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BANCEL, Nicolas BLANCHARD, Pascal e outros Zôos humains: au temps des exhibitions humaines.

No documento MARCELO NASCIMENTO BERNARDO DA CUNHA (páginas 49-77)

Contatos, olhares, exibições, interpretações.

3 BANCEL, Nicolas BLANCHARD, Pascal e outros Zôos humains: au temps des exhibitions humaines.

parques. Estas exibições, em perfeita sintonia com as imagens que a empresa colonial construía através da imprensa e outros meios, inseria os habitantes do continente africano, no discurso colonizador da hierarquia das raças, vigente na época.

A necessidade de dominar e domesticar o “outro” impôs representações e discursos que o apresentasse como selvagem, vivendo e pensando como seres primitivos4. Esta construção reforçou e permitiu a elaboração de preconceitos e imaginários negativos, associando os africanos a seres marcados e regidos pelo gosto do sangue, fetichismo, obscurantismo e animalidade atávica, relegados à categoria de sub- humanidade. Idéias reforçadas por mise-en-scènes que apresentavam danças frenéticas, simulação de “combates”, “ritos canibais” e costumes desumanos (sacrifícios humanos, escarificações), reforçaram estereótipos e imagens fantasiosas sobre a população da África negra. Os africanos que se apresentavam em tais eventos eram controlados em sua circulação no ambiente em que ficavam, para evitar, na medida do possível, contatos entre negros e brancos, formando-se campos delimitados entre o “mundo dos selvagens” e o “mundo dos civilizados”, como fronteiras entre natureza e cultura.

Com o estabelecimento dos impérios coloniais, o poder sobre as representações sobre o outro se impôs num contexto diferente e em um movimento de expansão histórica de amplitude inédita. [...] a colonização impõe a necessidade de dominar o outro, domesticá-lo e então representá-lo. Às imagens ambivalentes do ‘selvagem’, marcados por uma alteridade negativa mas também por reminiscências do mito do ‘bom selvagem’ [...], se superpõe uma visão notadamente estigmatizante das populações “exóticas”. A inferiorização do indígena pela imagem se estrutura nessa nova configuração e os zôos humanos constituem, sem nenhuma dúvida, uma estratégia importante na construção dos paradigmas sobre as populações colonizadas5.

Da última década do século XIX até 1930, multiplicaram-se as exibições. As produções foram cada vez mais sofisticadas, com ênfase na exibição de hábitos que a colonização devia extinguir. No entanto, no século XX, o “selvagem” passou a ser representado como mais doce, cooperativo, parceiro da missão imperial. Permanecia

4 THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 5 BANCEL, BLANCHARD, obra citada p.64-65.

“inferior”, mas era docilisado, domesticado, com potenciais para assimilar as transformações e benefícios que a ação colonial trazia.6

O projeto de assimilação dos territórios do continente africano, com seus recursos naturais, incluiu a dilapidação de seu patrimônio cultural, ao lado de processos de destruição de práticas culturais e crenças tradicionais, através de atividades “civilizatórias” e missionárias ligadas ao imaginário ocidental cristão, católico ou protestante, em um dos maiores genocídios culturais e populacionais já registrado na história.

Os efeitos desta ação ocidental desenvolvida sobre a África, do século XVI ao XX, provocaram, inicialmente, uma sangria populacional, com a escravização de milhares de homens e mulheres para alimentarem mercados europeus e construírem o Novo Mundo. Razia associada com a desarticulação social, política e cultural dos territórios africanos, completada desde finais do XIX, com a pilhagem de milhares de objetos representativos de culturas africanas que, essenciais para os seus grupos produtores, em torno de sua sobrevivência e manutenção de suas tradições, tem ampliado processos de desmanche de modos de ser e viver africanos, apesar de continuadas e renovadas formas de resistência de culturas negras frente às diásporas vivenciadas.

Da retirada de bens culturais do continente africano, da divulgação dos benefícios das campanhas européias ali realizada, da construção de discursos sobre evidências da inferioridade dos africanos frente ao “alto grau” de desenvolvimento europeu, surgiram museus com exposições para expor práticas culturais a serem descartadas da história da humanidade. Tais exposições funcionaram como testemunhos da barbárie, da incivilidade, do paganismo e de práticas fetichistas, “provas” documentais da necessidade de intervenções européias nas sociedades tradicionais africanas. Foram as premissas justificadoras do momento e do acerto dos ritmos de vida e de trabalho do ocidente cristão em expansão.

Em contraste, as artes e as culturas da África foram reveladas, aos olhos de públicos europeus, de modo a provocar estranhamento e curiosidade, causar impacto e até

6 cf. BANCEL, Nicolas. BLANCHARD. LEMAIRE, Paul. LEMAIRE, Sandrine. Des exhibitions racistes

qui fascinaient les européens. Ces zoos humains de la republique coloniale. In: www.monde-diplomatique.fr, Pesquisa realizada em 13 de agosto de 2000.

mesmo escândalo, justificadores da intervenção européia que já se deslocara do litoral para as savanas, consumindo novas legiões de indivíduos europeus para a realização de tarefas da colonização e investimentos financeiros europeus. A aplicação de valores e sentidos ocidentais de forma preconceituosa, na apreciação de crenças, costumes e culturas de ancestrais sociedades africanas, levou a interpretações que negaram a existência de história e arte no continente africano7, além de interpretações desqualificadoras sobre as características humanas de seus habitantes.

Na perspectiva da Antropologia e da Museologia podemos ordenar as análises destes objetos em quatro fases e modelos: objetos de curiosidade, espécimes, artefatos culturais e objetos de arte; sendo clara, ao longo dos últimos séculos, uma relação direta entre a Antropologia e a Museologia, ciências que dialogam e se complementam nas interpretações da cultura material e que tiveram um desenvolvimento plenamente interrelacionado.

Os objetos de curiosidade resultaram dos primeiros contatos e estudos sobre culturas, sendo o espaço dos gabinetes de curiosidade o local de exercícios interpretativos e expositivos, com coleções feitas a partir de viagens exploratórias, bem como resultantes de uma variada gama de falsificações e invenções confirmatórias de um imaginário sobre um mundo exótico e distante.

A categoria espécimes articulou-se na medida em que foi ocorrendo maior critério na coleta e análise dos objetos, maior sistematização das informações, resultando, ao mesmo tempo em que colabora para isso, do processo de emergência de disciplinas como a História e a Antropologia, tendo como lastro principal as Ciências Naturais. Neste período, destacaram-se os museus de ciências naturais, dos quais derivaram várias outras categorias a partir do século XIX: museus de arte, museus de história, museus etnográficos.

Somente na medida em que houve reflexão sobre a necessidade de considerar tais artefatos na perspectiva dos grupos sociais que os criaram, foi possível a elaboração do conceito de artefato cultural, objeto testemunho. Esta visão carrega consigo a utopia e

7 cf. PRICE, Sally. A arte dos povos sem história. In: Afro – Ásia, Salvador: UFBA, 1996. n. 18. p. 205 –

o desafio de entendimento e apresentação do objeto, dando conta da totalidade de referências sobre a sua história, sua importância para o grupo, ficando nítida a dificuldade de por em prática esta proposta. Neste momento destacaram-se os museus de história e etnográficos.

Por fim, a postura mais freqüente, ao menos como postura recente observada nos grandes museus e exposições da atualidade, é a da consideração do objeto como obra de

arte, ou seja, o tratamento dos objetos, mesmo aqueles depositados em museus etnográficos, em uma perspectiva estética. Neste ponto vemos as duas últimas abordagens instaurarem-se como contraditórias, nas formas de apresentarem culturas “tradicionais” em exposições: a perspectiva contextual do objeto, entendido como artefato/testemunha versus a perspectiva formalista que o considera como obra de arte, levando à elaboração de um discurso textual e visual apoiado na “impossibilidade” do diálogo entre as duas perspectivas, como se fossem excludentes. Encontramos duas outras perspectivas de abordagens que permitem integrar estas duas vertentes em novas perspectivas: o objeto-poema e o objeto-sujeito.

O conceito objeto-poema tem sido desenvolvido pela equipe do Museu Etnográfico de Neuchatel8, que tem buscado explorar e expor ao máximo o potencial comunicacional do objeto. A proposta se baseia no entendimento do objeto como sintetizador de poéticas e na necessidade de planejar exposições nas quais as palavras sejam substituídas por objetos que deverão compor discursos visuais o mais afastados quanto possíveis da utilização de textos literários, tão recorrentes nas exposições.

O “objeto-poema” consiste em valorizar a estética polissêmica dos objetos. Fazer um jogo, uma “obra aberta”, na qual o concebedor, neste caso o concebedor da exposição, dê maior importância ao acaso. Quer dizer, que todas as interpretações possíveis são a priori inclusas na obra.

Para que os museógrafos possam jogar com as idéias do objeto e que os visitantes possam jogar com esses objetos na exposição, [...] é necessário que exista um certo entendimento entre os dois grupos. Para que uma adequação mínima entre ver e compreender possa se estabelecer, é necessário um código compartilhado. Desta forma, para a “obra aberta” [...] haverá certos limites de interpretação. No contato entre culturas, numerosos qüiproquós são previsíveis [...].9

8 Instituição Suíça que tem buscado nos últimos anos reflexões sobre o papel dos museus etnográficos

procurando novas abordagens dos seus discursos expográficos.

9 DUBOC, Élise. Entre l’art et l’autre, l’émergence du sujet. Em: GONSETH, HAINARD e KAEHR

O conceito objeto-sujeito foi proposto em texto de Michel Ames, apresentado em 1983, no Canadá. O ponto de partida foi a rejeição do discurso dominante da antropologia ocidental sobre as cultuas das quais são coletados os objetos e o movimento crescente, por parte dos grupos autóctones, em terem suas histórias e culturas apreendidas para além das interpretações mitológicas, legendárias ou folclóricas. A idéia do conceito é a de ultrapassar os limites entre o discurso em terceira pessoa, produzido pelos estudos e olhares estrangeiros, trazendo a voz dos protagonistas das culturas apresentadas, de modo a assegurar que, nas exposições, os objetos sejam traduções dos discursos locais, das comunidades envolvidas. Na contramão dos discursos universalistas, são propostas imagens das culturas sob vários pontos de vista, em tratamento denominado “abordagem cubista”. Estes dois últimos conceitos ocupam hoje o campo das reflexões, misturando a

polissemia dos objetos, mais e mais reconhecida pelo mundo museal ocidental, ao reconhecimento da polifonia das vozes e dos discursos.10

Do final do século XVIII aos dias atuais, algumas instituições museológicas destacaram-se na abordagem de culturas e sua patrimonialização, seguindo os modelos acima, levando tais iniciativas a moldarem as práticas museológicas do ocidente, ecoando pelo mundo ações semelhantes.

Destacaram-se nesse quadro os Museus Coloniais11, que tiveram seus acervos formados por “coletas”, que foram apropriações, muitas vezes, de forma violenta, realizadas por militares, missionários, administradores, comerciantes e cientistas. Fica claro o caráter de humilhação nos contatos realizados para estas “coletas”, que se apropriaram de objetos das sociedades dominadas, transformando-os em troféus exibidos em coleções particulares e destinados aos museus coloniais. Tais objetos que foram

10 DUBOC, obra citada p.54-55.

11 Nelia Dias classifica a designação “museu colonial” em três tipos de museus: a) os museus criados na

metrópole durante o período colonial, por exemplo le musée Royal du Congo (Tervuren); b) museus fundados nas colônias, como o Museu do Dundo (Angola); c) museus etnográficos constituídos na Europa no curso dos séculos XIX e XX. cf. DIAS, Nélia. Musées et Colonialisme: entre passe et present. em: Du

utilizados como “provas da ignorância” e do “caráter diabólico” dos africanos, justificaram a ação colonial operada no continente africano12.

No começo do século XX foram estabelecidas redes de aquisição de peças, principalmente estatuetas e máscaras, devido ao surgimento de novos museus e também novo status alcançados por estes objetos, por intervenção de artistas de vanguardas europeus. Há uma grande contradição nestas campanhas de coleta e reconhecimento de objetos africanos, como de seu envio para compor coleções de museus na Europa, sendo utilizado o argumento de “preservação”, pois

O processo de apropriação maciça [...] podia ser comparado a um simulacro de ciência: a “busca do saber”, inteiramente orientada para o exercício do poder, todos os dados sendo recolhidos em um contexto de ocupação e exploração. Esta “política etnográfica” contribuiu para a apropriação e a neutralização das formas individuais de poder. A retirada sistemática de “regalia” dos chefes, armas, obras de arte religiosas, sem que jamais fossem considerados quais objetos poderiam ser alienados, [...]13

Entre essas expedições destacou-se a Missão Dakar-Djibouti14, que durante quase dois anos percorreu mais de quinze países africanos, para recolher objetos para o Museu do Homem, inaugurando na África a era das pesquisas sistemáticas de campo e atentando para o “maior rigor possível no processo de coleta”, que deveria ser acompanhada de informações sobre suas funções, formas, técnicas de fabricação de objetos e utensílios e suas formas de representação. A expedição teve como suporte de orientação um manual anônimo: Instructions Summaires pour les Collecteurs d’Objects

Ethnographiques, publicado em 1931, que

discutia com riqueza de detalhes, o valor científico da coleta, os critérios para a seleção de objetos, os dados a serem registrados para cada item, como proceder à identificação, classificação, registro fotográfico e acondicionamento das peças, assim como a ortografia e os símbolos fonéticos a serem usados para o registro da terminologia nativa; em nenhum ponto do manual são mencionados assuntos

12 WASTIAU, Boris. La Reconversion du Musée Glouton. In: Le musée cannibale. Neuchatel: Musée

d´Ethnographie, 2002. p. 85 - 109.

13 WASTIAU, obra citada p.93.

14 A Missão Dakar – Djibouti foi realizada de 1931 a 1933, para o Museu do Homem de Paris, composta

por Marcel Griaule, Michel Leiris, André Schaeffner, Eric Lutten, Denise Paulme, entre outros. De grande importância tanto a recolha de objetos africanos quanto a realização de fotografias, filmes, registros de tradições e cantos. Marcel Griaule destacou-se na realização destas missões, antes de Dakar realizou uma para a Etiópia, depois a missão Sahara-Camarões, dentre outras.

como uma compensação adequada, a oposição dos indivíduos à coleta cientifica, ou outras questões pertinentes às relações pessoais e à ética do empreendimento. [...]15

É importante observar que mesmo sendo uma incursão “sistematizada”, com caráter cientifico, são perceptíveis o caráter invasivo e violento de tais empreendimentos junto a diversos grupos culturais “pesquisados”. Trazemos aqui reproduzimos alguns trechos, citados por Sally Price, do relato de Michel Leiris em relação a esta que foi a primeira grande expedição cientifica francesa à África, no sentido de melhor elucidar os procedimentos do científico e civilizado ocidente cristão:

6 de setembro (1931)

[Em uma pequena construção que abriga relíquias sagradas, encontramos,] no lado esquerdo, um embrulho não identificado, pendurado no teto no meio de um feixe de cabaças, coberto com penas de diversos pássaros, e contendo, segundo concluiu Griaule depois de apalpá-lo, uma máscara. Incomodado com a morosidade das pessoas [que estão fazendo uma série irritante de exigências para um ritual de sacrifício], nossa decisão é tomada rapidamente: Griaule pega duas flautas e as esconde nas suas botas, colocamos as coisas de volta aos seus lugares e saímos.

[Depois de mais uma discussão irritante sobre o sacrifício que deve ser oferecido], Griaule decreta (...) que, como as pessoas estão obviamente zombando de nós, será necessário que elas, como retribuição, nos entreguem O kono em troca de 10 francos, caso contrario os policiais que estão escondidos [afirmou) no caminhão terão que prender o chefe e os dignitários da aldeia e levá-los para San, onde eles terão que explicar seu comportamento a Administração. Chantagem medonha!

(...) O chefe da aldeia está arrasado. O chefe do kono anunciou que, devido às circunstancias, nós teríamos permissão para levar o fetiche (...) Com um floreio dramático, devolvo a galinha do sacrifício ao chefe e (...) mandamos os homens entrarem para pegar o kono. Depois que todos se recusam a fazé-lo, entramos nós mesmos, envolvemos o objeto sagrado num encerado, e saímos como ladrões, enquanto o chefe, agitado, afasta-se e, a uma certa distancia, obriga sua mulher e filhos, [que não podem por os olhos neste objeto sagrado), a entrarem em casa, batendo neles com uma vara.

Neste relato vemos uma expedição “cientifica” que desestruturou e desorganizou sistemas de valores, desencadeando mais que agressões entre familiares, problemas psíquicos, mentais, religiosos de incalculáveis e imprevisíveis desdobramentos e

dimensões. Todo um universo de crenças, valores, costumes era solapado, desajustado, provocando desagregações culturais que resultaram na reafirmação da “desordem” dos africanos em contato com os europeus.

(...) Os 10 francos são dados ao chefe e, em meio a confusão geral, saímos as pressas, como patifes extraordinariamente poderosos e ousados, envoltos num brilho demoníaco.

7 de setembro

Antes de deixar Dyabougou, visitamos a aldeia e seqüestramos um segundo kono, que Griaule havia visto quando entrou às escondidas na cabana especial onde ele era guardado. Desta vez, Lutten e eu comandamos a operação. Meu coração dispara; depois do escândalo de ontem, entendo mais claramente a gravidade do que estamos fazendo. Lutten corta, com sua faca de caca, o traje de penas preso à máscara, entrega-a a mim de modo que eu possa envolvê-la no pano que trouxemos, e também me dá (...) [outro objeto], que pesa pelo menos 15 quilos, e que eu enrolo junto com a máscara. Tudo é rapidamente removido da aldeia, e atravessamos os campos de volta para os carros (...)

***

12 de novembro

(...) Ontem, as pessoas recusaram, horrorizadas, nosso pedido de várias estatuetas usadas para trazer chuva, assim como uma figura com os braços levantados que foi encontrada em outro santuário. Se levássemos estes objetos, estaríamos levando a vida da terra, explicou um garoto que (...) quase chorou ao pensar nas desgraças que nosso ato ímpio causaria (...) Corações de piratas: enquanto nos despedimos carinhosamente dos velhos (...), vigiamos o guarda sol verde que normalmente está aberto para nos fazer sombra mas hoje está cuidadosamente amarrado com um cordão. Inchado, com um estranho tumor que o torna semelhante ao bico de um pelicano, ele agora esconde a famosa estatueta com os braços levantados que eu mesmo roubei da base do pequeno monte cônico que serve de altar para esta e outras estatuetas semelhantes. Eu a escondi primeiro sob minha camisa (...) Depois, coloquei-a no guarda-sol (...) enquanto fingia urinar para distrair a atenção das pessoas.

À noite (...) meu peito está manchado de terra, pois, enquanto saíamos da caverna das máscaras desta aldeia, minha camisa serviu mais uma vez de esconderijo para uma espécie de serra enferrujada de dois gumes, que nada mais é que um zunidor de ferro.

14 de novembro

(...) Os furtos continuam (...) Exploramos sistematicamente santuários e valas onde as máscaras antigas são jogadas (...)

15 de novembro

Ontem, os nossos amigos Apama e Ambara trouxeram, às escondidas, os trajes de fibra que fazem conjunto com as máscaras, conforme lhes havíamos pedido. Eles nos imploraram, sobretudo! que os escondêssemos bem. Hoje, com a ajuda deles, farei as fichas destes objetos. Apama e Ambara estão atentos ao menor ruído. Uma criança que quer entrar é repreendida. Não ha dúvida: nossos procedimentos

conquistaram seguidores, e os dois corajosos garotos foram pegar os trajes de fibra na caverna das máscaras onde eles haviam sido escondidos.

A influencia dos europeus (...)

A vileza continua e eu as vezes tenho vontade de quebrar tudo, ou então de simplesmente ir embora para Paris. Mas o que eu iria fazer em Paris?

***

A partir deste questionamento sobre o que fazer em Paris, podemos refletir que as relações senhores versus escravos desdobraram-se em outras formas de barbárie ou maldições de senhores das “ciências” acossados por fascinações e fantasias em relação a modos de ser de suas vítimas e/ou objetos de pesquisa. Sujeitos versus objetos, ciências

versus fantasmas refazem relações senhores versus escravos ao ficarem possuídos e presos, irremediavelmente, a seus “objetos” e “sujeitos” de caça.

18 de novembro

(...) Do lado direito da caverna, num pequeno santuário, uma linda escultura de madeira. Evitamos olhar muito para ela, para não levantar suspeitas, mas fica entendido que, esta noite, Schaeffner e eu a levaremos.16

Roubo, vilania, cinismo, abuso de poder, corrupção, são apenas alguns adjetivos amenos que podemos utilizar para classificar as ações confessadas nestes relatos. O que

No documento MARCELO NASCIMENTO BERNARDO DA CUNHA (páginas 49-77)