• Nenhum resultado encontrado

Ser bacharel e ser professor formador de professores: a construção de uma

Neste eixo de significado final desta narrativa, não busco um resultado final, mas procuro construir um argumento, uma ideia ou uma produção intelectual de sentido para essa narrativa. Para isso, evoco, primeiramente, os versos de Fernando Pessoa que intencionalmente iniciaram as narrativas dos professores bacharéis, provocando o leitor a pensar os processos vividos, sentidos e narrados por aqueles sujeitos, cada um com sua singularidade de sentidos. Os versos do poeta português retratam a diversidade na identidade, a brincadeira com os sentidos diferentes produzidos na singularidade humana e, portanto, caso seja necessário ao leitor, recomendo a retomada de seus versos em cada uma das narrativas para embarcar comigo nessa produção de sentidos!

Tendo em vista os versos de Fernando Pessoa (Entre o Sono e o Sonho) que abriram esse espaço de protagonismo da narrativa de Miguel, o ―sonho‖ constitui quem ele se supõe ser em toda a sua história (sua vida ideal), sem perceber, ao longo do processo, que às margens de ―um rio sem fim‖ está sua trajetória embrenhada por uma relação de pertencimento à docência (sua vida real). Permeado por um contexto de infância, de trajetória, de formação, de trabalho, de reflexão, de instituição e de posicionamento e valores pessoais, Miguel tem em sua constituição profissional a marca, rememorada a todo momento, de um ―sonho‖ de infância que o mesmo acredita ter realizado e que se sente satisfeito por isso. No entanto, acredito que o colaborador não realizou este ―sonho‖ de maneira completa, pois conscientemente sabe que exerce uma função singular de professor, com suas especificidades, o que Miguel não sabe é que o ―sonho‖ dele foi reconstruído e, para tal, faz parte do processo a reconstrução de seu pertencimento profissional.

Já os versos de Fernando Pessoa introdutórios à narrativa da professora Alice (O que me dói não é), evocam os sentidos que a colaboradora expõe para as suas angústias e suas dores enquanto ato de pertencimento profissional que ―há no coração‖ queixando-se em seu processo reflexivo sobre a docência das ―coisas lindas que nunca existirão‖. A narrativa produz sentidos para uma auto-reflexão profissional, assim como Pessoa, estivesse analisando intelectualmente as suas relações profissionais, produzindo marcas indefinidas da realidade que ela almeja para a sua profissão. A sua vida e seu pertencimento profissional é permeado por essas dualidades, pela necessidade de uma busca racional para as suas angústias ainda que tenha uma compreensão consciente de que talvez nunca encontre uma saída para esse processo.

No caso da narrativa do professor Arthur, iniciada com os versos de Pessoa (Atravessa esta paisagem o meu sonho) remonta à produção de sentidos para uma ruptura vivenciada na trajetória do colaborador. O poeta brinca com a realidade vivida e a realidade almejada enquanto Arthur, em seu processo de socialização, rompe com suas realidades passadas para uma constituição profissional movida pela insatisfação, por uma característica de relutar contra a realidade que o cerca. Os muros e as paisagens que Arthur vive hoje em sua profissão eram inimagináveis em seu passado, no entanto, não satisfeito com a realidade profissional que o cerca, visa e luta por outra realidade.

Os versos de Fernando Pessoa que antecedem a narrativa de Sophia (Isto) introduzem as características pessoais fortes da colaboradora expressadas nas narrativas que envolvem a sensibilidade artística e ao mesmo tempo a necessidade que Sophia sente em racionalizar seus sentimentos e, para ela, essa racionalização é que a constitui enquanto pessoa e profissional. Pessoa, ao enunciar ―sentir, sinta quem lê!‖ joga para o leitor o poder da interpretação da mesma forma que Sophia assume suas características pessoais fortes em sua atuação profissional, as racionaliza e lança, no processo de socialização, a interpretação de seu ato de pertencimento para quem convive com ela.

Na narrativa do professor Davi introduzida por versos de Fernando Pessoa (Qualquer Música) são expostas as marcas da música em seu processo de socialização desde a infância em que suas características pessoais de disciplina e rigor, construídas em sua relação com a música, permeiam hoje seu processo de pertencimento profissional. Essas marcas carregadas em sua trajetória são reproduzidas em sua experiência formativa e profissional enquanto exímias representações dos sentidos, da calma e das certezas que a música conferiu-lhe enquanto disciplina e rigor.

A minha interseção nas narrativas dos professores bacharéis por meio dos versos de Fernando Pessoa são provocações e interpretações minhas para os sentidos ambivalentes e duais que as narrativas me permitem argumentar. Ao defender uma identidade caracterizada pela ambivalência, busco na semântica do termo ―ambivalência‖4

o pressuposto da coexistência de dois sentidos ou aspectos diferentes, opostos ou não. Os sentidos produzidos pelos colaboradores em suas narrativas não os determinam e nem os excluem de processos de construção de uma identidade entre o ser bacharel e ser professor formador.

Acredito que é a oposição e a contradição nos processos de socialização que os constituem como sujeitos e dimensionam seus sentidos para uma identidade profissional. São

4

atos de pertencimento que não abandonam a sua marca do bacharelado e da pós-graduação sem formação pedagógica e nem de sua trajetória pessoal, mas reconstroem novos sentidos para a docência como sua profissão nos sucessivos processos de socialização vividos.

Os sujeitos se constituem ao longo de sua trajetória e não deixam de ser bacharéis e nem deixam de ser professores formadores. São legitimados oficialmente pelos cargos que ocupam e títulos que possuem, sobretudo, não deixam de produzir e reproduzir sentidos para seus atos de pertencimento sejam como bacharéis/pesquisadores ou como professores formadores de professores.

Não é a natureza do cargo e a formação que determinam ser ou não ser professor formador, esses são elementos do processo. Sobretudo, são as produções de sentidos por meio de atos de pertencimento construídos nos processos de socialização que marcam a sua identidade profissional pela docência e ao mesmo tempo pelo profissional bacharel, de maneira consciente ou não consciente das especificidades profissionais que diferenciam as modalidades de atuação.

Para além dos sentidos como ato de pertencimento à docência enquanto profissão, mesmo mantendo a identidade caracterizada pela ambivalência entre ser bacharel e ser professor formador, é importante que os sujeitos reelaborem também formalmente os conhecimentos necessários para a profissão docente, reconhecendo os valores e sentidos na prática, mas reconstruindo-os diante das especificidades formais da profissão docente.

Isso significa dizer que existe uma dualidade entre a identidade caracterizada pela ambivalência construída biograficamente pelos sentidos dos sujeitos e a identidade profissional formal, para aquele sujeito que formalmente realizou cursos de Licenciatura ou processos de formação profissional continuada para a docência – o que não significa que os sujeitos que fizerem estes cursos produzam sempre sentidos e atos de pertencimento para a docência.

Essa ambivalência de sentidos de uma identidade para si – produzida biograficamente pelas experiências no processo de socialização e pelo próprio sentimento de pertencimento profissional à docência – esbarra em um processo de identidade para o outro – conferida e legitimada por uma série de conhecimentos profissionais formais que conferem pressupostos científicos, didáticos, pedagógicos e sociais para um grupo de sujeitos que se intitulam profissionais da docência.

Esta noção de identidade caracterizada pela ambivalência e de sua dualidade com a identidade profissional formal vai ao encontro dos pressupostos de Dubar (2005) e Roldão (2005). Mas vejo que também vai além destes autores ao caracterizar especificamente a

constituição profissional dos professores bacharéis que vivem na ambivalência de sentidos para o profissional bacharel e pesquisador ao qual foi formado e para a docência como atuação no magistério superior e na formação de professores.

No entanto, mesmo com as produções de sentidos ambivalentes que constituem profissionalmente os professores bacharéis desse estudo, vejo que é preciso estabelecer alguns pressupostos comuns que as experiências narradas pelos colaboradores permitem realizar enquanto ressalvas à produção de sentidos. Isto é, considerar que os professores bacharéis produzem atos de pertencimento à docência, mas que esse processo também se revela com alguns limites.

O primeiro, é de considerar que no processo de formação continuada, seja como uma política institucional ou como processo de adesão pessoal à profissão, os professores bacharéis tem a oportunidade de reelaborar seus conhecimentos segundo os pressupostos teóricos, científicos, didáticos e sociais específicos da profissão docente. Ou seja, não é a graduação e a titulação propriamente ditas que conferem a profissionalidade docente segundo os pressupostos de Roldão (2005) e nem mesmo só a produção de sentidos para a docência na prática. O processo de constituição profissional perpassa a produção de sentidos para a adesão à docência, mas também perpassa assumir os pressupostos formais da função docente, sejam eles por meio da formação inicial, da pós-graduação ou da formação continuada.

O segundo é de que a prática docente foi narrada como mobilizadora de conhecimentos para a formação docente, como ato de pertencimento profissional e como exercício da profissionalidade pelos professores bacharéis. No entanto, a prática narrada não implica necessariamente na prática efetiva realizada pelos professores para a mobilização de conhecimentos para a formação de professores. É importante que os atos de pertencimento profissional docente sejam direcionados na formação dos professores formadores para a consciência na prática de que estão formando professores para o ensino básico e que a mobilização de conhecimentos perpassa, sobretudo, o conteúdo e que a partir dele se constroem os conhecimentos específicos para a atuação docente.

O terceiro é que a relação com os alunos narrada pelos professores bacharéis reflete um contexto geracional que conflita com a prática docente dos colaboradores, pois segundo os professores, os alunos chegam nas licenciaturas reproduzindo um sistema que vem do ensino médio, chegam despreparados, com dificuldades de aprendizagem que os professores do ensino superior não conseguem e não são preparados para lidar, o que reforça o processo contínuo de formação e reflexão como cerne para a atuação profissional docente.