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b Datação do original árabe do Comentário sobre A República

Não há consenso entre os especialistas sobre a datação do Comentário sobre A República. Na introdução à edição da versão hebraica, Erwin Isaak Jakob Rosenthal expõe as dificuldades para datar a obra na ausência de critérios confiáveis. Se Averróis compôs

278

Sobre os itinerários do intercâmbio intelectual entre Pico e Elia, ver ibid., p. XIX-XXIII. 279

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este seu comentário antes do comentário sobre a Ética Nicomaquéia é ainda uma questão em aberto. Moritz Steinschneider determina uma data próxima à redação do Comentário Médio sobre a Ética Nicomaquéia, tratado que data seu término em 1177. Steinschneider baseia-se em um verbo no futuro da versão hebraica do Comentário sobre A República280 para determinar 1176 como data provável da composição desse tratado, mas Rosenthal afirma não encontrar nenhuma evidência dessa possível datação281. Como diz Rosenthal, é pouco provável que Averróis tenha escrito o seu Comentário sobre A República, a parte prática da política, antes do Comentário sobre a Ética, a parte teorética da política, já que ele repete muitas vezes ao longo do Comentário sobre A República que “isto já foi visto antes”, isto é, o que se refere à parte teorética da arte política já tinha sido desenvolvido e explicado no Comentário sobre a Ética. Há, no entanto, grande possibilidade de que estes dois comentários tenham sido redigidos na mesma época, uma vez que Averróis esperava ter em mãos o tratado aristotélico, Política, para compor sua obra sobre a parte prática da política. Como o próprio Averróis afirma, a Ética Nicomaquéia e A República formam duas partes complementares da mesma ciência política. O tradutor para o hebraico, Šemu’el b. Yehu² a de Marselha, no epílogo, informa que trabalhou sobre as duas traduções e que traduziu uma obra em seguida à outra282. De qualquer modo, é plausível considerar 1177 como terminus post quem da redação do Comentário sobre A República, em virtude da data do término da redação do Comentário Médio sobre a Ética Nicomaquéia, a saber, 4 de maio de 1177283.

Segundo Rosenthal, entretanto, é preciso considerar o fato de que Averróis menciona a Ciência da Física e, pelo que se sabe de seus comentários, considera a Physica e o De Anima como partes integrantes da Ciência da Física. O Comentário ao De Anima foi

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A passagem em hebraico corresponde a ELIA DEL MEDIGO II <I, 7>: “utrum autem debet esse propheta, habet magnae investigationis necessitatem. Et considerabimus de illo in prima parte huius scientiae.” (grifo nosso); trad. Rosenthal II.i.7; trad. Lerner 61:16-18; trad. Cruz Hernández, p. 72. A propósito, ver ROSENTHAL, trad. Rosenthal, p. 10, nota 1; id. The Place of Politics in the Philosophy of Ibn Rushd.

Bulletin of Schools of Oriental and African Studies (BSOAS), v. XV, nº 2, 1953, p. 246-278 (= in

ROSENTHAL. Studia Semitica, op. cit., 1971, p. 60-92). 281

Cf. ROSENTHAL, in trad. Rosenthal, p. 10. 282

Cf. ibid. 283

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concluído em 1182. Como Averróis não cita esse comentário, como o faz em seus comentários posteriores, para Rosenthal é possível considerar o ano 1182 como terminus ad quem284.

Todavia, o arabista e exímio conhecedor da obra de Averróis, Miguel Cruz Hernández, afirma que o tratado foi escrito em 1194285. Também sustentam essa datação c

Abdurra¬man Badawi, Massimo Campanini286 e o historiador Dominique Urvoy que, em sua apresentação da biobibliografia de Averróis, concorda com essa mesma datação287.

A atribuição de uma data mais tardia ao Comentário sobre A República seria uma hipótese a ser considerada. Os anos 1193-1194 constituem um período obscuro da vida de Averróis288 e, em fins de 1195, ele é perseguido e desterrado em Lucena, importante centro de estudos judaicos próximo à cidade de Córdoba289. No início de 1198, é perdoado e volta a Marrakesh, junto à corte do soberano almôada Abu Yusuf Yacqub al-Man½ur. No mesmo ano, Averróis morre em 10 de dezembro, no Marrocos, longe de sua terra natal, Al- Ándalus290. Depois do trágico exílio, Averróis compôs em matéria filosófica apenas as Questões sobre os Primeiros Analíticos291.

284

Cf. ROSENTHAL. Introduction. In trad. Rosenthlal, p. 10. 285

CRUZ HERNÁNDEZ, in trad. Cruz Hernández, p. XI. 286

Cf. BADAWI, op. cit., 1998, p. 33; id. Histoire de la philosophie en Islam. 2 v.; v. II: Les philosophes

purs. Paris: J. Vrin, 1972, p. 761. Cf. CAMPANINI, Massimo. Islam e politica. Bologna: Il Mulino, 1999, p.

164. 287

Cf. URVOY, Dominique. Les ambitions d’un intellectuel musulman. Paris: Flammarion, 1998, p. 224, nota 3; cf. URVOY, op. cit., 1996, p. 48.

288

Cf. CAMPANINI, op. cit., 1999, p. 164. 289

O exílio nessa comunidade judaica deu origem à lenda de que Averróis se teria refugiado na casa de Maimônides – Ibn Maymun (1135-1204) como era conhecido entre os árabes –, o que é impossível já que o pensador judeu vivia há anos no Cairo. Dessa boataria, resultou outra lenda na tradição medieval e renascentista, a da origem judaica de Averróis, cf. CRUZ HERNÁNDEZ, op. cit., 1997, p. 31. Embora a lenda medieval descreva as relações de amizade entre os dois filósofos, Maimônides declarou-se discípulo de um aluno de Ibn Bajjah (Avempace) e seria somente no exílio, no Egito, que teria lido alguns comentários de Averróis. Cf. URVOY, op, cit., 1996, p. 159. Essa lenda da hospitalidade concedida a Averróis por Maimônides foi propagada por Leão Africano, cf. RENAN, op. cit., 2002, p. 33; 36. Os motivos do desterro de Averróis são controversos, ver a esse respeito CRUZ HERNÁNDEZ, op. cit, 1997, p. 28-33.

290

Sobre o “nacionalismo” de Averróis, ver CRUZ HERNÁNDEZ, op. cit., 1997, p. 32-33. 291

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A datação em 1194 do Comentário sobre A República é também atribuída a um erudito do século XVII292 que, para considerar essa data como possível, levou em conta o fato de Averróis não ter tido em mãos a Política e ter esperado até que se esgotassem todos os seus recursos para conseguir esse escrito aristotélico. O argumento parece conseqüente, embora Rosenthal, em sua edição da versão hebraica do Comentário, chame à atenção para questões de vocabulário que fariam recuar a datação do tratado para antes de 1182. No entanto, em relação às críticas tecidas no Comentário sobre A República, é possível aproximar a data de sua redação com a dos textos doutrinais escritos por volta de 1179-82, as obras consideradas originais, Fa½l al-Maqal (Tratado Decisivo), Kašf can-Manahij al- adilla (Desvelamento dos Métodos das Provas), ¾amima (Apêndice) e Tahafut al-Tahafut (Demolição da Demolição)293.

Cruz Hernández contesta a datação de E. I. J. Rosenthal, que pensou que a dedicatória de Averróis fosse dirigida ao soberano Abu Yacqub Yusuf, que morreu em 1184. O arabista espanhol afirma que o contexto da obra indica que ela teria sido dedicada ao filho e sucessor desse soberano, Abu Yusuf Yacqub al-Man½ur, sob cuja proteção viveu Averróis. Ainda, Averróis se desculpa pela brevidade de sua exposição em razão “dos conflitos desta época”. Segundo Cruz Hernández, essa expressão não teria sentido antes de 1184, quando o califado almôada, apesar do avanço das conquistas dos cristãos, permanecia ainda firme294.

As críticas de Averróis aos governantes almôadas, entretanto, podem bem ter desencadeado os tristes eventos dos últimos anos de sua vida295. Sabemos que em 1195

292

Cf. URVOY, op. cit., 1998, p. 224, nota 3. 293

Cf. ibid. Sobre a datação do Comentário sobre A República, ver VAN DEN BERGH, Simon. Bulletin of

Schools of Oriental and African Studies (BSOAS), v. XXI, 1958, p. 409.

294

“Pouco antes de 1194, os exércitos dos reinos do norte renovaram suas ofensivas; em 1186, Afonso VIII ocupou Alarcón; Iniesta, em 1186 e Magacela em 1189. Todas essas conquistas, todavia, foram perdidas depois da batalha de Alarcos em 1195, exceto as do alto Júcar.” Em razão desses fatos históricos, Cruz Hernández situa o término do Comentário após 1189 e antes de 1195. CRUZ HERNÁNDEZ, in trad. Cruz Hernández, p. 48, nota 72.

295

A propósito de uma crítica de Averróis à sociedade de seu tempo, Cruz Hernández afirma que “uma tão dura observação abona minha hipótese da redação tardia dessa obra, não muito antes de se desencadear a perseguição contra seu autor.” CRUZ HERNÁNDEZ, in trad. Cruz Hernández, nota 13, p. 78.

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Averróis já sofria perseguições que resultaram em seu humilhante exílio296 que durou de três a quatro anos.

Para concluir, são válidos os diferentes argumentos para datar esse comentário. Contudo, à parte a querela sobre a sua datação, permanece o fato de que o Comentário sobre A República pode bem ser lido como uma exposição de soluções originais a problemas que o contexto sócio-político da época apresentava.