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Feitas essas considerações, passemos à apresentação de alguns pontos do Comentário sobre A República. Como essa obra de Averróis não é exatamente um comentário nos moldes com que o Comentador tratou as obras de Aristóteles e, como se trata de uma exposição densa e carregada de conteúdo filosófico, muitas vezes apenas indicado, para não incorrer numa exposição demasiado longa, é necessário que se faça uma seleção de tópicos a serem comentados ou analisados. Ao concentrarmos a nossa atenção na idéia de Averróis sobre a figura do soberano, transparece ao longo de todo o tratado a ética como fundamento teórico da arte de governar. O tema das virtudes representa a coluna

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Na tradição herdada pelos árabes, que remonta ao médio platonismo, o Órganon compreende, além dos seis livros tradicionais, a retórica e a poética. Averróis, portanto, considera o Órganon composto de oito livros: Categorias, Da Interpretação, Analíticos Anteriores, Analíticos Posteriores, Tópicos, Refutações

Sofísticas, Retórica e Poética. Assim aceito, o Órganon apresenta as cinco artes lógicas: a demonstração, a

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dorsal de toda a exposição do Comentador, e é em torno dele que os diversos argumentos são apresentados. É com o tema das virtudes, principalmente, que Averróis fundamenta a base teorética da arte prática política, a arte arquitetônica segundo Aristóteles403. Vinculado a esse tema, destaca-se o tema da felicidade, fim supremo do homem nesta vida e na futura. A educação na virtude é essencial para a realização desse fim e de uma sociedade virtuosa. Não basta, porém, que apenas os cidadãos sejam virtuosos. De suma importância é a educação do soberano na virtude. A figura platônica do filósofo-rei é substituída pela figura do soberano-filósofo de Averróis em que o rei-governante-imã deve ser detentor de qualidades naturais a serem desenvolvidas com a educação. Essas qualidades já devem estar presentes desde a investidura do soberano, como reza a tradição islâmica na fé e no Direito. Os regimes políticos, por sua vez, dependem do estado de virtude dos governantes. As “cidades ignorantes” são as que, em decorrência de uma disposição não virtuosa nos governantes, impedem a realização das virtudes em seus cidadãos. Aos governantes, no entanto, não é suficiente que sejam dotados da condição de virtuosos. Sem o apoio na Lei revelada e nas leis humanas, sem a obediência a essas leis, um Estado não tem como ser virtuoso. As leis humanas são promulgadas com base na Lei revelada e é, portanto, na sua correta interpretação que Averróis entende ser possível construir uma sociedade virtuosa. A “correta interpretação”, no entanto, deve ser dada pelos dotados de conhecimento científico, entenda-se, pelos filosófos, como advoga o Comentador em suas obras consideradas originais e polêmicas. Ao soberano cabe a responsabilidade de um governo fundado na Lei revelada e corretamente interpretada a fim de que a comunidade permaneça unida e desenvolva a sua potencialidade virtuosa.

Com esses argumentos, Averróis propõe, no final de seu tratado, a divisão do poder entre o soberano e os juristas. A investida cristã na Península Ibérica exige um governante que se ocupe da defesa dos territórios sob o domínio do Islã. Diante dessas circunstâncias, é possível supor que o soberano, para Averróis, tivesse como tarefa principal a defesa dos territórios e instituições islâmicas, deixando aos juristas a incumbência de gerir os assuntos políticos. Se assim for, estaria Averróis, com isso, propondo a si próprio como participante

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Cf. ARISTÓTELES. Ética Nicomaquéia I, 1, 1094a 26-27: “Dóxeie d’àn tês kyriotátes kaì málista

arkhitektonikês. Toiaúte d’he politikè phaínetai.” (Parece ser objeto da mais autorizada e arquitetônica, e esta

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do poder, já que ele, um eminente cádi e jurisconsulto, fazia parte do círculo próximo ao soberano? Seria esta, talvez, a causa do exílio com a decorrente desgraça a que fora submetido no final de sua vida, supondo-se que o tratado tenha sido escrito por volta de 1194, como afirma Miguel Cruz Hernández?

Embora a nossa exposição tenha como tema principal questões relacionadas à noção do soberano virtuoso e, por isso, não estejamos seguindo fielmente a ordem estrutural do tratado, deixando de lado muitos assuntos ali tratados que, no entanto, são relevantes para o conjunto da discussão404, convém apresentar essa ordem a fim de melhor ilustrar o esquema geral do Comentário sobre A República. Para esse propósito, foi de grande valia o trabalho de Charles E. Butterworth que passamos a indicar.

II.1. Estrutura do tratado segundo Charles E. Butterworth

Em 1986, Charles E. Butterworth, tradutor e especialista no pensamento ético e político de Averróis, publicou, no Cairo, uma monografia sobre o comentário de Averróis sobre A República405. Esse trabalho nos ajudou muito a compreender a estrutura da obra de Averróis. Apresentamos a seguir o esquema estrutural dessa obra de Averróis, segundo Butterworth. Nosso estudo, contudo, não seguiu esse esquema, pois, como já mencionado, optamos por desenvolver questões que, em nosso entender, consideramos relevantes para caracterizar os fundamentos do pensamento político de Averróis, sobretudo os que se relacionam com a sua concepção da principal virtude da arte de governar.

O tratado de Averróis é composto de três livros, cuja estrutura identificada por Butterworth é a seguinte:

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Como, por exemplo, a condição das mulheres, o controle de natalidade, a igualdade social entre homens e mulheres, a guerra [jihad = significa “esforço”, isto é, “esforço de guerra” ou “esforço legal” porque prescrito pela Lei revelada contra os infiéis, ou não-muçulmanos], a formação poético-musical, a origem das diferenças entre os estamentos sociais, a propriedade comum etc., temas que Averróis toma emprestado d’A República. 405

BUTTERWORTH, Charles E. Philosophy, Ethics and Virtuous Rule: A Study of Averroes’ Commentary on Platos’s “Republic”. Cairo Papers in Social Science. v. 9, Monograph 1, Spring 1986. Cairo: The American University in Cairo Press, 1986, p. 1-90.

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Livro I

Este é o mais longo dos três livros, tem o dobro da extensão do Livro II e é uma vez e meia mais longo que o terceiro. Butterworth divide o Livro I em quatro partes principais:

1. Um preâmbulo (21:3-25:9)406 que consiste de três partes: a) a intenção da obra; b) uma reflexão acerca do campo de sua investigação, os princípios e os fins da política que fazem que ela seja classificada como ciência prática e não especulativa; c) a fundamentação da afirmação de que o homem é um ser político por natureza.

2. Uma longa discussão sobre como adquirir as virtudes da coragem, da moderação e da justiça (25:10-52:29), a principal parte do Livro I.

3. Considerações relevantes para a educação ou formação dos guardiões (52:30-60:4)

4. Conclusão (60:4-10): Averróis observa que já foi dito como deve ser a educação dos guardiões na música e na ginástica e como essa educação se estende às outras “classes” da cidade. Anuncia, em seguida, que irá tratar da classe dos sábios e aponta os três pontos com os quais irá encaminhar a sua exposição no Livro II: a) o reconhecimento das naturezas dos sábios; b) a maneira como educá-los; e c) e uma exposição de como, tendo alcançado a perfeição, os sábios governarão e manterão a soberania da cidade (60:14-15)407.

Livro II

Butterworth identifica três partes principais que estruturam o Livro II:

1. Reconhecimento dos que pertencem à classe dos sábios (60:18-64:27);

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As indicações numéricas entre parênteses se referem à divisão de Ralph Lerner em sua tradução para o inglês da versão hebraica do tratado de Averróis: AVERRÓIS. Averroes on Plato’s “Republic”. Translated, with and Introduction and Notes, by Ralph Lerner. Ithaca: Cornell University Press, 1974.

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2. O modo como eles devem governar (78:16-79:22); 3. A educação do governante (64:28-78:15).

A parte maior é a terceira, dedicada à educação do governante. Nesse tópico, Averróis se distancia de Platão e busca seu fundamento em Aristóteles, especificamente na Física, no De Anima e na Ética Nicomaquéia408.

Livro III

Esse livro é composto de cinco partes, segundo o esquema de Butterworth:

1. Introdução (79:24-80:16);

2. Relação dos diferentes tipos de regimes (80:17-87:12);

3. Explicação de como um regime se transforma em outro (87:13-103:15);

4. Discussão sobre a relação dos prazeres da alma e os diferentes regimes (103:16-105:3); 5. Observações conclusivas (105:4-29).

A primeira, a segunda e a quinta parte do Livro III não têm qualquer paralelismo com A República. Apenas a terceira parte e metade da quarta seguem fielmente o texto de Platão409.