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I.1. Averróis e a crítica ao Estado islâmico de seu tempo

Na Primeira Parte, já foram apresentadas as críticas que Averróis faz, no Comentário sobre A República, à sociedade de sua época, isto é, ao governo dos reis de Taifas e ao governo dos almorávidas e almôadas. Aqui nos interessa apresentar a concepção do “Estado-imami”que transparece em sua crítica aos governos de seu tempo. Preferimos manter a palavra árabe porque traduzi-la por “Estado-sacerdotal” não corresponde ao significado original388.

Averróis distingue entre dois tipos de Estados-imamiyya: no Livro II <XVII, 5>, lemos:

Ora, as cidades que buscam só as virtudes operativas são as que são chamadas “sacerdotais”, e já foi dito que tal cidade sacerdotal existiu nos tempos antigos na Pérsia389.

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Gr. apódeixis = ár. burhan, muitas vezes traduzido do árabe como “prova”. 387

Sobre o tema da Lei revelada e os nómoi, ver PEREIRA, Rosalie H. de S. Eternidade e tempo em Averróis: Da Palavra eterna de Deus ao discurso racional dos filósofos. In: REEGEN, Jan G. J.; DE BONI, Luis A.; COSTA, Marcos Roberto N. Tempo e Eternidade na Idade Média. Porto Alegre: Edições EST, 2007, p. 52- 60; PEREIRA, Rosalie H. de S. L’Universalità della Legge rivelata e le leggi particolari (nómoi) nel pensiero politico di Averroè. Comunicação apresentada no congresso SIEPM, Palermo, 2007.

388

Hebraico kohani = árabe imami. Lerner e Cruz Hernández traduzem por “aristocrático”. 389

ELIA DEL MEDIGO II <XVII, 5>: “Politicae autem quaerentes virtutes operativas tantum sunt illae quae vocantur sacerdotales, et iam narratur quod talis politica, scilicet sacerdotalis, fuit antiquitus in Persis.”

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A segunda referência ao Estado-imami, está no Livro III <IV, 11>, a propósito do governo democrático, cuja oposição à tirania é a maior:

E, por isso, esta cidade está no máximo da oposição à cidade tirânica390, e as riquezas dos cidadãos que, a princípio, estavam nas mãos daquele povo, são hoje domésticas, isto é, são das “casas”391 (dinastias) dos senhores e, por isso, a parte sacerdotal ou a dominante entre eles hoje é pura e simplesmente tirânica392.

E ainda no Livro III <V, 6>, lemos:

Ora, não é assim na cidade tirânica. Nela, de fato, os senhores não buscam, por meio do povo, outra intenção que não seja a que lhes diz respeito. E, por causa dessa semelhança que há entre as cidades

Rosenthal II.xvii.5: trad. Lerner 79:8-9; trad. Cruz Hernández, p. 100. Lerner e Cruz Hernández traduzem o que deve ser cidade “sacerdotal” por “aristocrática”.

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Não tem sentido traduzir por “cidade vitoriosa”, como está na versão de Elia del Medigo, o que, segundo os tradutores da versão hebraica, confirmando a tradução latina de Mantino, corresponde à “cidade tirânica”, cf. nota 345 na Primeira Parte, cap. V.2: “A crítica de Averróis à sociedade de seu tempo”.

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Segundo E. I. J. Rosenthal, o termo árabe bayt (casa) tem aqui o significado de dawla (dinastia, Estado, poder temporal). Cf. ROSENTHAL, op. cit., 1971, p. 65. Para o significado amplo de dawla, ver LAMBTON, Ann K. S. State and Government in Medieval Islam. An introduction to the study of Islamic political theory: the jurists. Oxford: Oxford University Press, 1981, reprint 1991, Glossary.

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ELIA DEL MEDIGO III <IV, 11>: “Et ideo haec politica est in fine oppositionis politicae victoriosae, et divitiae civium positae primo in illa gente sunt hodie domales, id est propter domos dominorum, et ideo pars sacerdotalis vel dominans in eis hodie est victoriosa simpliciter. Haec est dispositio politicae congregativae et rerum accidentium ei.” A versão de Mantino é mais clara quanto à identificação da cidade tirânica: MANTINO 363 E: “Proptereaque videri possit haec civitas tyranicae Reipublicae maxime adversa. Pecuniae vero civiles, quae primo in gente huiusmodi existunt non Reipublicae gratia sed familiares ac privatae potius sunt; transferuntur nam in domos primatum. Et propterea hac tempestate administratio sacerdotum est mere tyrannica.” [“Por causa disso esta cidade pode ser considerada oposta ao máximo à cidade tirânica. De fato, os recursos pecuniários civis que, a princípio existem numa população deste gênero, existem não em favor da cidade, mas são antes recursos familiares e privados, já que são transferidos para as casas dos poderosos (primazes)”]. Trad. Rosenthal III.iv.11; trad. Lerner 85:3-5; trad. Cruz Hernández, p. 111. Segundo Cruz Hernández, visando as classes aristocráticas islâmicas, a crítica de Averróis atinge de fato o imamato. Embora respeite sempre o imamatode Ibn Tumart, o alvo de sua crítica são os ulemás e alfaquis, isto é, os doutores teólogos e os jurisconsultos, cf. trad. Cruz Hernández, p. 111, nota 12.

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sacerdotais, isto é, as ótimas, e as cidade tirânicas, muitas vezes as partes sacerdotais, encontradas nestas cidades, transformam-se em tirânicas. E fingem que a intenção deles visam ao bem, como [é] a disposição nas partes sacerdotais das cidades que são encontradas em nosso tempo.393

Numa passagem de seu Comentário Médio sobre Retórica, Averróis divide o poder excelente em dois tipos: a) o dos reinos onde as opiniões e as ações se conformam ao que as ciências teoréticas prescrevem; b) o do governo dos melhores onde apenas as ações são virtuosas: “Este é conhecido por imamiyya; diz-se que existia entre os antigos persas, segundo o que relatou Abu Na½r [al-Farabi]”394.

I.2. Crítica aos teólogos e aos juristas.

Durante muitos séculos, dominava em Al-Ándalus e no Maðrib (Norte da África) o sistema jurídico da escola malikita. Os juristas malikitasnão viam qualquer necessidade de um sistema teológico que fosse mais claro que os textos sagrados. Seguiam à risca o adágio atribuído a seu mestre, Malik ibn Anas395: “O conhecimento é tríplice: o completo Livro de Deus, a Tradição (sunna) e o ‘eu não sei’”396.

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ELIA DEL MEDIGO III <V, 6>: “Non autem sic est in politica victoriosa. Nam in illa non quaerunt domini mediante vulgo aliam intentionem nisi intentionem propter se tantum. Et propter istam similitudinem quae est inter politicas sacerdotales, id est optimas, et politicas victoriosas, multum transmutantur partes sacerdotales inventae in istis politicis ad victoriosas. Et fingunt quod intentio eorum est propter bonum, sicut invenitur dispositio in partibus sacerdotalibus politicarum quae inveniuntur in tempore nostro.” Trad. Rosenthal III.v.6; trad. Lerner 86:5-12; trad. Cruz Hernández, p. 111.

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AVERROÈS (IBN RUŠD). Commentaire Moyen à la Rhétorique d’Aristote. Édition critique du texte arabe et traduction française par Maroun Aouad. 3 v. Paris: Vrin, 2002. v. II: Édition et traduction. p. 69. 395

Malik ibn Anas (ca. 711-796) foi o fundador dessa escola jurídica (ma² hab) que floresceu em Medina. Sua principal obra, MuwaÐÐa’ – ou “Caminho nivelado” –, é a primeira formulação a se tornar lei jurídica e representa o primeiro tratado de fiqh do Islã. Muitos livros de casuística islâmica (furuc = ramos), que abrange qualquer situação legal e moral, foram elaborados com base no tratado de Malik. Sobre o malikismo, ver DUTTON, Yasin. The Origins of Islamic Law. 1ª ed. 1999; 2ª ed. Londres: RoutledgeCurzon, 2002.

396

Apud HOURANI, George F. Introduction. In: Averroes. On the Harmony of Religion and Philosophy. Londres: Luzac & Co., 1976, p. 7.

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Sabe-se da chegada dos muctazilitas em Al-Ándalus, nos séculos IX e X, em conseqüência das severas penas impostas aos considerados heréticos e infiéis no Oriente. No século XI, a teologia ašcarita397 já era conhecida na parte ocidental do Islã, como atesta o jurista, pensador e poeta de Córdoba, Ibn ©azm (994-1063)398.

Segundo Rosenthal, Averróis identifica os sofistas criticados por Platão com os mutakallimun399. O fanatismo dos almôadas favoreceu o exercício do poder que os culama’ e os fuqaha’– os sábios teólogos e os juristas – exerciam sobre as massas. Os mutakallimun (os teólogos conhecidos por “racionalistas”400), especialmente, suspeitavam da filosofia de cunho helenizante (falsafa) e de seus seguidores, os filósofos (falasifa). Segundo Rosenthal, é possível que o exílio a que, em 1195, Averróis foi condenado tenha sido um expediente para acalmar esses grupos e as massas sobre as quais exerciam influência. Como já assinalamos, também Dominique Urvoy é dessa opinião401. Nesse contexto, portanto, a filosofia não tinha como desenvolver-se, exceto em algumas mentes esclarecidas.

Para compreender a razão da oposição de Averróis aos mutakallimun, é preciso lembrar que tanto os filósofos como esses teólogos “racionalistas” reivindicavam o direito e o dever de explicar por provas argumentativas as crenças e as convicções dos muçulmanos

397

Al-Ašcar÷ (873-935), descendente de uma tribo árabe, o pensador nasceu em Basra (atual Iraque) e foi discípulo do muctazilita Al-Jubba’÷, afastando-se dele em 912. No final de sua vida, mudou-se para Bagdá,

onde morreu. O ašcarismo (al-ašcariya) foi uma das doutrinas teológicas mais propagadas durante o período

do Islã clássico. 398

Ibn ©azm seguia a escola jurídica Þahirita. Em sua importante obra de crítica às religiões e doutrinas,

Kitab al-fa½l wa-al-ni¬al, Ibn ©azm critica o ašcarismo.

399

Cf. ROSENTHAL, op. cit., 1971, p. 66. 400

Ver Primeira Parte, cap. III.2.a.: “Mutakallimun, muctazilitas e ašcaritas”. O termo mutakallimun (os

seguidores do movimento conhecido por Kalam) aparece também traduzido por “teólogos dialéticos” e “escolásticos do Islã”. Os teólogos “racionalistas” são assim chamados porque consideravam a lógica um instrumento (gr. órganon = ár. ala) capaz de fortalecer suas doutrinas religiosas nas disputas contra os ataques de pensadores não ortodoxos. Os ašcaritas foram os que mais se muniram dos instrumentos lógicos gregos em

razão de sua disputa contra os mutakallimun. Sobre a lógica entre os árabes, ver GYEKYE, Kwame. Arabic

Logic. Ibn al-Æayyib’s Commentary on Porphyry’s Eisagoge. Albany: State University of New York Press,

1979. 401

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que viviam sob a autoridade da Lei religiosa (Šarica). Convencido da inexatidão das interpretações das crenças e opiniões religiosas por parte desses teólogos, Averróis se propôs a estabelecer a superioridade da filosofia, a única intérprete autorizada e legítima da Lei religiosa, a fim de que fosse mantida a ortodoxia e a unidade da comunidade. Para isto escreveu sua trilogia polêmica, composta do Fa½l al-Maqal (Tratado Decisivo), do Kašf can Manahijal-Adilla (Desvelamento dos Métodos de Demonstração) e de ¾amima (Apêndice) em defesa da superioridade da Lei religiosa. Demonstrou que, como a Lei e a filosofia têm o mesmo objetivo, cabe ao filósofo interpretar a Lei por meio da demonstração apodítica. É neste contexto que devemos compreender a insistência de Averróis, no Comentário sobre A República, em fazer-se advogado de defesa dos argumentos demonstrativos402 e em criticar as interpretações dos teólogos, porque, segundo ele, somente o filósofo está apto a propagar as concepções e crenças verdadeiras. É neste sentido que o soberano deve também ser um filósofo, pois cabe a ele a divulgação correta das crenças e convicções religiosas baseadas na correta interpretação da Lei revelada.