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V. Contexto histórico

V.3. Averróis, mártir da filosofia?

Os Banu Rušd, a linhagem a que pertence Averróis, não se destacaram apenas por sua atuação na jurisprudência islâmica e na prática legal, mas também participaram

353

ELIA DEL MEDIGO III <XVII, 10>: “ (...) sicut videmus hoc accidere multis hominibus in istis politicis.” Rosenthal III.xvii.10; Lerner 100:5-7; trad. Cruz Hernández, p. 139.

354

ELIA DEL MEDIGO III <XVIII, 3>; trad. Rosenthal III.xviii.3; trad. Lerner 101:16-18; trad. Cruz Hernández, p. 141.

355

BUTTERWORTH, op. cit., 1992, p. 199. 356

ELIA DEL MEDIGO Liber III <XXI, 1>: “(…) et iam declaravimus eos meliore modo quo possibile fuit nobis, secundum languores temporum et angustiam temporis.” Rosenthal III.xxi.1; Trad. Lerner 105:5-6; trad. Cruz Hernández, p. 148.

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ativamente da vida política de Al-Ándalus. A família é conhecida desde o tataravô de Averróis, cuja nasba358 A¬mad b. A¬mad b. Mu¬ammad b. A¬mad b. cAbd Allah b. Rušd indica que eram muçulmanos há pelo menos três gerações359. Sabe-se que esse antepassado de Averróis vivia ainda em 1089, testemunhando, portanto, a ascensão ao poder da dinastia dos almorávidas depois da derrocada dos Reinos de Taifas, esses pequenos Estados independentes em que o território de Al-Ándalus fora dividido depois da fragmentação e da queda do califado de Córdoba em 1031360. Em 1085, tropas cristãs lideradas por Afonso VI tomaram a cidade de Toledo, que não ofereceu quase nenhuma resistência. Al-Ándalus perdeu seu centro geográfico, o que deixou os reinos de Taifas vulneráveis aos ataques dos cristãos. Em 1086, Afonso cercou Saragoça e os muçulmanos procuraram apoio militar junto aos berberes do norte da África, os almorávidas. Segundo um costume do deserto saariano oriental, esses homens cobriam-se de véus porque achavam “indecente mostrar a boca e diziam que nenhum deles reconheceria um companheiro se o visse sem o véu”361. O uso do véu, porém, não se aplicava às mulheres, em razão da tradição matriarcal berbere. O avô e homônimo de Averróis, Abu al-Walid Mu¬ammad b. Rušd, chamado Al-Jidd (o avô) para distingui-lo do neto, chamado Al-©afid, tornou-se célebre pelas inúmeras fatwàs (opiniões jurídicas) que faziam autoridade e que chegaram à posteridade. Uma delas responde à contestação popular do uso do véu (li£am) pelos homens, justificando tratar-se de “um signo de distinção desses defensores da fé (os almorávidas) que assim o foram desde que surgiram”362. Essa determinação por um instrumento legal do Direito islâmico, a fatwà, indica o franco apoio que o avô de Averróis, como prestigiado jurista e cádi malikita de seu tempo, concedeu à dinastia que se instalou em terras andaluzes a partir de 1086. Os almorávidas encarnavam uma nova esperança no restabelecimento da unidade territorial sob o Islã, o que explica a adesão a eles dos Banu Rušd, primeiro o avô e depois o pai de Averróis. Em 1117, Abu al-Walid b. Rušd, o avô, recebeu do sultão a incumbência de “cádi

358

Genealogia incluída no nome. 359

Cf. URVOY, op. cit., 1998, p. 18 et seq. 360

Ver a respeito KENNEDY, op. cit., p. 153 et seq. 361

KENNEDY, op. cit., p. 180. 362

LAGARDIÈRE, V. Histoire et société en Occident musulman au Moyen Âge. Analyse du Micyâr d’al-

Wansharîsî. Madrid, 1995, p. 62, apud URVOY, 1998, p. 23. Essa fatwà nada diz sobre a obrigatoriedade do

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da comunidade” (qad÷ al-jamaca) de Córdoba, função que lhe outorgava o poder de nomear e destituir juízes. Foi também encarregado de dirigir a oração na grande mesquita e de avalizar o sermão do ofício da sexta-feira que sempre exprimia a doutrina oficial almorávida. Esse eminente cádi também fazia parte do órgão comunitário de consulta (šura). Sua participação nos afazeres políticos levou-o a Marrakesh, a nova capital erigida pelos almorávidas, onde defendeu a expulsão em massa dos cristãos moçárabes da Península e recomendou a construção de uma muralha a fim de fortalecer a defesa da cidade de Marrakesh contra uma revolta mais grave que então despontava, a dos almôadas. Abu al-Walid b. Rušd morreu em 8 de dezembro de 1126, cerca de um mês depois do nascimento de seu neto, Averróis363.

Tal qual seu avô, o pai de Averróis, Abu al-Qasim A¬mad, também seguiu carreira na magistratura, foi cádi de Córdoba, embora não conste que tenha recebido as honras que seu pai e filho receberam.

Averróis nasceu nessa família de ilustres magistrados muçulmanos, o que parece ser suficiente para negar a sua origem judia, boatos que se propagaram na tradição medieval e renascentista em razão de seu desterro, em 1195-1196, para Lucena, cidade ao sul de Córdoba e célebre por ter sido habitada, durante o Medievo, por judeus e ter abrigado uma importante escola talmúdica. Desse fato se originou também a lenda de Averróis ter-se refugiado na casa de Maimônides, o que é impossível, já que, na época do desterro de Averróis, o pensador judeu vivia no Cairo havia muitos anos364. Além disso, grande parte da população judia já tinha emigrado e a escola talmúdica fora fechada em razão da política de conversão forçada dos dirigentes.

O exílio forçado de Averróis é objeto de muitas crônicas relatadas por Ernest Renan no século XIX365. Segundo Dominique Urvoy, as causas desse desterro não se resumem a intrigas palacianas em que o partido religioso venceu o partido filosófico, como afirmara Renan366. De fato, diante do avanço dos portugueses em 1190 e da eclosão de rebeliões no Maðrib central, o sultão almôada Al-Man½ur viu-se forçado a retomar os procedimentos

363

Sobre as atividades jurídico-políticas do avô de Averróis, ver URVOY, 1998, p 20-29. 364

Ver nota 289 supra. 365

RENAN, op. cit., p. 33-37. 366

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adotados pelos almorávidas e sacrificou, dentre diversos juristas ilustres, Averróis e Mu¬ammad b. Ibrahim al-Mahri, chamado Al-Usuli, os mais célebres, embora seguissem orientações bem diversas. Os dois são especialistas em metodologia jurídica, sendo que o segundo é uma autoridade nas ciências das Tradições (©adi£) e do Kalam, disciplinas que contêm interpretações que são um constante alvo da crítica de Averróis. Embora sua origem seja uma família sevilhana, Al-Mahri é do Maðrib central, onde então germinava uma latente rebelião contra os almôadas. Averróis é originário de Córdoba. Nada há que os torne semelhantes para justificar a punição conjunta do sultão. Assim, Urvoy afirma que ambos foram vítimas de um gesto político para conciliar as massas, já que uma nova tendência surgia, a saber, não limitar o almoadismo às elites, mas tornar sua ideologia aceita por todos, vinculando-a aos movimentos já existentes367. Por conseguinte, os mais reticentes a aceitar tal compromisso teriam sido destituídos de seus cargos e marginalizados.

O exílio de Averróis em Lucena é um duplo insulto, pois o assimila a uma categoria inferior para os muçulmanos, a dos judeus convertidos, e o torna vítima da perseguição da população local, que o trata por mutafalsif, que significa algo como filósofo menor, filosofante, e por mutazindiq, termo que alude a um “herético medíocre”368. Ibn Jubayr, cronista de viagens, compôs alguns epigramas contra Averróis. Um deles joga com o nome Ibn Rušd, que significa “filho da reta via”, e alude a um contraste entre o filósofo e seu célebre avô jurista:

Não permanecestes na reta via, ó filho da reta via (ibn rušd), quando para tão alto nos céus teus esforços tendiam. Fostes traidor da religião; não foi assim que agiu teu avô369.

Ou jogando com palavras semelhantes, tawalif (obra) e tawalif (coisa perniciosa):

Agora Ibn Rušd não tem certeza se sua obra (tawalif) é coisa perniciosa (tawalif). Ó tu que te iludistes, vê se encontras hoje um só que queira ser teu amigo370.

367

URVOY, op. cit., 1996, p. 44-45. 368

Cf. ibid., p. 46. 369

Apud RENAN, op. cit., p. 36; apud URVOY, 1998, p. 184. 370

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E ainda jogando com a palavra manÐiq que, para os filósofos, significa “lógica”, mas para o vulgo, “palavra”:

O destino fulminou todos os falsificadores que mesclam a filosofia à religião e louvam a heresia. Eles estudaram a lógica (manÐiq); mas diz-se com razão: o infortúnio está confiado à palavra (manÐiq)371.

Esse mesmo Ibn Jubayr compôs uma peça em honra de Averróis, após sua morte, o que parece sugerir que seus anteriores versos satíricos tenham sido então encomendados pelos inimigos do filósofo.

Segundo o historiador Al-An½ari (m. 1303)372, o fato que mais constrangeu Averróis e do qual ele mais se lamentava teria ocorrido na mesquita de Córdoba, quando entrou acompanhado de seu filho e foi expulso pela plebe. Seus discípulos o abandonaram, não se invocava mais sua autoridade. Há também um relato de que um sábio, vindo do Oriente, tentara encontrar-se com ele e fora impedido em razão da severa reclusão em que o filósofo vivia no exílio373.

Averróis também foi acusado de plágio. O historiador Al-An½ari relata em Al-®ayl wa-al-Takmila (O Suplemento e a Conclusão) o seguinte:

De punho e letra do fidedigno historiador Abu al-cAbbas ibn Harun, copiei o que segue:

Informou-me Mu¬ammad b. Abu al-©usayn b. Zarqun que o cádi Ibn Rušd (Averróis) lhe havia pedido emprestado um livro composto por um jurisconsulto de å urasan, que expunha detalhadamente as diferenças entre as diversas escolas jurídicas e as causas que originaram tais diferenças. O livro, continua Ibn Zarqun,

371

Apud RENAN, op. cit., p. 36. 372

AL-AN¼ARI, Abu cAbd Allah b. cAbd al-Malik al-Marrakuši. Al-®ayl wa-l-Takmila [li-ibn Baškuwal] li-

kitabay al-Maw½ul wa-al-¼ila [li-ibn al-Abbar] (O Suplemento e a Conclusão [de Ibn Ba¹kuwal] dos livros Al-Maw½ýl e Al-¼ila [de Ibn al-Abbar]). Ed. I¬san ‘Abbas, Beirut, 1973, v. VI, p. 21-31. Apud CRUZ

HERNÁNDEZ, op. cit., 1997, p. 431. Segundo Cruz Hernández, esta é uma biografia de Averróis bastante completa, já que cita numerosos poemas satíricos e descreve com detalhes a sua perseguição e o seu infortúnio.

373

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nunca foi-me devolvido. E mais, Ibn Rušd apropriou-se dele, acrescentou algumas passagens copiadas dos imãs Abu cUmar ibn c

Abd al-Barr e Abu Mu¬ammad ibn HaÞm e atribuiu a autoria delas a si próprio. Trata-se, acrescenta, da obra Bidayat al-mujtahid wa- nihayat al-muqta½id.

Abu al-cAbbas ibn Harun acrescenta o seguinte comentário: ‘Sabe- se que o homem – Ibn Rušd –, embora seja reconhecido como muito versado em outros campos do saber, nunca se destacou como jurista’374.

O acusador do suposto plágio, Ibn Zarqun, exerceu alguns cargos em localidades menores e teve um certo prestígio como jurista. Contudo, nenhuma de suas obras sobressaem, reduzindo-se a meras compilações de obras de juristas anteriores. Como afirma Ma¬mýd cAli Makki, catedrático da Universidade do Cairo, “o silêncio mantido sobre o autor e o título da obra que ele (Ibn Zarqun) diz ter emprestado a Ibn Rušd faz duvidar de seu relato”375.

É certo que Averróis transcreve passagens de Ibn cAbd al-Barr e de Ibn ©azm em sua obra jurídica, Bidaya. Mas, como esse tratado tem o propósito de discutir as várias posições das escolas jurídicas islâmicas, Ibn ©azm é citado como máximo expoente da escola Þahiritae Ibn cAbd al-Barr tem como reconhecida a sua autoridade quando é citado algum ¬adi£ do Profeta. Como afirma Ma¬mýd cAli Makki, em “nenhum momento Ibn Rušd incorpora passagens desses dois autores andaluzes com a intenção de alterar a fisionomia de uma obra plagiada, pois elas figuram sempre como parte integrante do tecido de seu livro, e não como interpolação forçada e oportunista”376. Desse modo, a acusação de plágio não procede e insere-se no contexto das rivalidades propagadas pelos jurisconsultos tradicionalistas, rápidos em acusar Averróis em razão de seus estudos filosóficos e em levantar suspeitas por parte da opinião pública.

374

AL-AN¼ARI. Al-®ayl wa-al-Takmila (O Suplemento e a Conclusão). Apud MAKKI, Ma¬mýd cAli. Contribución de Averroes a la ciencia jurídica musulmana. In: MARTÍNEZ LORCA, Andrés (Org.). Al

encuentro de Averroes. Madrid: Editorial Trotta, 1993, p. 18.

375

Ibid., p. 19. 376

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SEGUNDA PARTE

O COMENTÁRIO SOBRE A REPÚBLICA

No Comentário sobre A República*, Averróis rompe com seu habitual estilo de exegese dos “comentários médios” sobre as obras de Aristóteles. Nestes, segue de perto o texto original ao citar, cada qual por sua vez, as partes que interpreta, mas, no Comentário sobre A República, deixa de lado o primeiro livro, uma grande parte do segundo, o décimo inteiro e algumas partes dos livros restantes, argumentando que esses textos não são “demonstrativos”, mas “dialéticos”377, embora muitas vezes recorra a passagens d’A República que poderiam ser qualificadas de dialéticas, ou mesmo de retóricas ou poéticas. Apropria-se da filosofia política de Platão, modifica-a introduzindo noções aristotélicas e dirige sua exposição ao sultão Abu Yusuf Yacqub al-Man½ur, governante almôada que reinou de 1184 a 1199 e a quem dedicou a obra. Dois terços da exposição constituem considerações pessoais do Comentador e não se referem especificamente ao texto platônico. Alguns trechos apresentam paráfrases do texto platônico e outros simplesmente mudam o

* As marcações nas notas de rodapé referentes ao texto de Averróis, aqui apresentadas, seguem a divisão dos parágrafos da edição latina da versão de Elia del Medigo de autoria de Annalisa Coviello e Paolo Edoardo Fornaciari, que adotaram os critérios da edição crítica do texto hebraico de E. I. J. Rosenthal em AVERROÈ.

Parafrasi della “Republica” nella traduzione latina di Elia del Medigo. Firenze: Leo S. Olschki Editore,

1992. A paginação da tradução inglesa da versão hebraica realizada por Ralph Lerner segue a paginação da edição hebraica de Rosenthal, que tem início na p. 21.

377

Nas primeiras linhas de seu tratado, Averróis declara: ELIA DEL MEDIGO I <I, 1>: “Intentio in hoc sermone est declarare illud quod continent sermones attributi Platoni in sua politica ex sermonibus scientificis, ac dimittere semones famosos et probabiles in ipsa positos, intendendo semper brevitate.” Trad. Rosenthal I.i.1; trad. Lerner 21:1; trad. Cruz Hernández, p. 3. Rosenthal e Lerner traduziram por “dialéticos” o termo hebraico nitzu¬im (sing. nitzua¬); cf. KLATZKIN, Jacob. Thesaurus Philosophicus linguae

hebraicae et veteris et recentioris. 3 v. Berlin: Verlag Eschkol A-G., 1930, pars III, p. 62. Segundo o verbete

em questão, o termo hebraico nitzu¬im corresponde a Topica, título da obra aristotélica, e ao termo árabe al-

jadal, dialética. Salientamos e agradecemos a valiosa contribuição do Prof. Nachman Falbel que, com

solicitude, indicou-nos as fontes com que conseguimos elucidar vários problemas no confronto da versão hebraica com a latina.

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conteúdo das passagens comentadas para melhor se adaptarem à discussão das condições sociais e políticas da época. Por outro lado, a exposição de Averróis inclui trechos que se assemelham ao estilo do “comentário médio”, já que apresenta uma análise dos argumentos filosóficos usados por Platão em algumas passagens, embora deixe de fazê-lo a respeito de outras.

Averróis divide a sua exposição em três livros. O primeiro deles corresponde à segunda parte do Livro II d’A República; o Livro II corresponde a partes dos Livros VI-VII, e o Livro III, aos Livros VIII-IX do texto platônico.

No Livro I, Averróis apresenta o fundamento teórico da ciência prática política, cuja parte teórica, entre os filósofos de expressão árabe, também pode ser chamada de “política”378, ao invés de “ética”. Nessa parte da obra, Averróis discorre sobre as virtudes morais e sobre como deve estar organizada a cidade ideal. Nesse livro, é dado um grande destaque à educação dos guardiões. O segundo livro trata dos seguintes pontos: o papel do governante e suas qualidades, o fim supremo do homem e do sábio, a felicidade suprema dos seres humanos, a relação entre a política e as ciências práticas e teóricas, a maneira como as artes práticas379 e as virtudes são governadas pela razão, o sentido da alegoria da caverna, a educação por meio da matemática e da música. Nesse livro, Averróis segue o

378

Em árabe, al-siyasat al-madaniyya, como está no título do Livro da Política, de Al-Farabi. 379

Pode causar estranheza aos filósofos conhecedores da obra de Aristóteles a expressão “artes práticas”, mas ela traduz o árabe al-½inacat al-camaliyya. Os tradutores Rafael Ramón Guerrero e Muhsin Mahdi traduzem

diretamente do árabe o termo como “artes práticas” e “practical arts”, ver AL-FARABI. El Camino de la

Felicidad (Kitab al-tanbih calà sabil al-sacada). Tradução (espanhola), introdução e notas de Rafael Ramón

Guerrero. Madrid: Trotta, 2002, p. 36; id. The Attainment of Happiness (Ta¬½÷l al-Sacada). Tradução (inglesa)

de Muhsin Mahdi. Ithaca (NY): Cornell University, 1ª ed. 1962; 3ª ed. 2001, p. 13; 36. Outros especialistas, como Miriam Galston e Charles E. Butterworth, também traduzem a expressão árabe citada por “artes práticas”. Como explica M. Galston, em Al-Farabi (filósofo de quem Averróis retoma literalmente a passagem sobre as virtudes na parte inicial do Comentário sobre A República) a arte é definida como: “A arte (destreza, perícia) (ingl. craft) é um dos aspectos da alma racional prática, o outro é a deliberação (rawiyya); a arte enquanto aspecto da alma racional inclui duas subdivisões, as artes (al-½inacat) e as artes/destrezas (al- mihan)”. GALSTON, Miriam. Politics and Excellence. The political Philosophy of Alfarabi. Princeton (NJ):

Princeton University Press, 1990, p. 95, nota 1. Agradecemos a ajuda do Prof. Nachman Falbel que nos informou que no texto hebraico do Comentário sobre A República lê-se mela¬ot macassiot cuja tradução

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texto platônico, embora apresente conceitos aristotélicos como, por exemplo, quando discorre sobre a perfeição suprema que só é alcançada quando não mais há mescla alguma de potência380. O terceiro livro aborda as formas de governo e tem por guia o filósofo Al- Farabi, precursor de Averróis.

Por que Averróis, estrela de primeira grandeza do universo aristotélico, conhecido por antonomásia como “O Comentador”, diga-se, de Aristóteles, deixou-nos essa exposição do texto platônico, única por ele dedicada ao “divino” filósofo, merecida alcunha dada a Platão pelos sábios de língua árabe? O suposto comentário sobre A República deve-se, como o próprio Averróis justifica nas páginas iniciais de sua exposição, ao fato de que o texto aristotélico, Política, “não lhe chegara às mãos”. Para realizar o seu objetivo, isto é, a redação de um tratado de ciência política, Averróis recorre, portanto, ao texto platônico, na falta do texto aristotélico381. Serve-se, entretanto, da ética de Aristóteles, sobretudo na primeira parte de sua exposição.

Como afirma E. I. J. Rosenthal, contudo, “a natureza do comentário sobre A República é uma evidência de que se trata de algo mais que um substituto a Política – embora também o seja, como o próprio Averróis nos afirma –, pois difere fundamentalmente de seus outros comentários”382. Rosenthal aponta as questões que diferenciam esse comentário do resto da obra de Averróis, questões que apresentaremos em seguida, pois nos parecem pertinentes para a compreensão do propósito do trabalho de Averróis que, no nosso entender, não pode ser desvinculado de seu contexto histórico- social.

380

ELIA DEL MEDIGO II <XIII, 1>: “(...) et iam declaratum est in scientia naturali quod quodlibet in cuius esse admiscetur potentia, perfectio, remota eius, est ut sit in actu perfectu in quo non sit admixta potentia aliquo modo.” Rosenthal II.xiii.1; Lerner 73:16-18; trad. Cruz Hernández, p. 91. Em hebraico: ha-šlemut ha-

re¬oq, “perfeição última” (pl. šlemuyot); o termo hebraico para “virtude” é macalá (sing.), macalot (pl.), cf.

edição COVIELLO; FORNACIARI, p. 74, nota 1. 381

Ver na Primeira Parte de nosso trabalho o cap. II.3. “Política, de Aristóteles, entre os árabes”. 382

ROSENTHAL, E. I.. J. The place of politics in the philosophy of Ibn Rushd. In: Studia Semitica. v. II:

Islamic Themes. Cambridge: Faculty of Oriental Studies, Cambridge University Press, 1971, p. 61. (= Bulletin, School of Oriental and African Studies (BSOAS), v. XV, nº 2, 1953, p. 246-278).

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1. Incialmente, trata-se de uma crítica feita por um filósofo muçulmano, herdeiro da tradição platônica e aristotélica, ao governo e à sociedade de sua própria civilização, no presente e no passado.

2. Em segundo lugar, trata-se de uma crítica aos teólogos (mutakallimun), contemporâneos seus, na linha de seus polêmicos tratados religioso-filosóficos, Fa½l al- Maqal (Tratado Decisivo), Kašf can Manahij al-Adilla (Desvelamento dos Métodos de Demonstração) e Tahafut al-Tahafut(Demolição da Demolição). Essa crítica reflete a tese do filósofo cordobês, em que ele defende a idéia de que apenas aos filósofos compete a