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Quando meus alunos e eu sentimos necessidade de trabalhar com crianças, antes da usual Prática de Ensino, como oportunidade de vir-a-ser professores, com possibilidades de erros

e acertos72, sem compromisso de aprovação ou temor de reprovação, passamos por um período

de grande impasse, discussões e reflexões, pois a realidade universitária não comportava crianças dentro do Campus. Havia o Colégio de Aplicação, sim, mas lá também havia uma estrutura formal de ensino e um compromisso direto com a promoção da criança. Naquele momento, isso não se configurava nem para mim e nem para meu grupo de alunos. O que estava presente era a necessidade daqueles alunos universitários “aprenderem a ser professores”, tendo a assistência, o feedback, a ajuda pedagógica (COLL, 1996), diríamos hoje, da sua professora

Ciências Exatas e Naturais, passando a constituir-se como parte desse todo maior, agora bastante envolvido também com a educação continuada de professores da Rede Municipal e Estadual de Educação. 72 Estava aí implícita, parece-me hoje, uma concepção de formação que parecia envolver a idéia de ‘oportunidade de constituição humana’, pois incluía um dos aspectos mais marcantes, no meu entender, da natureza humana: a possibilidade de errar e aprender a acertar, mesmo com os erros.

que, de algum modo os desequilibrara em suas concepções de formação e de ensino que provavelmente se encontravam acomodadas, sem conflitos.

Consciente de que os desequilibrara, senti o peso da responsabilidade. Não conhecia Driver, Vigotski, Porlán..., mas lembrava muito de Saint-Exupèry, tu és eternamente responsável

por aquele que cativas. Não se tratava de uma visão romântica, mas de um forte sentimento de

compromisso com os universitários. Costumava dizer que, para frustrá-los, melhor seria que não houvesse ‘mexido’ com eles. Não poderia simplesmente dizer-lhes que não era possível, que a estrutura organizacional da Instituição não previa nenhum grupo de alunos do ensino fundamental e médio dentro do Campus. A gente poderia ter pensado em outra alternativa: adotar uma escola de periferia, quem sabe, assumindo todas as aulas de Ciências. Poderia ser uma boa alternativa. Poderíamos ter pensado em oferecer cursos de recuperação nas escolas... mas não pensamos! Talvez até movida por uma ousadia própria de quem ainda não se

“contaminou” pelos entraves burocráticos institucionais por ser recém-chegada73, no alto de uma

insônia provocada pela ansiedade que o impasse e o senso de responsabilidade me haviam gerado, pensei na criação de um Clube de Ciências.

Não conhecia nenhuma experiência nesse sentido74, mas a idéia parecia atender a

expectativa e as necessidades do meu grupo de alunos. Compartilhei a idéia com meus alunos, que a acolheram com entusiasmo, mas com muitas perguntas e reflexões. Discutimos muito sobre o assunto, mas também essa deveria ser uma decisão conjunta, não apenas da professora. Era fim de setembro... Havíamos tido cerca de um mês e meio de aulas quando o grande impasse

surgira. No início de outubro eu me ausentaria para um encontro em Teresina75. Combinamos

que eles continuariam indo para a sala de aula e continuariam a discutir o assunto, registrando as conclusões, interrogações... a que houvessem chegado. No meu retorno, apesar de declararem não ter sido fácil, tinham avançado muito e pudemos, então, redigir o projeto final de criação do que chamávamos à época de “Clubinho” de Ciências.

73 Por uma questão de honestidade, devo lembrar aqui que eu me encontrava no espírito de um curso de Mestrado na UNICAMP, com idéias e práticas formativas avançadas para a sua época, cujos créditos havia já obtido no ano anterior e cuja dissertação estava realizando. Essa perspectiva de prática docente ‘precoce’ havia sido discutida por vários professores e conferencistas do curso, entre eles nosso Coordenador Prof. Dr. Ubiratan D’Ambrósio e um convidado especial, Prof. Dr. Osvaldo Frota-Pessoa. 74 Cerca de dois anos mais tarde o CNPq lançou um projeto nacional de apoio a cinco Clubes de Ciências no país, o que me permitiu supor que deveria ser algo bastante incipiente à época, talvez um dos primeiros.

75 Era um encontro de alunos do Mestrado em Ensino de Ciências realizado na UNICAMP, em 1978, sob a coordenação do Professor D'Ambrósio.

Respaldados pelo apoio da Direção do Centro de Ciências Biológicas76, procedemos à

divulgação do trabalho através de cartas-convite mimeografadas que os alunos universitários encarregaram-se de entregar na porta de algumas escolas. Queríamos algo bem modesto. Seriam 60 crianças e meus alunos, em número de 12, trabalhariam em duplas, cada um sendo apoio para o outro e tendo sob sua responsabilidade 10 crianças. Entretanto, as cartas-convite surtiram um efeito muito além do esperado. Buscando atender tanto crianças que estudavam pela manhã – em geral das primeiras séries do ensino fundamental – quanto aquelas que estudavam à tarde – crianças de 5ª a 8ª série, abrimos inscrições na tarde de uma segunda-feira e na manhã da terça subsequente.

Foi surpresa e susto a um só tempo quando, antes da metade da manhã tivemos que encerrar as inscrições, pois estávamos com 274 crianças inscritas! O que isso poderia significar? Teriam as crianças sido iludidas pelo termo Clube? Nós o havíamos usado pela percepção que tínhamos de que o Clube é um lugar em que se vai porque se quer, e se vai fazer o que se quer... Marcamos uma reunião geral com os inscritos para o sábado daquela mesma semana, prevenindo-os de que precisaríamos estudar alguma forma de seleção para reduzir os inscritos ao número desejado.

Para minha própria surpresa, quando discutimos questões como as colocadas acima, os estudantes universitários consideraram que não deveria haver nenhuma forma de seleção e que eles assumiriam todas as crianças, pois se elas haviam chegado ‘iludidas’, haveria uma ‘seleção natural’, com o afastamento progressivo daquelas cujo interesse inicial fosse frustrado.

Formamos, então, oito turmas77 de alunos de ensino fundamental e médio, sendo sete

delas de 1ª a 4ª série e uma de 5ª a 8ª séries. Este resultado nos surpreendeu e acabamos

76 De posse do projeto, alguns alunos e eu fomos conversar com o então Diretor do Centro de Ciências Biológicas, onde sou lotada no Departamento de Biologia como professora de Ecologia Básica, desde março de 1979 - Dr. João Paulo do Vale Mendes, pessoa de muita sensibilidade para as questões educacionais, havia muitos anos conselheiro do Conselho Federal de Educação - que nos ouviu, olhou o projeto, fez algumas perguntas e, dirigindo-se a mim, depositou toda confiança no grupo e empenhou uma cumplicidade fantástica, dizendo: ‘Terezinha, vai em frente com o teu grupo, senão acaba o semestre e tu perdes esta turma. Deixa que eu cuido do resto.’ E ele procedeu aos encaminhamentos burocráticos... 77 Três alunas do curso de Letras participavam da turma de Didática, por equívoco de matrícula e depois preferiram permanecer no grupo, mesmo sabendo dos propósitos específicos daquela turma. Entretanto, em nossos planos de criação do Clube de Ciências, elas ficariam como ‘auxiliares’ dos colegas, revisando textos e fazendo coisas do gênero. Com o grande número de crianças interessadas elas também resolveram assumir turmas das séries iniciais, até porque pelo menos duas já eram professoras ‘primárias’ e consideraram que a experiência lhes poderia ser benéfica. Além disso, tivemos a participação de um

concluindo que havíamos cometido uma falha básica: na carta-convite colocáramos que o trabalho se destinava a alunos de 7-14 anos e não esperávamos que houvesse tamanha defasagem etária...

A prática docente passou a realizar-se, então, em duplas. Os alunos planejavam, contando com minha ajuda pedagógica durante as aulas de Didática e fora delas, se fosse necessário. Encontrávamo-nos com as crianças em dias de sábado. Às 8horas da manhã, reuníamo-nos todos num local amplo, onde se organizavam por grupos. Havia um pequeno bate- papo meu com as crianças. Um bom-dia, algum aviso, alguma recomendação. Havia sempre um cuidado muito grande de que não atrapalhassem as aulas de graduação que pudessem estar ocorrendo. Cada grupo seguia com seus professores para a sua sala.

Nesse primeiro período, as turmas eram muito grandes. Algumas tinham mais de 40! Os meus alunos trabalhavam com os seus até 11 horas. Eu fazia pequenas entradas nas aulas, onde formava idéia do desenrolar do trabalho, percebendo reações das crianças e alguns encaminhamentos dados pela dupla de universitários. Ao final, reuníamo-nos em uma das salas e cada dupla contava aos colegas como haviam trabalhado naquela manhã, dificuldades encontradas, algum episódio relevante... Ouviam perguntas e sugestões dos colegas... davam esclarecimentos e faziam avaliações pessoais. Estavam aí presentes os ‘feedbacks’ constantes ROGERS (1977), e o ambiente democrático, onde as discussões eram realizadas e as decisões, coletivas (LEWIN, 1973; DEWEY, 1976). Aí se adotava a reflexão constante de DEWEY(op.cit), em contraposição à tarefa rotineira, considerando a pessoa como centro e a liberdade para aprender (ROGERS; op cit). Hoje, poderia relacionar nossa prática formativa à formação clínica, de PERRENOUD (1993) e à prática reflexiva, de SCHÖN (1992); ZEICHNER (1993); LISTON & ZEICHNER (1987).

Depois de cerca de um mês e meio de trabalho era tempo de encerrar o semestre78 e

resolvemos apresentar na Universidade nossa Primeira Feira de Ciências, como culminância de nossas atividades. Convidamos, dentre outros, a Administração Superior da Universidade. Fomos visitados por professores, diretores, pró-reitores e pelo Reitor, que se encantou com os trabalhos das crianças, sabatinou-as, sem que elas se intimidassem, mas não conseguia compreendê-las dentro do Campus Universitário! “A universidade é que tem que ir à

aluno de Biologia, que não havia participado da turma, mas se propôs a colaborar no grupo, porque já possuía alguma experiência de ensino por investigação.

78 O primeiro dia de aula do Clube de Ciências foi a 11 de novembro de 1979 e apresentamos a feira, concluindo o semestre em 26 ou 27 de dezembro.

Comunidade e não a Comunidade à Universidade”, me dizia ele a todo momento, enquanto o acompanhava à visitação.

Saiu gostando muito do que vira, mas inconformado com as setas do vetor Universidade-Comunidade. Para nós, esse movimento não se dava no sentido físico, mas no do convite e resposta... no de necessidades – nossas, enquanto membros da Instituição - e da comunidade, enquanto possibilidade de ser atendida em anseios seus.

E nós ficamos sem salas no semestre seguinte...