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e.1 Sobre as mentiras e artifícios para o bem da cidade

III. Base teorética da ciência prática política

III.1. e.1 Sobre as mentiras e artifícios para o bem da cidade

Em Comentário sobre A República I <XII, 5> Averróis faz uma surpreendente declaração. Depois de afirmar que o uso da mentira pelos guardiões e pela massa deve ser punido, já que ela causa um enorme dano, tal qual o dano causado pelo paciente que mente a seu médico, o cordobês afirma que, para os governantes, é lícito e adequado mentir para as massas, pois a mentira tem a mesma função do remédio que convém ao enfermo513. Assim como somente o médico está autorizado a administrar o remédio ao paciente, apenas o rei está autorizado a mentir sobre os assuntos do reino, pois essa mentira equivale ao remédio prescrito ao enfermo. Isso porque as ficções são necessárias à educação dos cidadãos, e, acrescenta Averróis, não há legislador que não tenha feito uso de fábulas inventadas, pois elas são necessárias às massas para que alcancem a felicidade514. Embora nessa passagem Averróis esteja reproduzindo o pensamento de Platão, já que, no início, ele adverte que “Plato inquit”, surpreende a defesa da mentira nos assuntos de governo. E

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Substitui o grego chresmós (resposta do oráculo) d’A República. 513

Cf. PLATÃO. A República III, 3, 389b-c: “(...) se realmente para os deuses a mentira é inútil, enquanto aos homens é útil à guisa de remédio, evidentemente tal remédio deve ser entregue a médicos e ficar fora do alcance de quem não é da profissão. (...) Aos que governam a cidade, mais que a outros, convém mentir ou para beneficiar a cidade ou por causa de inimigos ou de cidadãos, mas tal recurso não deve ficar ao alcance dos demais.” (Trad. Anna Lia A. de Almeida Prado). Ver id. Leis 916 et seq.

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ELIA DEL MEDIGO I <XII, 5>: “(...) Cum autem aliquando principes dicunt vulgo mendacium, convenit eis aliquo modo, sicut convenit aegrotanti. <6> Et sicut ille qui dat medicinam est medicus, ita quis dat vulgo mendacium est rex in negotiationibus principatus. Narrationes enim falsae / necessariae sunt in doctrina hominum politicae, nec invenitur aliquis ponens legem qui non utatur sermonibus falsis: hoc enim est necessarium vulgo in adventu felicitatis eorum.” Trad. Rosenthal I.xii.5-6; trad. Lerner 32:17-22; trad. Cruz Hernández, p. 23.

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surpreende mais ainda a equivalência entre a mentira e o remédio para a “cura” do povo. Mais surpreendente ainda é a afirmação sobre as ficções necessárias transmitidas pelo “profeta” para ajudar as massas a alcançar a felicidade515.

Uma vez que Averróis escreve sobre essas passagens d’A República, é plausível acreditar que ele concorde com as idéias de Platão, já que omite muitas passagens da obra platônica em seu comentário, e esta, não. Se, porém, relacionarmos a aprovação da mentira por parte do governante, como o próprio Averróis endossa, ao relato da mistura dos metais nas almas, observamos que este mito é permitido e até considerado benéfico, pois tem o propósito de persuadir os cidadãos a aceitar a rígida hierarquia social na cidade virtuosa, baseada na natureza e não nas condições sociais externas. Essa não é, contudo, a única “falsidade” usada para convencer os cidadãos a aceitar as normas da cidade virtuosa. Quando trata da procriação entre os guardiões no Livro I, Averróis discorre longamente sobre o cuidado que se deve ter para assegurar que as boas naturezas dos pais sejam transmitidas aos filhos. Já que os guardiões são, por princípio, todos iguais, não há razão para preferências, de ambos os lados, na escolha da parceria, sobretudo porque as uniões devem durar apenas até que a mulher engravide. Essas uniões devem ser arranjadas mediante um artifício absolutamente não-arbitrário, como um sorteio e, assim, seriam fruto do acaso. Todavia, em razão da importância do resultado dessas uniões para o bem-estar da cidade, o sorteio pode ser manipulado pelos governantes de modo que as mulheres mais bem dotadas sejam concedidas aos melhores homens e as menos dotadas aos menos

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No Islã, o Corão é a Palavra divina transmitida por intermédio de Mu¬ammad. As Tradições (©adi£) formam o corpus de relatos acerca dos atos e palavras do Profeta e constituem a sunna, a norma de conduta dos muçulmanos. O Profeta Mu¬ammad é o mensageiro de Allah. Seus atos e palavras (e ainda seus silêncios) servem de paradigma para a vida do muçulmano e, com isso, não podem, de modo absoluto, indicar qualquer falsidade. Sobre o “costume do Profeta” (que funda a sunna) baseiam-se os jurisconsultos e teólogos para determinar o conteúdo da Lei islâmica (Šarica).

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dotados, sem que ninguém o saiba, a não ser o governante516. As uniões arranjadas têm também o propósito de manter a saúde na população517.

Charles E. Butterworth assinala um problema nessa questão da união arranjada. Ela priva os guardiões da livre-escolha518 e, com isso, parece que os únicos que usufruem de uma escolha livre são os governantes, justamente os que dizem mentiras e enganam os cidadãos nos sorteios realizados para determinar as uniões entre homens e mulheres.

Se a educação dos cidadãos e dos governantes não contribui para uma escolha sábia, como pode então ser uma educação para a virtude? Na Ética Nicomaquéia Aristóteles ensina que a conduta virtuosa é deliberadamente escolhida e voluntária:

Dado que o fim é desejado enquanto os modos de atingi-lo são deliberados (bouleutôn) e escolhidos (proairetôn), as ações em relação a esses modos serão voluntárias e de acordo com a escolha (katà proaíresin)519.

Se os governantes legislam para que os cidadãos alcancem a verdadeira felicidade, mas fazem uso de mentiras e artifícios a fim de que a população siga as prescrições dadas, como pensar que a cidade será preparada para adquirir a verdadeira virtude e se tornar perfeita?

Um outro problema parece destacar-se no tocante aos governantes “mentirosos” e “manipuladores”. Na cidade virtuosa de Averróis (e de Al-Farabi), a figura do soberano é equivalente às figuras do legislador, do imã e do rei, como está expresso no Livro II e que trataremos mais adiante, no capítulo VII, dedicado ao soberano-filósofo. Na umma islâmica, modelo da cidade virtuosa, Mu¬ammad é o fundador e o transmissor da Lei

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ELIA DEL MEDIGO I <XXVI, 3>: “(...) Ipsi tamen faciunt hoc tali modo ut sit convenientia inter hominem et foeminam, ita ut bona species foeminarum detur bonae speciei hominum et mala malae, modo tamen quod nullus civium hoc cognoscat, nisi domini tantum.” Trad. Rosenthal I.xxvi.3; trad. Lerner 55:23; trad. Cruz Hernández, p. 62.

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ELIA DEL MEDIGO I <XXVI, 7>: “(...)hoc tamen debet esse secundum mensuram convenientem in qua conservatur sanitas.” Trad. Rosenthal I.xxvi.7; trad. Lerner 56:22-24; trad. Cruz Hernández, p. 63.

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Cf. BUTTERWORTH, op. cit., 1986, p. 31. 519

ARISTÓTELES. Ética Nicomaquéia III, 7, 1113b 3-13; sobre as virtudes e os vícios serem voluntários, ver ibid. 1114b 17-25.

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divina. Como pensar que o Profeta pôde mentir e manipular a população, ainda que em benefício da comunidade? Como afirma E. I. J. Rosenthal, Averróis “está mais consciente que Al-Farabi acerca da supremacia da Šarica como a ideal Lei revelada e sua função política como constituição ideal do Estado ideal”520, embora, ao longo do Comentário sobre A República, “ele reconheça uma afinidade entre a Lei revelada e as leis gerais promulgadas pelo legislador no Estado secular”521. Mas, quanto às mentiras, artifícios e subterfúgios que o governante platônico está autorizado a fazer uso para o bem das massas e do Estado, nada disso é autorizado pela Šarica, pois seria incongruente com a sua moral, já que é inimaginável que Allah, o Legislador supremo, usasse de meios dúbios para enganar os seus seguidores522.

Oliver Leaman faz uma interessante observação. Se o termo grego pseûdos pode significar “ficção”, “mentira” e “erro”, dependendo do contexto, como pôde Averróis distinguir essas diferentes acepções?523 Como vimos, ele parece endossar o que Platão afirma sobre as mentiras ditas pelo governante em benefício do Estado, mentiras e artifícios sobre os quais os governantes estão bem conscientes. Essas mentiras e artifícios, porém, são diferentes das ficções e mitos que expressam, de forma compreensível, uma verdade que, expressa de outra maneira, as massas teriam dificuldade de entender. A alegoria da caverna e o mito dos metais são exemplos dessas histórias fáceis de digerir e Averróis parece aceitá- los, embora argumente que não fazem parte da filosofia e só servem para auxiliar, com uma forma pictórica, o ensino ministrado às massas, incapazes de captar os argumentos demonstrativos. O mito de Er, porém, apresenta uma escatologia que não se conforma aos preceitos islâmicos e deve, portanto, ser descartado.

520

ROSENTHAL, E. I. J. Political Thought in Medieval Islam. An Introductory Outline. 1ª ed. 1958. Westport (Connecticut): Greenwood Press, Publishers, 1985, p. 176.

521

ROSENTHAL, E. I. J. The place of politics in the philosophy of Ibn Rushd. Studia Semitica. v. II: Islamic

Themes. Cambridge University Press, 1971, p. 78.

522

Cf. ROSENTHAL, op. cit., 1971, p. 89. 523

Cf. LEAMAN, op. cit., 1980, p. 177. Em A República 414c, Platão se refere às “mentiras” necessárias como pseûdos, e dá o exemplo da história fenícia.

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