostos por Pozuelo Yvancos, de “figuração do eu” autoral;80 e a necessidade, levando-se em conta a ampliação do espaço compartilhado pelas escritas do eu como possibilidade de afirmação de vozes outras (minoritárias, periféricas, etc.), de afastar-se dessa dimensão autorreferencial e autotélica para acercar-se da sua “contraface”, o aspecto dialógico e social que esse tipo de escrita reclama.

Como recorda Emile Benveniste (2005), a base da subjetividade está no exercício da linguagem (“Eu é quem diz eu”), mas não de modo individual ou isolado, pois não é possível pensar o eu sem o tu. O sujeito emerge, por conseguinte, de uma situação enunciativa que supõe invariavelmente uma segunda instância do discurso. A partir dessa perspectiva interativa entre participantes de um enunciado, percebemos que o sujeito e, de forma correlata, a sua identidade não são só e simplesmente o produto da narração (desfiguração do “eu” ou marca de uma ausência),81

mas um ser essencialmente incompleto e aberto a múltiplas identificações. Neste sentido, a escrita autoficcional pode ser compreendida como o trabalho, sempre inalcançável e inconcluso, de reconstituição da própria história ao reconhecer-se e confrontar-se com o outro que lhe dá acabamento.

80 O professor Pozuelo Yvancos (2010) utiliza o conceito de “figuração”, que já havia sido proposta por Paul de

Man, em seu ensaio de 1991, e reelabora-o em termos distintos da relação estabelecida entre vida e texto. Na sua concepção, a “figuração do eu” supõe a construção imagética do autor sem ser ele, ou seja, é capaz de representá-lo imaginariamente como tal e, simultaneamente, marcar certa distância em relação a quem escreve. Isso ocorre por conta da ênfase dada aos mecanismos irônicos e reflexivos utilizados pela voz narrativa, os quais conferem ao “eu” um lugar discursivo semelhante aquele assumido pelo ensaísta.

Dispersão identitária em direção ao outro que desloca o centro de interesse da escrita