• Nenhum resultado encontrado

Bacharelado e Licenciatura: dicotomias, tensões e contextos

A relação entre o Bacharelado e a Licenciatura se constrói por uma dicotomia permeada pelos interesses sociais, históricos e culturais contemporâneos. Podemos perceber que no imaginário social, em termos de senso comum, a relação entre essas modalidades de cursos estão embrenhadas pela escolha de ser ou não ser professor, ou seja, em termos gerais, escolher uma Licenciatura seria escolher ser professor e escolher um Bacharelado seria escolher não ser professor, mas sim outro profissional específico.

Para além desse imaginário social, ambas as modalidades se constituem academicamente e legalmente na configuração do ensino superior como um todo. A relação entre o Bacharelado e a Licenciatura, principalmente nos cursos que possuem essas duas modalidades, é alimentada ainda por uma luta de poder curricular e profissional.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996, que norteia atualmente os pressupostos para a educação brasileira, propôs uma configuração de ensino superior que superasse as amarras curriculares até então estabelecidas, estabelecendo princípios de igualdade e de flexibilidade do sistema educacional que reconfiguraram a relação entre o Bacharelado e a Licenciatura.

Posteriormente à LDBEN (1996), o Conselho Nacional de Educação (CNE) com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) têm trabalhado desde então para estabelecer princípios e parâmetros curriculares para os cursos de graduação. A resolução CNE/CP nº 1/2002 estabelece a superação, pelo menos do ponto de vista legal, do sistema 3 + 1 que conferia ao bacharel a licenciatura como um ―apêndice‖ curricular. A referida resolução estabeleceu que os cursos de Licenciatura são objetivamente voltados para formar o professor para a educação básica e que seus currículos assumem princípios relacionados com os conhecimentos e metodologias educacionais. Além disso, todos os cursos ofertados na modalidade de Licenciatura, tiveram suas resoluções no CNE fundamentadas nesse parâmetro geral.

Para os cursos de Bacharelado, o CNE não traça uma resolução com princípios gerais para todos cursos, mas cada graduação estabelece seus princípios voltados pra a formação do profissional de sua área específica. De maneira geral, as resoluções para os cursos de Bacharelado estão voltadas à formação para a pesquisa e para a atuação técnica e/ou burocrática no mercado de trabalho de sua área de conhecimento.

Acreditamos que estes pressupostos legais e curriculares que passaram a permear a relação recente entre a Licenciatura e o Bacharelado não são lineares e não se estabelecem

completamente da maneira como são colocados. Os processos que envolvem historicamente e socialmente os sujeitos, as instituições e os cursos em si também contextualizam essa conjuntura, propiciando oscilações, tensões e desdobramentos diversos em cada caso.

Gatti (2010) ainda têm apontado que, entre as duas modalidades, predominam as relações em que, geralmente, a Licenciatura é vista, tanto no momento da escolha profissional dos sujeitos como nos departamentos das universidades que oferecem as duas modalidades, como um curso menos valorizado, ou mesmo, um curso de Bacharelado acrescido de disciplinas pedagógicas, ou seja, não cumprindo ainda as propostas da LDBEN e do CNE para a flexibilização do currículo e do processo formativo do professor.

Essa relação dicotômica tem suas origens no conflito de concepções de formação e de universidade desenvolvidas e enraizadas historicamente com as perspectivas contemporâneas de formação de professores e de ensino superior que tem proposto mais flexibilidade e interdisciplinaridade em sua organização (GATTI, 2010).

Historicamente, o ensino superior no Brasil se organizou de maneira tardia frente aos demais países da América Latina, com a primeira Escola Superior apenas em 1808 e a primeira universidade em 1934. Para Pimenta e Anastasiou (2005) a organização história da educação superior teve influência de modelos que se legitimaram socialmente, com uma série de práticas engendradas no cotidiano das universidades até hoje.

Para as autoras, a educação superior no Brasil reproduz diversos resquícios históricos, não linearmente, de uma cultura acadêmica voltada para a memorização, para o conteúdo e para a avaliação rígida. Além disso, as universidades se organizam burocraticamente em um modelo centralizador e fragmentado por departamentos. Todo esse contexto ainda impregnado pela incorporação de uma formação voltada para o mercado de trabalho e para a produção de pesquisa (PIMENTA; ANASTASIOU, 2005).

Estes modelos, segundo Pimenta e Anastasiou (2005), apesar de serem negados no discurso, ainda persistem nas práticas docentes e na organização das universidades e dos cursos de graduação em todo o país. Eles são reproduzidos culturalmente no âmbito das universidades mesmo em tempos de sua superação ideológica e, na prática, pouco se efetiva em ações que desconstruam esses paradigmas estruturais no ensino superior.

Para nós, a perpetuação de aspectos desses modelos na estruturação das instituições bem como na organização do trabalho docente são fundamentais para compreendermos, a partir das narrativas dos professores bacharéis, como e se estão presentes esses modelos, como são reproduzidos, como são reelaborados, como fizeram parte de suas trajetórias

formativas e quais os significados que os sujeitos da pesquisa atribuem a eles em seu cotidiano no ensino superior.

Acreditamos, sobretudo, que essas tensões e contextos que permeiam a dicotomia entre o Bacharelado e a Licenciatura precisam ser relativizadas, pois são pressupostos institucionais e sócio-históricos que as colocam nesse cenário frente ao ensino superior. É importante frisar que em meio a esta conjuntura estão os sujeitos em constante construção e reconstrução de valores, crenças, práticas e concepções.

Isto nos leva a pensar que, mesmo com os dispositivos legais para as duas modalidades, não é determinante que aquele sujeito que cursa uma Licenciatura concebe seu processo formativo e seus saberes completamente voltados para o ser professor. Nem mesmo é definido a priori que um bacharel não construa saberes e elementos formativos que o constitua enquanto docente.

Isso significa que, mesmo com os contextos dicotômicos e com os objetivos definidos de cada modalidade, defendemos aqui que o curso, por si só, não permeia toda a formação profissional do sujeito, mas uma parte importante dela. Para além da formação institucional, acreditamos que outros elementos perpassam o processo formativo, seja do bacharel ou do licenciado, como: a família, os sonhos, os sentimentos, as crenças, os valores, as experiências e as relações sociais e culturais.

Apesar de nos propormos discutir especificamente a identidade e as trajetórias dos professores bacharéis que atuam nas Licenciaturas, pressupomos o processo formativo do Bacharelado como uma característica singular dos colaboradores da pesquisa, como um dos elementos do processo formativo e da trajetória dos mesmos e, como tal, assume um papel que não é delimitador para a sua relação com a formação de professores, mas permeia tais tensões e dicotomias.

1.1.1 A problemática do conhecimento escolar para a formação de professores

Um outro dilema que acreditamos interferir no processo de relação entre a Licenciatura e o Bacharelado é a natureza de seus conhecimentos. Ou seja, em tese, os cursos de formação de professores pressupõem os conhecimentos voltados para atender formar profissionais que atuem na educação básica, já o bacharel mobilizaria seus conhecimentos para a atuação profissional específica e técnica de sua área para o mercado de trabalho.

Ora, como os professores bacharéis lidam com esse distanciamento de naturezas de conhecimento em sua atuação profissional como docentes? Acreditamos que esta pergunta

pode ser discutida no processo formativo e na trajetória, pois é evidente que nem a Licenciatura e nem o Bacharelado possuem delimitações e objetivos curriculares tão fortes a ponto de suprimir os elementos pessoais dos sujeitos permeados sócio-historicamente.

Fizemos esse tópico separadamente, pois acreditamos que essa questão do conhecimento vai além da relação entre Licenciatura e Bacharelado. Ela é permeada, sobretudo, pela relação historicamente construída entre a universidade e a escola, entre o acadêmico e o escolar.

Os primeiros cursos de formação de professores no Brasil foram as Escolas de Primeiras Letras e as Escolas Normais que formavam professores para o ensino primário e secundário, ainda sem ser considerada uma formação de nível superior. O primeiro processo para formação de professores no ensino superior foi estabelecido em meados dos anos 1930 pelo sistema 3 + 1, que adicionava aos cursos de bacharelado disciplinas pedagógicas que conferiam o título de licenciado de maneira desarticulada e fragmentada em um processo que permanece enraizado atualmente nos currículos (GATTI, 2010).

Já Chervel (1990), no âmbito da história das disciplinas escolares, sinaliza ainda que exista uma dicotomia existente entre os conhecimentos produzidos na universidade e os conhecimentos da educação básica. Segundo o autor, essa dicotomia persiste na organização do ensino superior e, em especial, nos cursos de formação de professores que pressupõem que os conhecimentos da universidade – saberes científicos – são adaptados na educação básica.

Ao questionarmos as naturezas do conhecimento das Licenciaturas e do Bacharelado não queremos determinar que o professor bacharel não conhece a educação básica e a produção de seus conhecimentos. Ao contrário, queremos problematizar as distinções entre os conhecimentos científicos/técnicos e os conhecimentos escolares e de como esses professores bacharéis mobilizam seus conhecimentos nesse sentido e enfrentam essa dicotomia de suas naturezas distintas.

Assim, o processo de organização da formação de professores ao longo do tempo se constituiu com práticas extremamente fundamentadas nos conhecimentos científicos das áreas específicas e pouco se preocupou com a transposição desses conhecimentos para a educação básica e, sobretudo, que os professores na educação básica também produzem conhecimentos, saberes e cultura no âmbito escolar (GATTI, 2010).

Diante disso, nos questionamos sobre esse processo com os professores bacharéis que atuam nos cursos de formação de professores e de como esses saberes são construídos e reconstruídos em sua prática educativa. Ora, se a formação de professores enfrenta essa dicotomia histórica entre universidade e escola, são questionáveis as relações que os

professores bacharéis realizam sob a óptica dessa realidade, visto que os mesmos não foram formados para repensar essa dicotomia nem na formação inicial e nem na pós-graduação. Por isso, importa-nos a trajetória deste sujeito e de como as experiências dele se constituem como processo de constituição do ser professor.

Para Gatti (2010) os cursos de formação de professores ainda possuem o desafio de desenvolver com os licenciandos habilidades profissionais específicas para a atuação na educação básica. A formação de professores no Brasil ainda é desintegrada, com o enfoque nas disciplinas específicas e em seus conteúdos departamentalizados. Nesse contexto, o professor bacharel enfrenta o desafio de pensar a sua atuação para a formação de professores para a educação básica e confrontar e reconstruir o seu processo formativo ao mesmo tempo.

Portanto, acreditamos que essa tradição disciplinar marca a construção da identidade dos professores formadores e dos cursos de licenciatura e constituem uma barreira ou mesmo uma oposição às reformas curriculares para que desconstruam a fragmentação disciplinar nas Licenciaturas. Acreditamos que essas barreiras ultrapassam os limites da relação entre a Licenciatura e o Bacharelado e atingem a todos, sem distinção de formação.

Diante da problemática levantada sobre a formação dos professores, evidenciamos dois pontos importantes de reflexão para essa pesquisa: primeiro, se os cursos de licenciatura têm se organizado por uma formação pouco integrada para o profissional docente, no caso dos professores que são bacharéis, a disciplinaridade e fragmentação das áreas específicas tendem a serem laços ainda mais fortes que podem ou não serem reproduzidos em sua atuação; segundo, se os professores têm esses laços fortalecidos perante uma formação bacharelesca, é possível debater sobre um intenso processo de formação continuada para a docência, pois estes podem ser docentes do ensino superior sem ao menos dialogar sobre esses dilemas e tensões.

Para nós, os paradigmas apresentados neste capítulo acerca do ensino superior e da formação de professores justificam pensar, prioritariamente, a formação do professor universitário no sentido de que ele é um sujeito singular e se constitui como um dos elementos decisivos na transformação e na reelaboração do ensino superior como um todo. E por outro lado, o professor formador, responsável pela formação de futuros professores, em tese, preocupa-se com a docência como formação profissional do seu aluno e com as relações que este faz com o âmbito de atuação do futuro professor e com a educação básica.

Diante de uma relação dicotômica como a da Licenciatura e do Bacharelado, seja do ponto de vista legal ou curricular, ficam claros alguns estigmas relacionados à formação de professores e ao desafio de superar uma fragmentação bacharelesca, inclusive para a formação

de professores para o ensino superior na pós-graduação. Mas, para nós, também é evidente que essa relação, nas singularidades dos sujeitos, interferem, mas não são determinantes enquanto processo de construção de identidade docente. Assim, essa relação dicotômica perpassa os processos formativos e os contextualiza, porém não é elemento único a ser debatido pelos estudos em formação de professores.