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Assim como em outras abordagens de pesquisa qualitativa, é bastante freqüente um movimento de idas-e-vindas ao material empírico, como entrevistas e material documental na pesquisa narrativa. Pode ocorrer, contudo, que os métodos ou técnicas narrativos de construção dos dados exijam discussões suplementares com os participantes, de modo tal que a coleta de informações aconteça de modo mais ou menos contínuo e concomitante com a escrita da pesquisa.

No meu caso, percebi que minhas idas-e-vindas estavam ocorrendo de maneira pronunciada entre o contato com as histórias de meus entrevistados, o material escrito sobre a nossa história comum – nossa trajetória – e a literatura, buscando a compreensão das diferentes falas para a reconstituição da história vivida. Por várias vezes precisei interromper a análise das entrevistas, por exemplo, para buscar auxílio na literatura, buscando interpretar certos valores expressos em depoimentos que, naquela ocasião, tinham pouco significado para mim ou se apresentavam de difícil compreensão no contexto da formação de professores de Ciências. Uma dessas situações diz respeito à resposta a uma pergunta de entrevista O que você pretende quando você realiza um curso de formação de professores? Um dos entrevistados, sintetizando sua resposta, disse. Que o professor seja feliz e tenha paz!

Ora, num primeiro momento, eu me questionei: o que isso tem a ver com o ensino de Ciências, com a formação de professores? Mas fui à literatura. Encontrei em SANTOS (1997) que o objetivo último do homem – como da Ciência – é a felicidade e a paz. Alguém realizado profissional e emocionalmente, com boa qualidade de vida, em paz consigo e com o outro, feliz... certamente estará em condições de desempenhar com sucesso a sua função docente, pois terá disposição e entusiasmo para a execução de qualquer tarefa que surja e para seguir em direção a uma grande variedade de metas. (GOLEMAN, 1995:21)

Os critérios da pesquisa narrativa assemelham-se, no meu entender aos critérios gerais da pesquisa qualitativa, o que vão, segundo CONNELLY e CLANDININ (1995) além da fidedignidade, da validade e da generalização. Esta última deixa de ser um objetivo da pesquisa, sendo substituída pela idéia de “transferibilidade”. Isto significa que o próprio processo de pesquisa deve ser relatado, para, portanto, ser dado a

conhecer. Isto favorecerá possíveis transferências para outras situações de pesquisa, conduzidas por outros pesquisadores. É um critério também considerado por Bachelard (1996), quando diz que não é pelo produto que se conhece um trabalho científico, mas pelo processo.

Além da ‘transferibilidade’, esses autores identificam a ‘clareza’ e a ‘verossimilhança’ que, em geral, são pouco valorizadas como critérios possíveis. Entretanto, declaram que tanto os critérios quanto a linguagem da pesquisa narrativa estão pouco desenvolvidos, sendo algo em construção, na atualidade, o que significa dizer que cada pesquisador deve buscar construir e defender critérios que melhor se apliquem ao seu trabalho (CONNELLY & CLANDININ, 1995:32).

Assim, segundo os autores, quem escreve uma pesquisa narrativa vai, em um só documento, do presente ao passado e ao futuro, enquanto vai dando corpo e consistência à história, ‘tecendo a trama’ da pesquisa narrativa, o que produz um movimento importante nesse tipo de pesquisa.

Além disso, uma boa narrativa deve ‘convidar’ o leitor a refletir sobre as suas próprias experiências de vida, buscando se perguntar como aproveitaria algo do que está sendo narrado para a sua própria vivência profissional ou pessoal. Isso parece acontecer quando o leitor de uma história se entrosa de tal maneira com ela que produz significados seus, reconhecendo-se de algum modo naquelas circunstâncias, naqueles contextos, evocando as suas próprias lembranças sobre situações similares vividas, resignificando-as.

Embora a pesquisa narrativa tenda à globalidade, como foi dito acima, as explicações e os detalhes estão presentes em uma boa narrativa e lhe conferem ‘autenticidade’ (ROSEN, 1988, apud CONNELLY & CLANDININ, 1995:34), ao tempo em que desencadeiam a emoção do leitor.

Além disso, uma característica também importante em uma pesquisa narrativa é a plausibilidade, pois um relato plausível tende a soar verdadeiro, como nos asseguram os autores. É como se o leitor, ao proceder à leitura da narração pudesse de algum modo

“ver” o fenômeno ou a história acontecendo. São qualidades que convencem os leitores pela verossimilhança da história.

O tempo e o espaço, a trama e o cenário, trabalham juntos para criar a qualidade experiencial da narrativa. Eles não são, em si mesmos, nem o lado interpretativo, nem o lado conceitual. Tampouco estão no lado da crítica narrativa. Eles são a própria narrativa”. (CONNELLY e CLANDININ, 1995: 35-36)

O cenário é o lugar onde a história ocorre ou ocorreu, onde os personagens que agora contam uma história a viveram. É o lugar que tem um contexto social e cultural próprio que contribuiu de algum modo para aquela história ocorrer. Descrevê-lo numa narrativa, tanto em termos físicos, como dos personagens, contribui em muito para a qualidade de uma pesquisa narrativa. É necessário que ambos – ambiente físico e humano – estejam em harmonia com o contexto social e cultural, pois o contexto vai permitir ao leitor de certo modo acompanhar as interpretações do pesquisador, conforme sustenta ARNAUS (1995).

O tempo é essencial para a construção da trama e pode dar uma dimensão de presente, passado ou futuro à narrativa.

Ao realizar uma pesquisa narrativa, o pesquisador pode negociar significados de interpretação com os participantes. Entretanto, o pesquisador não é neutro e as interpretações que faz às vozes, às notas de campo, aos documentos consultados... estão impregnadas de suas próprias concepções, crenças, ideologias e utopias...

Preciso estar atenta a questões dessa natureza, apresentando conflitos, incertezas,

relativizações acerca de situações vividas e que estão sob análise interpretativa. Apresentar as situações de modo absolutamente bom, bem sucedido... pode produzir uma narrativa "uniforme e melosa", conforme se refere SPENCE (1986), apud CONNELLY & CLANDININ (1995:45) Embora concorde com EZPELETA & ROCKWELL (1989) e GERALDI (1993), com respeito a estudar a positividade e não a negatividade da Escola e das questões educacionais, creio que ao buscar na pesquisa narrativa a globalidade do objeto investigado, preciso evidenciar as nuances dos diferentes aspectos, valores, idéias, concepções, práticas... que estou investigando.

Outra questão é a de que o próprio pesquisador assume um duplo papel: o da pessoa e o do pesquisador, ao que Connelly e Clandinin se referem como os vários "eus". Chamam atenção para o eu crítico, o pesquisador narrativista empírico, que deve estar sempre alerta, destacando as limitações de sua narrativa, as tomadas de decisão realizadas, proporcionando ao leitor dialogar com esses limites e com outras alternativas além das selecionadas pelo autor.

A teoria da complexidade certamente me ajuda a ver meu objeto de pesquisa nas suas múltiplas relações, embora eu tenha consciência da impossibilidade de sua completude e seu acabamento, porque, como diz MORIN (1995:10),

O conhecimento complexo aspira ao conhecimento multidimensional. Mas sabe, à partida, que o conhecimento completo é impossível: um dos axiomas da complexidade é a impossibilidade, mesmo em teoria, da omnisciência. Mas traz também no seu princípio o reconhecimento dos elos entre as entidades que o nosso pensamento deve necessariamente distinguir, mas não isolar umas das outras. (...) o pensamento complexo é animado por uma tensão permanente entre a aspiração a um saber não parcelar, não fechado, não redutor e o reconhecimento do inacabamento, da incompletude de todo o conhecimento.”

Esses são, pois, alguns aspectos fundamentantes deste estudo e desta pesquisa sobre formação e desenvolvimento de professores, enquanto processos, conflitos, reflexões e opções epistemológico-metodológicas cruciais para mim, que pretendia desenvolver um trabalho que não reduzisse, mutilasse, simplificasse aquilo que se caracterizo como essência do trabalho do NPADC/UFPA: A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS E MATEMÁTICA. Reflexões como essas, entretanto, não esgotam o assunto e a minha necessidade de reflexão contínua sobre questões epistemológicas e metodológicas, além de preocupações com questões éticas e políticas implicadas não só no processo de pesquisa, como na prática docente de formação profissional, tomada como objeto de pesquisa.

Neste sentido, ao mesmo tempo que busco reconstituir a história do grupo, que se inicia em 1979, com a criação “oficiosa”31 do Clube de Ciências, procuro configurar a

formação de licenciandos que nele estagiam como um processo de formação e

31 A criação oficial do Clube de Ciências da UFPa ocorre somente a 24 de fevereiro de 1981, pela portaria GR 276/81, após percorrida pelo projeto toda a trajetória burocrática universitária.

desenvolvimento profissional, enquanto se constituem sujeitos professores e sujeitos formadores, na interação com os colegas do mesmo grupo e com os professores com quem passam a trabalhar, em propostas de educação continuada, ao se manterem como profissionais integrantes do grupo.

Nessa perspectiva, participam deste trabalho, 7 professores que iniciaram sua caminhada no Clube de Ciências da UFPa, ainda alunos universitários, e uma professora – ANITA32 – recém-graduada; SARA fez parte do grupo fundador em 79, mas se

ausenta logo após o primeiro semestre de trabalho para retornar 12 anos depois; Vicente e Fernando iniciam no grupo com a realização da disciplina de Didática Geral33, em uma

turma específica de alunos das Licenciaturas da área de Ciências; FERNANDO inicia logo que realiza sua matrícula no curso de Licenciatura em Matemática; GERALDO inicia um ano antes do final do Curso de Biologia e BETH e CARLOS, recentemente formados, iniciam sua trajetória nos primeiros semestres do Curso de Biologia e Química, respectivamente; GEORG foi aluno de ‘Didática de Ciências’ afastou-se para trabalhar no interior do Estado, retorna após cinco anos como professor cedido ao Núcleo, pela Secretaria de Estado de Educação do Pará.34

Pesquisar essa história vivida significa, portanto, compreendê-la na perspectiva da formação e do desenvolvimento de professores, sob olhares múltiplos de formados e formadores, considerando as múltiplas vozes que contam e interpretam. Entre os formadores de hoje encontram-se formandos e formados do início deste trabalho, de fases intermediárias e de formados à época da realização das entrevistas, início de 97.

Pesquisar essa história não significa entendê-la linear e sem dificuldades. Ocorreu, sem dúvida, uma gama de dificuldades. O propósito, mesmo não sendo o de buscar a negatividade do vivido, será de apresentá-lo, também, à medida que à narrativa

32 Os nomes usados nesta pesquisa para representar cada um dos entrevistados são fictícios.

33 Com objetivo de melhor comunicação, daqui em diante me referirei à turma específica de Didática Geral para alunos de Ciências e Matemática como ‘Didática de Ciências’.

34 O Núcleo Pedagógico de Apoio ao Desenvolvimento Científico - NPADC - da UFPa é hoje um Núcleo que se originou do Clube de Ciências e hoje o contém. Devido a um trabalho conjunto de Educação Continuada de Professores desse Núcleo e as Secretarias de Estado de Educação e Municipal de Educação de Belém, foram firmados convênios entre as instituições, garantindo uma equipe para a realização do

for adequado, contudo, buscando muito mais desvelar o que ocorreu de positivo no dia- a-dia desse processo educativo. A intenção é, assim, a de narrar a história compreendendo-a como uma realidade social porque educacional e, portanto, com possibilidades de suscitar outras experiências do gênero. À medida que dificuldades, desencantos, fracassos, enfrentamentos, superações... tiverem sido significativas na vida profissional dos entrevistados, estes certamente aflorarão em suas falas e manifestações, ao explicitar a sua constituição como profissionais da educação em Ciências, compreendidos aí, ensino-aprendizagem-conhecimento de Ciências, Biologia, Física, Química e Matemática.

Desenvolvo a pesquisa em quatro capítulos. O primeiro é um capítulo teórico- prático, no qual busco reconstituir os princípios fundamentais progressivamente construídos durante a trajetória de constituição do grupo e dos sujeitos. Discuto-os com vistas à formação de professores e ao ensino de Ciências e Matemática.

Os capítulos dois, três e quatro dizem respeito à questão de pesquisa propriamente dita, apresentados em cinco princípios formalmente estruturados.

No capítulo I, defendo dois princípios fundamentais, relativos à prática antecipada assistida e às práticas interativas de formação de alunos universitários vividas no Clube de Ciências/Núcleo.

No capítulo III, através do desenvolvimento de dois outros princípios ou teses, investigo as relações de formação e desenvolvimento do sujeito-professor-formador ao atuar em programas de educação continuada do Clube de Ciências/Núcleo e interagir com a comunidade de modo mais amplo, aceitando e enfrentando situações desafiadoras.

No capítulo IV, analiso como os sujeitos percebem o seu próprio desenvolvimento profissional, ao manifestarem autonomia progressiva, reconhecerem/explicitarem sua (trans)formação profissional e sua incompletude.

Nas Considerações Finais, busco estabelecer relações amplas acerca de formação de professores e ensino de Ciências e Matemática, sugerindo alternativas para o trabalho, que inclui, como elemento formativo, o trabalho com as crianças e com os universitários, no Clube de Ciências.

atendimento de um grande contingente de alunos universitários e reconhecendo/ discutindo limitações em nosso trabalho.

I - RECONSTRUINDO O PENSAMENTO