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2 ESCRITA DE SI / ESCRITA DO OUTRO

3.1.3 O narrador jornalista

Além do surgimento do romance, a informação influenciou igualmente a narrativa. Para Walter Benjamin, a informação “é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais ameaçadora e, de resto, provoca uma crise” (1994, p.202) neste último. Ela é mais ameaçadora, pois a sua base reside nos acontecimentos próximos, que aspiram a uma verificação imediata, ao contrário do saber que vinha de longe, de terras distantes ou da tradição.

Assim, na medida em que a informação já chega acompanhada de explicações, as quais interferem na possibilidade de o leitor interpretar livremente a história, a arte narrativa caracteriza-se por não prestar esclarecimentos sobre os fatos, abrindo espaço para reflexões e questionamentos. Por conta disso, ela não se esgota em um determinado tempo, pois continua a gerar novas experiências, as quais, ao serem compartilhadas de geração a geração, estabelecem o circuito da narração, transformando o ouvinte em narrador.

Para esclarecer o seu argumento, W. Benjamin recorre ao relato do rei egípcio Psammenit, quando este foi derrotado e condenado ao cativeiro pelo rei persa Cambises. Como forma de humilhação, Psammenit foi posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas e durante a procissão ele pôde ver a sua filha, reduzida à condição de criada, e o seu filho, caminhando em direção à morte. Ao ver as cenas, o rei egípcio permaneceu em silêncio e imóvel, porém, quando notou a presença, na fila dos prisioneiros, de um dos seus criados mais antigos, ele começou a golpear a cabeça com os punhos, demostrando total desespero.

O real significado desse gesto do rei Psammenit ainda guarda as suas “forças germinadoras”, uma vez que, ainda hoje, é capaz de provocar espanto e reflexão, gerando

explicações as mais diversas. Essa história ilustra o que é a verdadeira narrativa, q ue mesmo depois de muito tempo ainda pode desenvolver-se e “frutificar”, diferente da informação, que somente tem valor enquanto é nova – vive, portanto, apenas no momento presente – e necessita encontrar explicações plausíveis para os acontecimentos que r elata. Em Sobre alguns temas em Baudelaire, o filósofo destaca outro aspecto importante em relação à informação: o papel dos jornais no declínio da experiência e o seu progressivo atrofiamento. Como uma forma de comunicação, o interesse primordial da informação é tão somente transmitir os fatos tal como se deram, pinçando -os ou deslocando-os de sua real dimensão. Nesse processo, reduzem-se “as chances dos fatos exteriores se integrarem à nossa experiência” (BENJAMIN, 1989, p.94), contribuindo para que as inquietações da vida interior adquiram um caráter estritamente privado. E reflete:

Se fosse intenção da imprensa fazer com que o leitor incorporasse à própria experiência as informações que lhe fornece, não alcançaria seu objetivo. Seu propósito, no entanto, é o oposto, e ela o atinge. Consiste em isolar os acontecimentos do âmbito onde pudessem afetar a experiência do leitor. Os princípios da informação jornalística (novidade, concisão, inteligibilidade e, sobretudo, falta de conexão entre uma notícia e outra) contribuem para esse resultado, do mesmo modo que a paginação e o estilo lingüístico. (BENJAMIN, 1989, p.94-95).

A narrativa, ao contrário, compreendida como uma forma artesanal de comunicação, não está interessada no “puro em si” da informação, pois “mergulha [...] na vida do narrador para em seguida retirá-la dele” (BENJAMIN, 1994, p.205). Podemos afirmar, com base nisso, que os vestígios do narrador tradicional impregnam de muitas formas o conteúdo narrado, diferente do jornalista que visa idealm ente ser imparcial.

Silviano Santiago (2002) destaca que, na pós-modernidade (a qual podemos situar a partir da segunda metade do século XX), é precisamente essa forma de narrar, característica da era da informação, a mais valorizada pela ficção. Ele associa o narrador pós-moderno àquelas características identificadas por Walter Benjamin em relação ao narrar do jornalista, conferindo-lhe, ao invés da experiência do narrador tradicional, o gesto típico do voyeur:

[...] o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair-se a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da plateia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante. (SANTIAGO, 2002, p. 39).

Será esse movimento de rejeição e distanciamento do narrador o que o torna pós - moderno. Ele escreve não para transmitir um conhecimento tecido na substância viva da sua própria experiência, mas para informar algo acontecido a um outro. Neste sentido, o narrador pós-moderno transforma-se no “puro ficcionista”, isto é, aquele que:

[...] tem que dar ‘autenticidade’ a uma ação que, por não ter o respaldo da vivência, estaria desprovida de autenticidade. Esta advém da verossimilhança que é produto da lógica interna do relato [...] [pois ele] sabe que o ‘real’ e o ‘autêntico’ são construções de linguagem. (SANTIAGO, 2002, p.40).

Ele retira a matéria-prima das suas histórias a partir do que observa atentamente em um terceiro, alheio a sua própria existência: “a coisa narrada existe como puro em si, ela é informação, exterior à vida do narrador” (SANTIAGO, 2002, p.40). Apesar disso, para o crítico, não se pode dizer que, na ficção pós-moderna, inexista a transmissão de uma “sabedoria”, porquanto, ainda que esta não provenha do narrador, podemos depreendê-la a partir da ação daquele que é observado, mas desprovido de palavra.110

De acordo com Hal Foster (2014), nesse discurso sobre o outro cultural e/ou social, sobressai-se a questão da distância correta entre o participante-observador e aquele que é observado, a fim de evitar tanto a desidentificação quanto a superidentificação. Contudo, como seria possível falar de distância correta quando o próprio sujeito que narra encontra-se imerso na mesma rede desumana que priva o outro de sua voz? Como não envolver-se com a história daquele que é observado quando as engrenagens autoritárias e violentas do poder instituído transformam a todos, os seus corpos e psiques especialmente? Conforme reflete o narrador de Primeiro de abril: narrativas da cadeia:

DEFORMAÇÃO PROFISSIONAL. Eis uma expressão que te agrada e costumas repetir com frequência. Dizes: espécie de marca identificadora grudada às pessoas, nova pele sobre a pele original. [...] Agora, num ambiente restrito, tens todo o tempo para aquilatar a validade do que afirmas. A fim de confirmar tua tese, da qual por vezes tens dúvidas, ficas observando teus companheiros de cadeia. O tique de um, o cacoete de outro, a mane ira típica de

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Segundo Silviano Santiago, a perda do caráter utilitário e a subtração do bom conselho e da sabedoria, características do estágio atual da narrativa, não são para Benjamin sinais de um processo de decadência da arte de narrar, mas transformações concomitantes às muda nças das forças produtivas na modernidade. Nesse sentido, “não se trata, pois, de olhar para trás para repetir o ontem hoje [...]. Trata-se antes de julgar belo o que foi e ainda o é – no caso, o narrador clássico –, e de dar conta do que apareceu como problemático ontem – o narrador do romance –, e que aparece ainda mais problemático hoje – o narrador pós-moderno.” (2002, p.40-41).

andar deste, o jeito de se pôr a espreita daquele, a fala compassada ou rápida [...]. Basta saber observar com percuciência uma pessoa, perscrutar sua psicologia, seus hábitos e costumes, modos de agir e reagir diante dos fatos [...]. Paras. Reconsideras. Começas a desmontar teu arcabouço, a te repetir - refutar-contestar, queres-não-queres atingir o cerne da questão: tu mesmo. Tua deformação profissional. Ontem e hoje. Antes da cadeia, durante, depois. Toda elucubração que armas e projetas são desculpas para aguentar a dura convivência com o momento extremo que atravessas. Que atravessaste. Tens que levá-lo em conta na tua análise. A excepcionalidade afeta a todos, influencia o comportamento geral dos que ali foram jogados. Sendo os mesmos são outros. (PANC, 1994, p.77-79)

Diante desse cenário, a voz enunciativa chega à conclusão que mais importante do que catalogar o outro ou ainda falar em nome dele seria “deixá-lo se expressar explicando as razões que o levaram a agir desta ou daquela maneira” (PANC, 1994, p.71), ou ainda, ao invés de projetar os demais presos “de fora”, melhor seria mostrá-los em toda a sua complexidade, os seus medos e angústias, sonhos e esperanças. Essa atitude ética, comunicada pela voz do narrador, encontra-se igualmente expressa na forma narrativa, como veremos no subcapítulo dedicado à análise do livro. Essa constatação permite-nos inferir certa posição axiológica do autor-criador no que tange à importância dada à experiência subjetiva de cada um, mesmo quando ela encontra-se oculta pelo discurso hegemônico.