• Nenhum resultado encontrado

2 ESCRITA DE SI / ESCRITA DO OUTRO

3.1.1 O contador de estórias

Para Walter Benjamin, a experiência compartilhada entre as pessoas transforma -se em fonte a que recorrem todos os narradores, cujas melhores histórias são aquelas que menos se distinguem das narrativas orais cantadas anonimamente. Com base nisso, o pensador destaca a função do narrador tradicional, cujos arquétipos são o camponês sedentário e o marinheiro comerciante. O primeiro, fixado a terra e que conhece as histórias e as tradições do lugar onde reside, conserva o saber do passado. O segundo, o viajante, é aquele que vem de longe, sendo o portador do saber de terras distantes, estrangeiras.

Ambos têm o que contar e são capazes de compartilhar um saber, diferenciando -se apenas quanto à dimensão na qual cultivam as suas experiências: o tempo para o camponês e o espaço para o marinheiro. Podemos afirmar, desse modo, que a experiência vincula-se com um saber que vem de longe: seja do longe espacial de terras estrangeiras, seja do longe temporal contido na tradição.

Na produção ficcional de Salim Miguel, esses dois modelos de narradores podem ser vislumbrados nas figuras de Yussef-José Miguel e de Ti Adão, personagens recorrentes e emblemáticos ao longo da obra do escritor, posto que se configuram como mestres e também modelos de como contar uma história. O primeiro personifica a imagem do marinheiro comerciante, vindo de terras estrangeiras e tendo muito a contar. O seu saber baseia-se na experiência adquirida ao longo da vida e na tradição oral herdada dos antepassados orientais. Já o segundo assemelha-se aquele outro tipo de narrador, o camponês sedentário, fixado a terra e que detém o conhecimento das histórias e tradições do lugar onde mora. Ti Adão é o depositário de todo um saber do passado, desde histórias da tradição africana, muitas vezes, contaminadas com lendas do imaginário indígena ou misturadas àquelas vivenciadas por ele mesmo, até um vasto conhecimento de medicamentos, ervas e simpatias.

De acordo com Benjamin, tanto o camponês sedentário quanto o marinheiro comerciante produziram as suas respectivas famílias de narradores, com características próprias. No entanto, na Idade Média, essas duas espécies de narradores interpenetraram - se por meio da convivência do artesão sedentário com os seus aprendizes migrantes. Nesse processo, o artífice medieval (narrador tradicional) aperfeiçoou a arte narrativa herdada dos mestres, cabendo-lhe a tarefa de, ao narrar, aproximar as duas dimensões: a temporal e a espacial.

Percebemos, a partir disso, que a narração de histórias sempre esteve atrelada às formas sociais comunitárias, como as existentes entre os artesãos. Sendo assim, o ato de narrar assemelha-se ao trabalho artesanal, pois a marca do narrador é impressa na narrativa, “como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 1994, p.205). O narrador tradicional, portanto, encontra-se ainda muito próximo do autor, uma vez que este último pode ser identificado através da marca que imprime em sua obra artística, a qual lhe singulariza e remete, inevitavelmente, a um determinado contexto histórico - social. Desse modo, entre quem narra e o que é narrado interpõe-se uma consciência, a visão de mundo do autor, o qual, dentre as múltiplas maneiras de contar uma história, escolhe aquela que mais se adequa aos seus propósitos, marcando a sua presença no texto e transformando-se em componente da obra.108

Singularidade expressa na forma de narrar das personagens mencionadas, as quais apresentam uma técnica muito particular, conforme esclarece o narrador de Nur ao referir- se a Yussef Miguel: “O pai retoma o fio narrativo, numa técnica só dele, muito dele, que lhe vem dos ancestrais, das fantásticas lendas que ouvia ou lê” (NE, 2004a, p.18). Essa técnica mistura fatos dispersos num mesmo tecido, num mesmo texto, acrescentando às histórias novos ingredientes ao fundir realidade e fantasia:

O pai titubeia, não se fixa, pula de um assunto para outro, mais outro, outro ainda, sabe-não-sabe o que quer, de novo naquela técnica tão dele, que é a maneira própria do seu comunicar, adquirida nos tempos de infância, das lendas recolhidas de um fabuloso imaginário oral. De repente engrena. Retoma a explicação já mais do que conhecida, com variações na forma do narrar, na estrutura da frase, que para o pai, encharcado das histórias das Mil e uma noites, tem sempre um novo tempero, inédito sabor. (NE, 2004a, p.24).

De forma semelhante, o impressionante poder de fabulação de Ti Adão aliava técnicas também muito peculiares. Tanto que, ao tentar compreendê-las, o narrador afirma: “Ti Adão não tinha método. Ou tinha um método só dele.” (NE, 2004a, p.201), o qual pode ser assim descrito:

Podia, por exemplo, interromper um causo hoje e retomá-lo dias depois, intercalando-o com outro, ou nunca mais retomá-lo, inútil insistir, tudo acabava por se fundir-confundir e formava um complexo homogêneo, era como se tivesse continuado a narrativa sem interrupção, logo depois de outra bicada no copo, ria um risinho agora para dentro, dizia: arre, essa é das boas, da queimante pra valer, mas desce bem, aquece as tripas e o coração, aviva a memorosidade; recomeçava:

108 Como propõe Mikhail Bakhtin (2010), o autor-criador, o qual não se confunde com o autor empírico, é

antonces... E um mero incidente, um personagem circunstancial, uma situação mal- e-mal esboçada podia se tornar predominante, um protagonista sumir sem jamais reaparecer, como na própria vida, alguém que conhecemos na infância e de que fomos íntimos se vai para sempre e nem sombra dele resta. A vida, ou as múltiplas vidas de que se compunha aquele inquietante Ti Adão faziam, quase sempre, ou seria sempre?, parte intrínseca dos enredos, das tramas, da proposta narrativa. (NE, 2004a, p.201-202).

Nesses termos, a partir das inúmeras e fascinantes histórias que Yussef e Ti Adão adoram contar e recontar, eles transmitem uma sabedoria. Saber implícito nas fábulas e lendas que ambos contam aos seus ouvintes atentos. Entre essas, duas, em especial, destacam- se: a do vaidoso veado que se vangloriava dos belos chifres e a história do oleiro distraído e do desastre na fabricação das cabeças para os filhos de Ogum:

Gostava de transmitir ensinamentos através de fábulas, tradição milenar de sua gente. Relembrava, com frequência, uma em especial. A do veado diante da fonte, que reclamava, mirando-se na água: por que essas pernas tão finas, e vangloriava-se de seus chifres, tão belos. Perseguido por caçadores, conseguiu se safar enquanto corria a céu aberto; mais adiante, em plena mataria cerrada, enredou-se nos chifres. Foi caçado. Antes de morrer, refletiu: coitado de mim, reclamei do que me salvou, minhas pernas tão ágeis, e elogiei o que me causa a morte, meus chifres. (NE, 2004a, p.164).

A fabricação dos corpos, com barro, por outros oleiros, foi eficiente. Com as cabeças tiveram problemas. O oleiro embora parecesse qualificado, era velho, esquecido, não tinha nenhuma ideia de mundo. um desastre! As cabeças deviam ter a função básica de dar personalidades diferenciadas e sábias aos homens, adaptando- as ao mundo para o qual se dirigiam. Na mistura, no preparo do barro, o oleiro se perdeu. Resultado é o que vemos até hoje, homens desmiolados, um mundo em desentendimento, raras pessoas de boa qualificação. (NE, 2004a, p.207).

São histórias e causos que envolvem e fascinam os seus ouvintes, um deles principalmente, a personagem “do filho mais velho do Seu Zé Miguel”, que, com o tempo, passaria a arquitetar o sonho de ser também um contador de histórias. Por esse motivo, “ficou mais atento às conversas na venda do pai, passou a prestar atenção nas gentes, sua maneira de andar sorrir, falar” (RI, 2011, p.123). Mesmo assim, anos depois, o “futuro escriba”, cuja história e dados pessoais confundem-se com as do próprio escritor Salim Miguel, revelar-se-ia “impotente, incapaz de recriar o clima armado por Ti Adão” (NE, 2004a, p.202).

Fantásticas e fabulosas lendas que se misturam quase sempre à narração das histórias pessoais de Ti Adão e Yussef. Componente indissociável de suas tramas narrativas, como sucedia, por exemplo, quando o “preto velho” tentava esclarecer a sua idade. Relatava fatos os mais diversos, como a vinda em um navio negreiro já grandote,

as localidades por onde passou, a vida como escravo, a lei áurea, os filhos que a mãe tivera no Brasil e, por fim, acabava por contradizer-se, pois “de que modo filho do senhor se dissera ter chegado ao país rapazote” (NE, 2004a, p.203). E o filho do Seu Zé ao ouvi - lo “fazia-refazia cálculos, ficava-se a imaginar se o velho teria mesmo os cem anos (ou mais) como apregoava, de que se vangloriava” (NE, 2004a, p.203).

De forma semelhante, Yussef, ao relatar o caso da cachorra Taira, abandonada pela família em Alto Biguaçu e que empreendera uma viagem guiada pelo faro até reencontrar os Miguéis em outra localidade, inventa e reinventa a história já mais do que conhecida:

Viajara dezenas de quilômetros, guiada pelo faro, por um sexto sentido, ao encontro dos seus. Não mais os abandonou, o pai o primeiro a relatar a façanha, fantasiando com seu poder de fabulação tirado da constante releitura das Mil e uma noites, que começara a contar desde cedo para os filhos, nos serões noturnos, e que a todos marcaria para sempre, passou a acrescentar novos ingredientes à aventura da Taira, tão pequena, tão preta, tão esperta, tão tantas coisas, com a mancha branca na testa, herança da estirpe, e que fizera jús ao nome árabe, Taira, a voadora, o pai repetindo nos serões da casa -de-residência- bodega-loja-venda-armazém-bar, para os familiares, para os patrícios, para os fregueses contumazes [...]. (OBMU, 1997, p.14-15).

Narração da própria história que visa transmitir um saber prático, pois “aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história” (GAGNEBIN, 1994, p.200). Por conseguinte, “não consiste em intervir do exterior na vida de outrem” (GAGNEBIN, 1994, p.11), mas indica a necessidade de saber narrar a história e, antes de tudo, de verbalizar a própria situação ao outro. Neste sentido, o conselho destaca a relação entre narrador e ouvinte dentro de um mesmo fluxo narrativo e a abertura da obra às novas propostas e ao fazer conjunto.

Esse saber prático, o conselho, possui como expressão privilegiada a palavra do moribundo, “não porque ele teria qualquer saber secreto pessoal a [...] revelar, mas muito mais porque, no limiar da morte, ele aproxima [...] nosso mundo vivo e familiar deste outro mundo desconhecido e, no entanto, comum a todos” (GAGNEBIN, 2007, p.58). Sendo assim, a ideia de morte reveste o sujeito de uma espécie de “aura”, conferindo-lhe a autenticidade necessária para narrar. Ademais, parece que somente a partir da sua evocação, podemos aproximar-nos de nossa humanidade, pois, sem ela, não se distingue nada no ser humano nem tampouco se poderia alcançar o mistério da vida. Como reflete o personagem ao pensar na morte da irmã, Fádua:

Por mais que se esforce, o filho do seu Zé [...] só encontra uma definição para aquela vida em branco, aquele viver-sem-viver. Seria mesmo?, se interroga, na busca de uma resposta que lhe satisfizesse. O que é, afinal, viver? Luta inglória em busca do quê? Fama? Riqueza? Realização pessoal? Satisfações de... de... – e ficava-se nas irresolvidas reticências; ou seria o nada, o nirvana, a vida passar em brancas nuvens? (NE, 2004a, p.251).

De acordo com Walter Benjamin, no momento da morte, antes da última viagem, o saber e a sabedoria de um homem assumem, pela primeira vez, uma forma transmissível: a narrativa. É também nesse momento que qualquer indiví duo, mesmo o mais pobre homem, adquire a autoridade necessária para narrar as suas experiências. No entanto, como sugerem as “irresolvidas reticências”, houve uma alteração profunda na relação que o homem estabelece com a ideia de morte na modernidade, sem elhante àquela transformação que será verificada em relação à arte narrativa e à comunicabilidade da experiência. Assim, se antes a morte era um espetáculo público e exemplar para os indivíduos, atualmente, os homens, com os seus hospitais, asilos e sanatórios, procuram de todas as formas evitarem o seu espetáculo, porquanto ele carrega consigo o lembrete da nossa própria finitude. Como consequência, “pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo na consciência coletiva, sua onipresença e sua força de evocação” (BENJAMIN, 1994, p.207).

Na condição de herdeiro dessa tradição oral dos contadores de histórias populares, mesmo reconhecendo a impossibilidade de recriar as condições para a sua realização em nosso mundo “tão cheio de si e objetivo e mecanizado” (VOC, 2004b, p.100), Salim Miguel parece consciente do poder de evocação da morte, tema que parece obsedá -lo desde os seus primeiros trabalhos. Em sua produção ficcional, tal ideia transforma -se em “motor” para o desenrolar de muitas histórias, próxima do argumento desenvolvido em as Mil e uma noites – contar é igual a viver – ainda que guarde certa diferença. Isso porque em lugar de evitar o espetáculo da morte, como faz Sherazade, ele ressalta -o, pois narrar a natureza trágica da realidade também é resistir à sua dispersão em um tempo lineal, progressivo, homogêneo, que nada retém e, por isso, nada transmite em termos de sabedoria ou aprendizado.

Em razão disso, nas narrativas de Salim, a morte ganha uma conceituação toda particular, não são os mortos que morrem (ou são esquecidos), mas os vivos é que morrem para o morto, pois este último continua a existir na memória dos que ficaram:

[...] a meu ver elas, as pessoas vivas é que morrem para o morto, se apagam, findam, não os mortos, estes continuam vivendo na lembrança dos que aqui

ficam, no que fizeram, uma lembrança e um fazer que se diluem num tempo mais ou menos longo mas que nunca se esvai de todo, quando menos esperamos o morto ressurge num sorriso, renasce numa frase, no gesto de alguém que nunca tomara conhecimento da vida dele, num suspiro, num pedaço de jardim que ele amava, no aroma de uma flor, no verde de uma folhagem, numa comida que é posta à nossa frente. (MTOM, 1979, p.64).

Logo, recuperar a memória é reviver novamente os mortos, compa rtilhar com eles um pouco da sua experiência, sem que, nesse processo, haja qualquer menção de retorno utópico e/ou acrítico ao passado. Há, porém, um apelo de redenção das memórias no tempo presente que não pode ser rejeitado impunemente pelo narrador, ai nda que lhe reste apenas colecionar fragmentos de mortes alheias. Conforme sugerem essas reflexões finais em “O silêncio escuro”:

Final de minha vida? Mas o final de minha vida é hoje, é agora, é daqui a pouco com o professor Muniz de Souza e Mello, foi ontem com o ‘seu’ Antenor, anteontem com o prefeito Fedoca e será amanhã com a primeira notícia fúnebre do jornal matutino ou o aviso da funerária. (MTOM, 1979, p.66)

Superposição temporal que, juntamente com a exortação “Levanta-se e vai enfrentar sua mais recente morte” (MTOM, 1979, p.66), traz consigo um índice misterioso: o fato de que não existe um simples agora, já que todo presente é uma mistura de distintas temporalidades. “Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? [...] Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa” (BENJAMIN, 1994, p.223).