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Diferentes figurações do autor Salim Miguel em seu texto

2 ESCRITA DE SI / ESCRITA DO OUTRO

2.3.2 Diferentes figurações do autor Salim Miguel em seu texto

Tzvetan Todorov (2003), em seu livro As estruturas narrativas, afirma que prefaciar a sua própria coletânea de artigos obrigou-o a assumir uma atitude toda particular, pois os textos ali publicados não “vivem” mais para ele. Isso acontece porque, em sua visão, “todo

novo texto mata o precedente” (TODOROV, 2013, p.17). Desse modo, ele não pode escrever um prólogo aos artigos tendo-os em relação de contiguidade, mas apenas como novos objetos de estudo. Para tal intento, precisa tornar-se leitor de si mesmo, como se fosse algum outro que tivesse escrito em seu lugar.

Atitude semelhante pode ser verificada nas narrativas de Salim Miguel, pois mesmo que as suas histórias apresentem um forte teor autobiográfico, facilmente detectável a partir de informações paratextuais e na sua própria cronologia de vida, a instância narrativa assume uma perspectiva distanciada em relação ao que conta, como se fosse outro “eu” que estivesse ali a desfiar a sua vida. Um espectador de si mesmo. Fato que talvez possa ser esclarecido a partir de alguns de seus ensaios críticos, visto que, nesses textos, se percebem aspectos importantes do fazer literário do escritor. Nesse sentido, importa destacar os fragmentos de dois ensaios seus, um a respeito de Cruz e Souza e outro a respeito de Machado de Assis:

Não serão, certamente, os sofrimentos e a cor de sua pele que vão dar carta de autenticidade à sua obra. Ela vive pelo que é – e poderia mesmo ser estudada, de um ponto de vista meramente estilístico e de valoração artística, ignorando-se até aqueles aspectos. [...] Mas é inegável que, no caso específico de Cruz e Souza, tudo conta, tudo vai se amalgamando até formar este complexo que é sua arte. (CF, v.2, 1990, p.33).

Será possível então desligar-se o homem da obra, estudar um e outro, isoladamente? A nosso ver sim, muito embora um complete e venha explicar inúmeras particularidades do outro. O erro maior em que incidem os detratores de Machado, quando querem falar de sua obra, é julgá-la tendo sempre em vista o autor em si, não uma projeção dele, um outro eu, uma outra personalidade, na qual ele se desdobrava. (CF v.2, 1990, p.95).

Portanto, fugindo do reducionismo tão comum a esse tema, o escritor assume uma postura intermediária, que longe de negar a relação autor-obra, busca perceber em que termos tal relação é produtiva para a crítica literária. Nessa perspectiva, ao fazer uma analogia com a própria escritura de Salim Miguel, podemos perceber que mesmo partindo do concreto para o abstrato, da experiência vivida para a ficção, o que se destaca nos seus livros não é a pessoa do autor, mas os diferentes processos de figuração de si de que ele se vale em suas narrativas.

Temos, dessa maneira, a criação de uma “persona”, ou melhor, de personas, nas quais o autor projeta os seus sonhos de infância, os seus anseios da juventude, o seu desejo de escrever, as suas obsessões e os seus traumas. Circunscrito ao âmbito familiar, há a criação do personagem do “filho do seu Zé Miguel”, que percorre as páginas de A morte do tenente e outras mortes, Onze de Biguaçu mais um, Nur na escuridão e Reinvenção da infância. Relacionado ao período de efervescência e formação literária da juventude catarinense, avulta

a figura do narrador-escritor e do poeta Sezefredo das Neves. Já em Primeiro de abril: narrativas da cadeia destaca-se a estratégia de utilização de uma performance autoral, na qual são assumidos simultaneamente os papéis de ator e de espectador de si mesmo.

Diferentes figurações do “eu” que ressaltam o processo de experimentação linguística do autor e lembram o personagem principal de um dos seus contos: artista plástico que realiza experimentos com galos, recriando-os, deformando-os e reinventando-os constantemente.103 Assim, ao fazermos uma relação simplificada entre criação artística (galos) e referente, salienta-se o seguinte questionamento: mesmo que “reinventemos, reinterpretemos ao nosso modo esse bicho tomando o máximo de liberdade até diluí-lo [...] deixou ele, na sua raiz primeira, na sua matriz, de ser um galo?” (MTOM, 1979, p.115). E o narrador responde: Quem sabe, talvez para o autor sim, mas cabe a cada um, a cada leitor, desvendar o mistério.

Para o artista, o que parece realmente importar é a instauração de um jogo com o leitor, no qual lhe coube organizar as peças, mas não prever o final. Nesse jogo, sem renunciar explicitamente à identificação com o narrador/personagem, o autor traça novas regras e aposta na confusão identitária e indicial, alterando e dissolvendo a própria ideia de discurso autobiográfico e ficcional, e/ou borrando as suas fronteiras. Deslizamento sem fim entre vida e obra o qual abarcamos sob o conceito de autoficção, ou seja, sob o postulado explícito de um relato de si de caráter assumidamente ficcional e, por conseguinte, desligado de um pacto de referencialidade biográfico.

Nesse processo, o analista assume um papel ambivalente, pois tem que aliar a sua função de leitor ao de intérprete, no intuito de desvelar algumas peças nesse jogo de ilusões. A primeira delas refere-se obviamente à presença do autor em seu próprio texto, perpassando outras questões como a definição genérica, o pacto firmado com o leitor, a problemática do nome próprio e da identidade, a utilização de diferentes vozes narrativas. Para clarificar melhor a reunião desses aspectos no texto literário, empreenderemos, aqui, um percurso mais geral, para, então, especificar a nossa análise nos capítulos seguintes.

O livro de contos A morte do tenente e outras mortes, publicado em 1979, significou um marco na carreira de Salim Miguel, o qual admite ter encontrado ali um caminho para a sua produção. Assim, se, nos livros anteriores, podemos encontrar, de forma esparsa, alguns personagens, como Ti Adão e o poeta cego João Mendes, é somente a partir dessa coletânea

103 O conto em questão é “Galo, gato, atog”, no qual ao narrar o roubo de um quadro em uma exposição de arte,

cuja imagem pode ser de um galo ou de um gato, o narrador realiza um interessante questionamento sobre o fazer artístico. Nesse conto, em nossa opinião, a imagem do galo é utilizada como metáfora para a criação artística, enquanto que a imagem do gato refere-se à reprodução da realidade.

que eles passam a fazer parte intrínseca do universo ficcional de Salim, bem como outros personagens surgem e impõem as suas presenças: Yussef/José Miguel, Seu João Dedinho delegado-alfaiate, Seu Serapião e o filho tanso, Lauro Barbeiro, o espírita Jacinto Silva, Seu Fermiano e o filho adotivo (índio resgatado das mãos de bugreiros), o farmacêutico Seu Taurino. São personagens que transitam de uma história para outra e passam a figurar de modo insistente em livros posteriores do escritor, causando a impressão de uma obra fragmentada que está sempre a refazer-se. Da mesma forma, permite pensar na construção de um texto único, um local em que esses vários personagens e situações possam finalmente encontrar-se.

Estrutura em abismo (mise in abyme), que, tal como um espelho, remete para si mesma, mas também reflete o exterior, problematizando os limites entre ficção e não-ficção. Por conta disso, o primeiro conto, “O gramofone”, é dedicado “para Yussef-José, meu pai”e o narrador-personagem também se chama Yussef-José. Esse nome faz referência ao pai do escritor Salim Miguel, o qual, por conta do passaporte francês e da dificuldade em pronunciar Yussef Jahnahr, passou a ser chamado, no Brasil, de José Miguel e apelidado de Seu Zé Miguel ou Seu Zé Gringo.

Não bastasse a criação literária de um personagem que possui o mesmo nome e provém da mesma região do mundo que o seu pai, imigrante libanês, Salim começa a delinear nesse livro outro personagem recorrente em seus livros. É o filho do Seu Zé Miguel, que, de forma deliberada, não tem nome próprio, mas apresenta diversos outros pontos de contato com a biografia do escritor, guardando algumas características suas, como o prazer por ouvir histórias e o gosto pela literatura.

Esse personagem aparece em dois contos da série, mas a sua caracterização será realizada de modo distinto em cada um deles. Em “Gina-boa”, ele é o sócio de uma livraria em Florianópolis – profissão realmente desempenhada pelo escritor no início da sua carreira, na década de 1950, quando, juntamente com Armando Carreirão, resolveu aventurar-se como empresário da Livraria Anita Garibaldi – e a sua imagem é construída a partir do olhar do outro, da cliente que o reconhece e insinua algumas lembranças, em contraponto com o próprio esforço do personagem para lembrar-se da sua infância e juventude. Já em “Outubro, 1930”, a história é apresentada a partir da perspectiva do menino, que não entende porque a sua casa transformou-se, de uma hora para outra, em abrigo temporário de pessoas fugidas da tal revolução. Episódio que lhe ficou marcado na memória e que, depois de adulto, ele rememora na tentativa de compreendê-lo.

Há, evidentemente, nesses contos, traços autobiográficos, mas a identidade do personagem permanece indefinida. Aliado a isso, importa analisar a figura do narrador, pois, no primeiro relato, ele é um amigo do filho do Seu Zé, já, no outro, ele não participa da trama, assumindo a terceira pessoa do discurso. Portanto, não há homonímia entre autor-narrador- personagem principal em nenhuma dessas narrativas, nem o estabelecimento de um pacto autobiográfico explícito, mas apenas “fantasmas reveladores de um indivíduo, o autor” (LEJEUNE, 2008, p.43).

Em Onze de Biguaçu mais um e Reinvenção da infância, o cenário modifica-se, pois o personagem principal é o filho mais velho do Seu Zé Miguel, o qual, entre os percalços da infância e juventude, empreende um percurso de formação pessoal, moral e literária que em muito se assemelha ao modelo do Bildungsroman. O primeiro será definido pelo paratexto genérico “ficções” e o segundo pelo paratexto “romance”.

Novamente, há a utilização da estratégia de repetição de personagens e, inclusive, de situações narrativas, que ultrapassam um livro e figuram, às vezes, sem nenhuma alteração no outro. Da mesma forma, o narrador assume a terceira pessoa do discurso e narra como se não fizesse parte dos acontecimentos. Contudo, por trás da sua voz, ouvimos ressoar bem forte a fala do personagem principal, os seus pensamentos, sentimentos, dúvidas. Essa intimidade, muitas vezes, confunde e revela toda a proximidade de quem narra em relação ao que está contando. Além disso, temos também a inserção de trechos de outros contos do escritor Salim Miguel, com notas de rodapé que indicam a identidade autor-personagem.

Já em Nur na escuridão, o processo torna-se mais complexo, pois há a inserção da autobiografia paterna, cuja nota introdutória atesta a sua referencialidade: “Os trechos da autobiografia Minha vida, de José Miguel, foram traduzidos do árabe por Alia Haddad”. Existe, nesse livro, o estabelecimento de um contraponto entre aquilo que conta o narrador principal e o que Yussef-José recupera da própria vida.104 O personagem que centraliza as ações é o velho Yussef Miguel, que, no final da vida, recorda os obstáculos enfrentados desde a saída da terra de origem, atual Líbano, até a completa fixação no Brasil. Na contracapa da narrativa, há o paratexto “romance” e, na orelha esquerda, “romance autobiográfico”, contudo

104 Em Apontamentos sobre o meu escrever (2000), Salim Miguel observa que o pai, modesto comerciante, mas

sem nenhuma vocação para o comércio, estaria realizando-se caso o sonho profissional do filho de trabalhar com a palavra escrita se concretizasse. A centralidade dos acontecimentos em torno do personagem de Yussef Miguel parece-nos, nesse sentido, bastante elucidativa, transformando Nur em uma espécie de homenagem póstuma ao pai que nunca pôde concretizar seus próprios sonhos de juventude.

a identidade entre autor, narrador e personagem do filho mais velho é atestada por meio da autobiografia de Yussef e também em razão de algumas mudanças nas pessoas do discurso.

Em A vida breve de Sezefredo das Neves, pode-se afirmar que o autor projeta-se tanto no narrador quanto nesse personagem nebuloso, que, como destaca Tesserolli: “[...] às vezes é o próprio Salim Miguel, às vezes é figuração do Grupo Sul, às vezes é personagem que rodeia o grupo” (1998, p.02). Indefinição que perpassa igualmente para a questão do gênero: Romance? Autobiografia? Romance Autobiográfico? Autobiografia fictícia? Biografia? Biografia imaginária? Pastiche? História? Metaficção historiográfica? Ou quem sabe um pouco de tudo isso.

Neste livro, portanto, o pacto é ambíguo, pois pretende romper com os esquemas receptivos do leitor, fazendo-o vacilar ou duvidar do que lê. Contudo, resta perguntar: como pensar a questão do nome próprio, da manutenção de si ao longo do tempo, quando esse “eu” é percebido de formas tão diferentes e conflitantes ao longo da produção ficcional do autor?

Questões que, de uma forma ou outra, infiltram-se de modo surpreendente na estrutura de Primeiro de abril: narrativas da cadeia. Livro que, mesmo assumindo a estrutura do relato testemunhal, simultaneamente ultrapassa-o ao privilegiar formas típicas do gênero dramático, como o diálogo e a encenação. Essa opção, mais do que indicar o caráter ficcional/teatralizado do relato aponta, em nossa opinião, para a necessidade do autor pôr-se em jogo no texto, marcar a presença inegável de seu corpo traumatizado e, por meio de uma performance, recuperar o todo daquela realidade experimentada durante os 48 dias de cárcere.

Tudo isso, articulado ao processo de reutilização de cenas, imagens e personagens em praticamente todas as obras de ficção e de não-ficção de Salim Miguel, cria uma espécie de “espaço autoficcional” próprio, que relativiza as fronteiras entre os textos e destes com a realidade factual. Para clarificar melhor esses aspectos, discutiremos, no próximo capítulo, a relação autor/narrador e o papel do colecionador de histórias na produção narrativa do escritor catarinense.

3 RELAÇÃO AUTOR/NARRADOR: o papel do colecionador de histórias

Já não coleciono selos. O mundo me enquizila. Tem países demais, geografias demais. Desisto.

Nunca chegaria a ter um álbum igual ao do Dr. Grisolia,

orgulho da cidade. E toda gente coleciona

os mesmos pedacinhos de papel. Agora coleciono cacos de louça quebrada há muito tempo. Cacos novos não servem. Brancos também não.

Têm de ser coloridos e vetustos,

desenterrados — faço questão — da horta.

Coleção de cacos. Carlos Drummond de Andrade.

Philippe Artières (1998), em seu ensaio Arquivar a própria vida, estabelece certa relação entre a prática do arquivo e a escrita de si. Para o autor, os indivíduos, de uma forma geral, estão constantemente arquivando as suas próprias vidas: colecionando objetos, lembranças e registros – vestígios de sua existência –, os quais lhes auxiliam na busca infinita por si mesmos. “Passamos assim o tempo a arquivar nossas vidas: arrumamos, desarrumamos, reclassificamos, e, por meio dessas práticas minúsculas, construímos uma imagem, para nós mesmos e às vezes para os outros” (ARTIÈRES, 1998, p.10). Porém, tais arquivos não passam de fragmentos, de vestígios de uma totalidade perdida, porque invariavelmente selecionamos o que preservar desse acervo em constante construção:

Mas não arquivamos nossas vidas, não pomos nossas vidas em conserva de qualquer maneira; não guardamos todas as maçãs da nossa cesta pessoal; fazemos um acordo com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos, riscamos, sublinhamos, damos destaque a certas passagens. (ARTIÈRES, 1998, p. 11).

Nesse processo de arquivamento e coleção do “eu”, exploramos e construímos uma imagem íntima, contrapondo-a a nossa imagem social. Consequentemente, afirmar-se

identitariamente também é uma forma de resistir à homogeneização social e ao devir do tempo, uma vez que manter arquivos significa, em última instância, existir.

O pesquisador destaca, neste sentido, três traços comuns às práticas de arquivamento de si. O primeiro traço é o desejo do arquivista/colecionador de tomar distância em relação a si mesmo, assim, a partir da prática de arquivamento, o sujeito passaria a atuar como um observador da própria vida, podendo traçar a sua identidade e narrar a própria experiência. O segundo é a intenção de testemunhar, de dar a sua escrita um valor que transcende o depoimento pessoal/individual para afirmar algo mais geral, capaz de gerar um processo de identificação. Por fim, o último traço é o caráter infinito dessa prática plural e incessante, pois, até o último momento da existência, o sujeito está refazendo o seu arquivo pessoal.

Traços que se alinham muito bem à produção ficcional de Salim Miguel e auxiliam- nos a empreender um percurso analítico que alia sujeito e objeto, forma narrativa e conteúdo. Desse modo, é possível compreender a obra desse autor como um único e grande espaço, no qual ele aloca e realoca constantemente as peças de sua coleção pessoal, em um processo complexo de justaposição que nunca se completa.

Nesse “espaço autoficcional” próprio, ganha destaque a figura e o papel do colecionador de histórias, o qual, por meio do recurso à fala do(s) outro(s) – diferentes personagens e perspectivas narrativas – compartilha/articula diferentes saberes e experiências, visto a impossibilidade da constituição do eu, sem a interação e a alteridade. A partir disso, ao refletirmos acerca dos motivos e do modo como essas diferentes vozes e consciências articulam-se no espaço narrativo, partimos da hipótese de que as contradições sociais e históricas que o artista observa e experimenta em seu mundo – um mundo em que novas sociabilidades modernas coexistem, muitas vezes de modo conflitivo, com valores considerados tradicionais – vinculam-se à sua escrita e possibilitam o emergir de diferentes visões sobre a realidade circundante. Tal constatação permite-nos refletir sobre a literatura como algo complexo: não apenas mero reflexo do referente nem tampouco puro objeto estético.

3.1 A ARTE DE NARRAR: modernidade e experiência

Octávio Paz observa que cada sociedade assenta-se em um nome com o qual se identifica. Sendo assim, “para resistir a la erosión que todo lo borra, las otras sociedades decidieron llamarse con el nombre de un dios, una creencia o un destino [los cuales] aluden a

un principio inmutable o, al menos, a ideas e imágenes estables” (PAZ, 1974).105

Já a nossa elegeu como denominação o moderno, asseverando, desse modo, o seu caráter efêmero e cambiante, pois "si la modernidad es una simple consecuencia del paso del tiempo, escoger como nombre la palabra moderno es resignarse de antemano a perder pronto su nombre” (PAZ, 1974).106

Um caminho de constante composição e decomposição, cujo único princípio é o exame crítico de todos os princípios, dentre os quais se destaca a dicotomia ser e razão, com a consequente “morte de Deus” e o triunfo desta última. Por conta disso, não há, na modernidade, uma verdade eterna, mas apenas uma verdade crítica. Nossa única certeza reside em saber que nada é permanente.

“Tradição da ruptura” que não implica a resolução das contradições e conflitos que tencionam a sociedade em uma síntese conciliadora, antes a agudizam através da exasperação de suas oposições. Assim, embora a razão aspire à unidade, ela tende sempre à dispersão, em um movimento incessante de interrogação, análise, destruição e renovação:

[…] un incesante separarse de sí misma; cada generación repite el acto original que nos funda y esa repetición es simultáneamente nuestra negación y nuestra renovación. La separación nos une al movimiento original de nuestra sociedad y la desunión nos lanza al encuentro de nosotros mismos. […] Continuo ir hacia allá, siempre allá – no sabemos dónde. Y llamamos a esto: progreso. (PAZ, 1974, s/p, grifo nosso).107

Contínuo transcorrer em direção ao futuro – processo infinito, sucessivo e irreversível – que transformou nossa forma de perceber o mundo e de relacionarmo-nos com os outros, em vista da completa negação dos sentimentos, valores e costumes ditos tradicionais. Condição avassaladora de fragmentação, efemeridade e constante mudança que a arte moderna, como produto de seu tempo, refletirá de modo acentuado.

Essa constatação levou Walter Benjamin a afirmar que a arte de narrar encontra-se em vias de extinção na modernidade, pois as ações da experiência – fonte a que recorrem

105 Tradução nossa: "para resistir à erosão que tudo faz desaparecer, as outras sociedades decidiram chamar-se

com o nome de um Deus, uma crença ou um destino, [os quais] aludem a um princípio imutável ou, ao menos, a ideias e imagens estáveis”.

106

Tradução nossa: “se a modernidade é uma simples consequência do passo do tempo, escolher como nome a palavra moderno é resignar-se de antemão a perder logo seu nome”.

107 Tradução nossa: “[…] um incessante separar-se de si mesma; cada geração repete o ato original que nos funda