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III. Base teorética da ciência prática política

III.1. c Analogia da ciência política com a medicina

Averróis afirma que a relação entre Ética Nicomaquéia e Política / A República é a mesma que se observa na arte da medicina: assim como nesta, cuja primeira parte trata da saúde e da enfermidade, também na política, a primeira parte indica e analisa os hábitos e as ações necessários para a saúde da alma e, por extensão, também para a saúde da cidade. Se a parte da ciência médica que descreve a saúde e a enfermidade pode ser considerada a parte teórica desta arte, a ética é, do mesmo modo, considerada a parte teórica da arte prática que tem por finalidade as ações humanas. A parte propriamente política desta ciência é, na medicina, análoga à parte que trata da preservação da saúde e da eliminação da enfermidade. O objeto da arte prática é apenas a ação, embora suas partes sejam diferentes segundo a “proximidade de cada uma delas com a ação”, pois a parte mais geral, isto é, a parte da ciência prática que contém os princípios universais, é a que trata das regras e, portanto, está mais afastada da ação propriamente, enquanto a menos geral, isto é, a parte que não trata dos princípios, mas das ações propriamente, é a parte que está mais próxima da ação440.

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ELIA DEL MEDIGO I <I, 4>: “(...) Huius autem scientiae finis tantum est operari, quamvis partes eius inducendo ad operationem diversificantur secundum propinquitatem et remotionem; <5> id est, quod regulae datae in ista scientia quanto magis sunt universales, tanto magis sunt remotae in inducendo ad operationem. Quando autem minus universales sunt, magis propinquae. § Similis autem huius intentionis invenitur medicina: et ideo vocant medici partem primam artis medicinae, partem theoricam, secundam practicam. <6> Et propter istam intentionemmet dividitur haec ars in duas partes. Prima pars, continet habitus et operationes voluntarias et regimen universaliter sermone universali; et declaratur in ea habitudo quorumdam eorum ad quosdam, et qui eorum habituum sunt propter reliquos. § In secunda autem parte declaratur quomodo fiunt isti habitus in animis, et quis habitus ordinatur ad alium habitum, ita ut sit operatio proveniens ab habitu perfectiori modo quo potest esse, et quis habitus impedit alium habitum. Et universaliter in ista parte assignantur res quae, cum erunt coniunctae cum intentionibus universalibus, possibile est agere.” Trad. Rosenthal I.i.4-6; trad. Lerner 21:10-22:5; trad. Cruz Hernández, p. 4-5.

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A parte teorética ou universal da arte prática formula as regras ou normas pelas quais as ações humanas deverão ser conduzidas. Averróis se refere à ética. Embora o Comentador não se detenha aqui sobre essa questão, essa distinção entre teoria e prática conduz à questão central de qual tipo de conhecimento se trata quando relacionado à ação. De fato, afirma ele, quanto mais universais forem as regras, mais próximo se estará da ciência teorética. E mais, se é por meio da arte da política que a cidade está organizada de modo a facilitar a obtenção da perfeição individual na atividade que cada cidadão exerce441, o mestre dessa arte deve ser alguém que tenha um claro entendimento da perfeição humana e do modo como obtê-la, entendimento que só pode ser obtido por meio da ciência teorética, ou seja, da parte teórica da política, a ética.

No Comentário sobre A República essa alusão sobre o mestre da arte é aqui interrompida e Averróis volta ao preâmbulo, à parte que trata do porquê da natureza política do homem. Antes de discorrermos sobre essa parte, convém apontar algumas reflexões acerca da analogia entre o corpo biológico e o corpo civil, ou melhor, entre a medicina e a política, ambas entendidas como ciências ou artes.

A analogia entre o corpo individual e o social se funda na continuidade de gênero em que o caráter composto dos corpos põe em evidência a composição das partes em um conjunto unificado naturalmente, e é usada para comparar a ordem interna dessas partes naturalmente governadas, no corpo individual pela razão e, no corpo político, pelo soberano, seja ele um rei, um príncipe, um governante ou um imã, segundo a correspondência dos termos feita por Al-Farabi, adotada por Averróis,e de que trataremos na parte aqui dedicada às qualidades essencias do soberano.

A analogia entre o médico e o político faz parte de uma tradição cuja origem remonta a Platão. Adotada por Aristóteles, lemos em Ética Nicomaquéia I, 13, 1102a 18-

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ELIA DEL MEDIGO I <II, 5>: “Et quia impossibile est quod perveniant perfectiones humanae nisi distinctae in hominibus determinatis, ideo fuerunt omnia individua huius speciei diversa in suis dispositionibus secundum diversitate istarum perfectionum. § Si enim quislibet eorum esset aptus et ei esset possibile habere omnes perfectiones humanas, tunc natura fecisset otiosum. Impossibile est enim quod aliquid sit possibile cuius exitus ad actum sit in potentia. <6> Et hoc iam declaratum est in scientia naturali. Et sensu testificatur in esse hominum secundum illud modum, et magis declaratur hoc in perfectioinibus nobilibus. Nam non quilibet homo secundum suam dispositionem est miles vel poeta, et a fortiori philosophus.” Trad. Rosenthal I.ii.5-6; trad Lerner 22:30-23:7; trad. Cruz Hernández, p. 6-7.

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22: “É evidente que o político deve ter um certo conhecimento relativo à alma do mesmo modo que quem cura os olhos deve também ter um certo conhecimento geral do corpo.”

Já Al-Farabi fizera uso dessa analogia em Fu½ul al-Madani (Artigos/Aforismos da Ciência Política). No início dessa obra, no § 3, Al-Farabi faz a analogia entre o equilíbrio e o desequilíbrio na constituição do corpo físico com o equilíbrio e desequilíbrio na cidade e afirma que, quando o corpo se desequilibra resultando em enfermidade cabe ao médico restaurar sua saúde e mantê-la; do mesmo modo, quando os cidadãos se afastarem do estado equilibrado das virtudes morais, cabe ao político restaurá-lo. Al-Farabi repete a fórmula de Aristóteles442 e afirma que o médico e o político têm em comum suas operações, embora o primeiro lide com corpos e o segundo, com almas. Como a alma é mais nobre que o corpo, o político é mais nobre que o médico443. O médico prescreve o tratamento dos corpos e o político, o das almas. “Esse político é chamado rei”, afirma Al-Farabi444.

Como vimos, nas linhas introdutórias de seu preâmbulo, Averróis afirma sua intenção de expor a parte “científica” da ciência política que, como a ciência médica, contém uma parte teorética e uma parte prática, sendo esta a menos geral e mais próxima de fatos e operações singulares. Com isso ele indica que a ciência política tem duas partes, a teorética e a prática. A substituição da Política pela República permite-lhe entrelaçar considerações de origem aristotélica com o discurso platônico, lá onde Averróis vê necessidade de completar o seu comentário sobre o texto platônico. Todavia, para fazer a

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ARISTÓTELES. Ética Nicomaquéia I, 13, 1102 a 21-22: “(...) a política é superior à medicina e mais digna de honra.”

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AL-FARABI. Fu½ul al-Madani (Artigos/Aforismos da Ciência Política) § 3. In: GUERRERO, Rafael Ramón. Obras político-filosóficas. Madrid: Debate: CSIC, 1992, p. 98.

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No entanto, no mesmo parágrafo, Al-Farabi afirma a diferença entre o rei e o político: “O político segundo a arte (½inaca) política e o rei segundo a arte real”. Sobre a diferença entre a ciência política e a arte real, ver

AL-FARABI. Kitab al-Milla (Livro da Religião), passim. In: GUERRERO, op. cit., p. 82-93, cujas páginas são dedicadas à Ciência Política.

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analogia epistemológica entre as partes práticas da medicina e da política, Averróis faz uma reflexão pessoal ampliando o discurso d’A República acerca dessa analogia445:

<5> (...) quanto mais universais são as regras dadas nesta ciência [política], mais afastadas elas estão em aplicar-se à operação; quando, porém, são menos universais, estão mais próximas.

Ora, o propósito da medicina é semelhante: os médicos, por isso, também chamam de parte teorética a primeira parte da arte da medicina, e de prática, a segunda. <6> E, em razão desse propósito, esta arte (ciência política) está dividida em duas partes: a primeira parte contém, em um discurso geral, os hábitos e as operações voluntárias e as direções (regimen) gerais; nela está demonstrado o hábito de uns aos outros e também que hábitos existem em razão de outros.

Na segunda parte, entretanto, está demonstrado como estes hábitos se formam nas almas e como se ordena um hábito em relação a outro, de maneira que uma operação seja proveniente do hábito pelo modo mais perfeito que possa haver, e que hábito impede um outro hábito. E, em geral, nesta [segunda] parte estão assinaladas as coisas que, quando estiverem conjuntas com noções (intentionibus) universais, é possível operar.

<7> Ora, o modo de ser (habitudo) da primeira parte dessa ciência com relação à segunda parte é o [mesmo] do Livro sobre a Saúde e a Enfermidade com o Livro da Preservação da Saúde e do Afastamento da Enfermidade na arte da medicina. <8> A primeira parte desta arte está posta no livro de que se ocupa a [Ética] Nicomaquéia de Aristóteles, mas, a segunda está em seu Livro sobre a Política e [também] neste livro de Platão que pretendemos

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Não é em A República que Platão apresenta os aspectos mais significativos da analogia entre a política e a medicina, mas no diálogo Político, cf. GERBIER, op. cit., p. 14. Em A República III, 405c - 408e, Platão alude à analogia entre medicina e política, principalmente ao referir-se a Asclépio (407e-408a).

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explicar, pois o livro de Aristóteles sobre a política não chegou até nós446.

A articulação do conhecimento do universal com o conhecimento do particular passa, na medicina, dos livros em que estão descritos os estados gerais da saúde e da doença447 para os livros em que estão arroladas as prescrições para manter a saúde e erradicar a moléstia448, ou seja, do conhecimento teorético dos estados em geral para a ação prática da cura ou manutenção da saúde. Na política, o conhecimento do universal passa dos hábitos virtuosos e, portanto, desejáveis, descritos na ética, para o conhecimento do particular, isto é, para a concretização desses hábitos na perfeição das ações individuais e sociais. Segundo Laurent Gerbier, essa analogia tem como resultado a tese de que a política é uma prática que pode ser instituída, o que, no tratado de Averróis, é atestado pela abundância de ilustrações históricas, principalmente relativas à história de Al-Ándalus de sua época. Os exemplos históricos servem para Averróis demonstrar que a ciência política não está restrita à descrição de processos morais, mas pode bem dar conta de processos históricos reais, embora estes não sejam suficientes para uma reflexão política449. De fato,

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ELIA DEL MEDIGO I <I, 5-8>: “<5> id est, quod regulae datae in ista scientia quanto magis sunt universales, tanto magis sunt remotae in inducendo ad operationem. Quando autem minus universales sunt, magis propinquae. § Similis autem huius intentionis invenitur medicina: et ideo vocant medici partem primam artis medicinae, partem theoricam, secundam practicam. <6> Et propter istam intentionemmet dividitur haec ars in duas partes. Prima pars, / continet habitus et operationes voluntarias et regimen universaliter sermone universali; et declaratur in ea habitudo quorumdam eorum ad quosdam, et qui eorum habituum sunt propter reliquos. § In secunda autem parte declaratur quomodo fiunt isti habitus in animis, et quis habitus ordinatur ad alium habitum, ita ut sit operatio proveniens ab habitu perfectiori modo quo potest esse, et quis habitus impedit alium habitum. Et universaliter in ista parte assignantur res quae, cum erunt coniuctae cum intentionibus universalibus, possibile est agere. § <7> Habitudo autem primae partis huius scientiae ad secundum est habitudo Libri sanitatis et aegritudinis ad Librum conservationis sanitatis et remotionis aegritudinis in arte medicinae. <8> Prima pars huius artis ponitur in libro qui nuncupatur Nicomachia Aristotelis; secunda autem in suo libro de Politica et in isto libro Platonis quem intendimus declarare. Liber enim Aristotelis in politica nondum pervenit ad nos.” Trad. Rosenthal I.i.5-8; trad. Lerner 21:18-22:5; trad. Cruz Hernández, p. 4-5.

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Libri sanitatis et aegritudinis, cf. ELIA DEL MEDIGO I <I, 7>.

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Librum conservationis sanitatis et remotionis aegritudinis, in ibid.

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depois de apontar a analogia entre as operações da arte médica com as da política, Averróis desenvolve melhor a analogia entre as partes desses dois “corpos”, o individual e o coletivo. Assim, depois de afirmar que algumas das virtudes, como a sabedoria e a coragem, são encontradas cada qual em uma parte da cidade, enquanto outras, como a justiça e a moderação, podem ser encontradas em todas as partes da cidade, Averróis anuncia que, para o conhecimento das virtudes, é necessário que sejam completadas ainda três tarefas: 1) explicar em que condições cada uma das virtudes pode ser atualizada, pois, “como afirma Aristóteles”, a finalidade desse conhecimento [prático] é apenas a ação, e não o conhecer450; 2) conhecer como as virtudes são incutidas nas crianças, como elas se desenvolvem e são preservadas e como os vícios podem ser removidos “das almas dos maus”. Averróis menciona que este ponto se parece com a medicina, que faz conhecer como os corpos crescem saudáveis, como a saúde é preservada e como são erradicadas as enfermidades451; 3) ter presente a analogia médico-política, focalizando a relação entre a descrição geral e a ação particular:

<6> O terceiro [ponto] é que se dê a conhecer que hábito e que virtude quando, aliada uma a outra, sua atividade é a mais perfeita e que hábito impede outro hábito. De fato, tal como o médico diz que a disposição no corpo, aliada a uma outra disposição, induz à saúde e a preserva, assim também é esta disposição. <7> E podemos conhecer tudo isso ao conhecer as perfeições452 daquelas perfeições

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ELIA DEL MEDIGO I <IV, 4>: “Finis autem cognitionis huius est, sicut dicit Aristoteles, facere, non scire.”; trad. Rosenthal I.iv.4; trad. Lerner 24:20; trad. Cruz Hernández, p. 9.

451

ELIA DEL MEDIGO I <IV, 5>: “(...) Et universaliter dispositio in hoc est sicut dispositio in arte medicinae; et sicut ultima pars medicinae continet et declarat quomodo augmentatur corpora secundum sanitatem et quomodo conservantur in eis et quomodo removeantur ab eis aegritudines quando egressae fuerint a sanitate, ita est dispositio in hoc.” Trad. Rosenthal I.iv.5; trad. Lerner 24:23-25; trad. Cruz Hernández, p. 9-10.

452

Texto corrupto? Na tradução de Rosenthal, lê-se: “the <ultimate> purpose of these several perfections”; na tradução de Lerner lê-se “the ends of all these perfections”. Conhecer a finalidade (télos) das perfeições está de acordo com a doutrina de Aristóteles, cf. ARISTÓTELES. Ética Nicomaquéia I, 1094 a 18: “Se, portanto, há um fim (télos) naquilo que fazemos”; mas, a versão latina estaria de acordo com a seguinte passagem:

Et.Nic. I, 1098 a 15: “o bem humano é resultado da atividade da alma segundo a virtude, e se as virtudes são

mais de uma, segundo a melhor e a mais perfeita”. “Perfeição” aqui corresponde melhor ao termo grego areté que é comumente traduzido por “excelência” ou por “virtude”. Preferimos manter aqui o termo “perfeição” de

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e a que se visa por meio delas enquanto partes da cidade, como a manutenção e a redução da saúde dos membros é conhecida, na maioria das vezes, pelo conhecimento do hábito deles em relação aos restantes membros, e a excelência deles em relação a outros453.

Segundo Gerbier, essa passagem é interessante porque observa-se que, de um lado, Averróis passa da analogia epistemológica dos procedimentos da medicina e da política a uma analogia física entre as disposições do corpo humano e as do corpo político; de outro, à luz desse paralelismo, compreende-se como a analogia com a medicina permite esclarecer a articulação entre as virtudes e a sua realização, pois, “nos dois casos, o conhecimento teorético geral é o conhecimento dos ‘hábitos’ entre as disposições ou entre as partes da composição”454 do corpo físico e do corpo social. Essa articulação entre o geral e o particular, entre o conhecimento das disposições potenciais e o conhecimento particular da efetivação real repousa, como afirma Gerbier, “sobre o postulado da homogeneidade entre o sistema das virtudes consideradas no indivíduo e seus efeitos considerados no conjunto da comunidade”455. De fato, quase no final do Livro I, Averróis afirma:

<2> (...) Mas as cidades em que o de um é de todos são cidades [em que seus membros são] naturalmente ligados e associados. <3> Pois

acordo com a tradução de Elia del Medigo, mas, ao longo de nosso trabalho, usamos os termos “virtude” e “perfeição” no sentido de ARISTÓTELES. Metafísica , 16, 1021b: “kaì hé aretè teleíosís tis” (A virtude [que é própria de cada coisa] é uma perfeição); Id. Ética Nicomaquéia II, 5, 1106a 15. No sentido de “virtude moral”, Ét.Nic. I, 13, 1102a 6: hé eudaimonía psykhês enérgeiá tis kat’ aretèn teleían. Cf. LIDDELL & SCOTT, p. 238. Todavia, no Livro II <IX, 3>, Elia del Medigo usa perfectiones equivalente a virtutes, ver a citação do texto latino nas notas 487, 578 e 579. Sobre as correspondências desses termos latinos com os hebraicos, ver notas 538 e 539.

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ELIA DEL MEDIGO I <IV, 6-7>: “<6> Tertium autem est ut declaretur quis habitus et quae virtus, cum adiungitur alteri virtuti, est operatio illius virtutis perfectior, et quis habitus impedit alium habitum. Sicut enim medicus dicit quae dispositio adiuncta in corpore cum alia dispositione inducit sanitatem et conservat ipsam, ita est dispositio haec. <7> Et totum hoc possumus scire sciendo perfectiones illarum perfectionum (sic); et quid intenditur per eas in quantum sunt partes politicae, sicut conservatio sanitatis membrorum et reductio eius in ipsis, cognoscitur ut plurimum per cognitionem habitudinis eorum ad reliqua membra et nobilitatem eorum respectu aliorum.” Trad. Rosenthal I.iv.6-7; trad. Lerner 24:26-35; trad. Cruz Hernández, p. 10. 454

GERBIER, op. cit., p. 16. 455

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a disposição na comunicação entre as partes dessa cidade com a cidade toda é como a disposição entre as partes do corpo animal com o corpo todo, na tristeza e no prazer. E, assim, o corpo todo se contrai embora apenas um único dedo sofra, de maneira que [parece que] a aflição está no corpo todo, e diz-se que ele está enfermo; e a disposição é a mesma nas alegrias e nos prazeres. <4> (...) E esse é o bem maior da cidade, a saber, que suas partes e seu todo sejam o mesmo nas alegrias ou adversidades, como é a disposição dos membros do corpo unidos ao corpo456.

Averróis compreende as partes somente em relação ao todo e essa passagem indica a idéia de uma hierarquia equilibrada no corpo social. De fato, Averróis se empenha em mostrar que o equilíbrio das virtudes nos indivíduos está em relação direta com o equilíbrio social. Depois de afirmar que “Platão disse” que a eqüidade (justiça) social na cidade consiste no equilíbrio das “três naturezas” – a natureza racional, a natureza irascível e a apetitiva457, a cidade, diz Averróis, onde essas três naturezas estão equilibradas, é sábia, corajosa e moderada. Mas, embora essas faculdades existam na alma do indivíduo isolado, elas não se realizam nele se não houver justiça na cidade e, se essas faculdades não existem nas almas dos cidadãos, seria impossível que elas estivessem na cidade, “pois na cidade essas coisas só podem existir por meio dos seres humanos”, de modo que a natureza cogitativa (= racional) domine as demais458. A transposição da justiça na alma para a justiça social é novamente esclarecida por uma analogia médico-política:

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ELIA DEL MEDIGO I <XXVII, 2>: “(...) Sed politica in quibus illud quod est unius in ea est omnium est politica colligata et associata naturaliter. <3> Nam dispositio in communicatione partium istius politicae ad totam politicam est sicut dispositio in communicatione partium corporis animalis in tristitia et delectatione ad totum corpus. Et ideo contristatur totum corpus cum digitus unus patitur aliquid, ita quod haec tristitia est / in toto corpore, et dicitur esse aegrum: et sic est dispositio in gaudiis et delectationibus. (…) <4> (…) Et hoc est maximum bonum in politica, scilicet ut sint partes eius idem cum toto in gaudiis et adversitatibus, sicut est dispositio in membris corporis unitis cum corpore. (...)”. Trad. Rosenthal I.xxvii.2-4; trad. Lerner 57:19-58;2;