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A MODERNIDADE OCIDENTAL COMO ESTRUTURA: O SUBSTRATO EPISTEMOLÓGICO

2.2 A AUTONOMIA DOS INTELECTUAIS E DA PRODUÇÃO INTELECTUAL: CONFIGURAÇÕES NA MODERNIDADE

Penso que, aqui, cabe, inicialmente, recuperar os elementos, já mencionados (cf BELTRÃO: 1997), a partir dos quais a idéia de autonomia emerge, na transição da Idade Média para a modernidade, no contexto do surgimento da Universidade.

O aparecimento da instituição universitária, na qual professores e alunos formam uma única “societas”, tem, nesse aspecto, forte proximidade com o que começava a acontecer com os demais ofícios urbanos, em vias de criarem suas respectivas corporações. Nestas, mestres e aprendizes, em que pesem as diferenciações hierárquicas, também encontravam um espaço de integração. No entanto, a peculiaridade do objeto de trabalho daquela nova instituição, o conhecimento- imaterial, ao passo que, no caso das corporações, estas lidam com produtos materiais destinados ao incipiente mercado consumidor-, faz com que as diferenças entre a Universidade e as corporações tornem-se mais significativas que as semelhanças.

Dentre essas diferenças, destaca-se, sem dúvida, a questão da autonomia, que, neste caso, abrange, conjuntamente, a instituição, seus integrantes e seu objeto de trabalho, no sentido de evitar, tanto quanto possível, as ingerências externas- tanto do poder espiritual quanto do temporal- sobre a atuação da universidade, em termos de produção e socialização do conhecimento. Para as corporações, a autonomia limitava-se à autonomia dos mestres, em suas relações com o produto de seu trabalho e com os aprendizes.22

por um procedimento de gestão compartilhada. O que não é mencionado de forma clara, é como seria efetivado esse compartilhamento nas condições vigentes das relações internacionais.

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Mesmo essa autonomia dos mestres foi diminuindo em sua intensidade ao longo do processo de configuração do modo capitalista de produção, quando a categoria social do comerciante-

O teor da bula papal “Parens scientiarum “(1231), chancelada pelo rei francês Luís IX, cuja promulgação foi a forma encontrada de solucionar um conflito que envolveu a polícia real francesa, estudantes e professores da Universidade de Paris- que permaneceu em greve e retirou-se de Paris por dois anos-, é, nesse aspecto, bastante ilustrativo: assegura à universidade a autonomia didático-acadêmica e administrativa e o direito de greve, no caso de violação de qualquer uma dessas prerrogativas anteriores.

Uma visão dotada de inquestionável consistência, com algumas semelhanças mas, de todo modo, complementar à caracterização antes apresentada, nos é oferecida por Jacques Le Goff em seu Os intelectuais na Idade Média (LE GOFF: s/d). Dos elementos centrais por ele referidos, ao meu ver, dois aspectos merecem, adicionalmente, destaque:

- o caráter urbano, em oposição à vinculação monástica anterior, desse novo grupo social formado pelos intelectuais ligados às escolas e à Universidade, já que essas últimas eram, em princípio, abertas a todos e não apenas aos futuros monges, como as escolas clericais;

- a abertura, mesmo que bastante limitada, de uma nova possibilidade de ascensão social e de acesso ao poder pela via do conhecimento, claramente relacionada à autonomia (relativa) dos intelectuais e da produção intelectual.

Cabe, ainda, destacar que, diferentemente da perspectiva adotada neste trabalho, que situa o surgimento da intelectualidade leiga e urbana e das instituições escolares, em escala mais abrangente, como preâmbulo ou primeiros momentos de uma nova estrutura histórica, a modernidade, Le Goff encontra nesses fatos

responsável pela inserção do produto das manufaturas no mercado situado nas proximidades do local de produção e, depois, pela distribuição e circulação da mercadoria em mercados mais distantes- se torna agente subordinador dos mestres. Posteriormente, essa subordinação se acentua, ao ocorrer o

argumentos para supor a continuidade medieval e sugerir o surgimento da modernidade apenas a partir do século XIX (Prefácio, p.17).23

A etapa seguinte nessa trajetória, em que pese o grande salto, em termos de tempo, acredito que sejam as reflexões de Antonio Gramsci, singulares, do meu ponto de vista, na medida em que são as que apresentam, dentre o que foi formulado sobre o tema na modernidade recente, o teor mais marcantemente sistematizador sobre a categoria autonomia- desta vez, relacionada, especificamente, ao conhecimento e ao agente de sua produção. Para possibilitar sua melhor compreensão, penso que seja necessário reproduzir o processo de sua elaboração.

O contexto vivido por Gramsci era o da implantação do capitalismo industrial na Itália, cuja emergência como Estado nacional era recente. Tal processo ocorre associado à ascensão do fascismo, que usa, como um dos suportes do discurso para a sua legitimação, a necessidade de um Estado forte, apto para conduzir a supressão das disparidades regionais, fator indispensável para alcançar a modernidade econômica almejada. Além disso, no conjunto das preocupações de Gramsci, encontrava-se a necessidade de problematizar uma visão dos intelectuais, extremamente difundida, que os situava, todos, à margem- e acima- dos conflitos sociais (nos quais se integravam apenas como indivíduos e não como intelectuais), atribuindo-lhes situação social peculiar em decorrência de sua atividade (cf GRAMSCI: 1982).

empresariamento e o assalariamento do processo produtivo, para que este viesse a assumir proporção de escala.

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A bem da verdade, essa sugestão aparece na obra de Le Goff à guisa de um comentário, sem maiores justificativas, num trecho em que ele assinala, como “evolução essencial do mundo universitário” (ibid), o surgimento e a importância adquirida ao longo do tempo por colégios e círculos extra-universitários, na produção do conhecimento e no ensino superior, como é o caso, por exemplo, do Collège de France.

Reconhecendo as particularidades da produção de conhecimento frente à de bens e serviços24, no capitalismo, e percebendo que o embate entre capital e trabalho se expressava, naquele contexto histórico, de forma bastante clara, por intermédio do antagonismo entre as classes fundamentais, Gramsci propõe, como contraponto à postura/ visualização do intelectual, anteriormente referida, por ele chamada de intelectual tradicional, uma outra, vinculada às classes, a do intelectual orgânico. Sua ação consistiria em formular, de modo abrangente, para a classe à qual se articula, táticas e estratégias de luta política. Isto levou Gramsci a explicitar a ampliação das funções e das possibilidades de formas de concretizar o intelectual orgânico. Para ele, o proletariado, a primeira classe subalterna capaz de formar sua intelectualidade orgânica, teria, como principal intelectual orgânico (coletivo), o partido.25

É dessa concepção, associada à visualização da especificidade do trabalho intelectual e à percepção da natureza dialética- e não reflexiva- das relações entre cultura e economia, que resulta a categoria autonomia- necessariamente relativa- dos intelectuais e da produção intelectual.

Vale resgatar, ainda, que o contexto histórico do qual se está falando, aqui, é aquele do apogeu da vigência da mediação escamoteadora do caráter de mercadoria do conhecimento, mencionada quando foi feita a história epistemológica desse conceito, que tinha como agentes, exatamente, os intelectuais. Este fato propicia à referida mediação uma conformação- potencial e, mesmo, efetivamente- contraditória, uma vez que seus próprios agentes serão penalizados por aquilo que ela pretende ocultar.

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O fator diferenciador essencial entre ambas é alienação do trabalhador em relação ao produto do seu trabalho, integrante dos processos de produção de mercadorias materiais.

No entanto, é preciso ter em mente que, mesmo que as representações sociais do capital- predominantemente hegemônicas ao longo da modernidade e com essa hegemonia ampliada nos dias atuais-, em suas configurações diversificadas mas com discursos e ações concatenados, tenham buscado e, ainda hoje, cada vez mais incisivamente, busquem eliminar as contradições do espaço social, elas têm sua persistência ontológica e historicamente assegurada, na medida em que o conflito é, por excelência, o principal elemento estruturante da sociedade. São essas contradições que, a depender da atuação dos sujeitos históricos contra- hegemônicos, poderão adquirir uma conformação que lhes permita serem ocupadas como espaços para a explicitação dos embates entre os grupos sociais em presença.26

2.3- CIÊNCIA E IDEOLOGIA: A QUESTÃO DA VERDADE NO