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Banda larga cordel: a síntese do político, do poético e do midiático

ENTRE A POESIA, A POLÍTICA E A CIRCULAÇÃO MIDIÁTICA

2.4 Banda larga cordel: a síntese do político, do poético e do midiático

As estratégias do discurso tropicalista se interpenetram numa unidade diversa que tentamos apreender a partir de uma base antropofágica aplicada. Assim, na relação com a mídia, procuramos observar como o movimento liderado pelos baianos propunha a ocupação das brechas da indústria cultural, tanto numa dimensão territorial brasileira quanto na inscrição da brasilidade no trânsito cultural internacional. No campo que definimos como político, o Tropicalismo cindiu as formações discursivas da esquerda tradicional, trazendo o elemento da ambiguidade, as micropolíticas num cenário de totalizações. A contracultura tropicalista, ao mesmo tempo em que assinala essa passagem do coletivo para o individual e do individual para o coletivo, arrasta consigo certa absorção pela dinâmica do mercado do caráter de resistência de suas propostas. É mais uma tensão que se revela na complexidade das canções do que uma contradição paralisante na trajetória dos artistas. Finalmente, procuramos encontrar a subjetividade tropicalista-antropofágica do poeta na caracterização de um olhar contemporâneo: a um só tempo dissociado de seu tempo (pelo eixo do interdiscurso), e à frente dele (pelo aspecto visionário presente em muitas das criações do artista).

No nomadismo dos afetos, a passagem pelo Ministério produz fagulhas, movimenta os arquivos. O disco Banda larga cordel, lançado em 2008, constitui um trabalho que dialoga com a trajetória do artista/Ministro e sintetiza o funcionamento dos arquivos tropicalistas. É, por esse motivo, um álbum emblemático a ser retomado em outros momentos do trabalho. A música que dá nome ao disco tematiza a relação entre a cultura digital e as transformações territoriais no sertão brasileiro, pensando a primeira como uma espécie de canal midiático para o poético e o político, ponto energético do in antropológico. Em Banda larga cordel é possível perceber a relação estabelecida pelo Tropicalismo entre a macro e a micropolítica, conforme observamos nos processos de subjetivação no funcionamento dos arquivos poéticos.

A letra faz referência a uma das principais propostas do Ministro: estender a todo território nacional a conexão rápida com a internet, a possibilidade real de trafegar

imagens e sons do centro para a periferia (como tem sido a regra), mas também da periferia para o centro. A música reproduz a linguagem de cordel fundida a ritmos eletrônicos, como uma espécie de rap nordestino. No gosto pelo paradoxo – como é próprio da formulação poética de Gilberto Gil –, o canto principia pela referência à experimentação dos sabores, o as experiências sensitivas, a vivência, para articulá-la à dimensão da cultura digital e à forma como a última interpenetra todos os campos do conhecimento na atualidade: Pôs na boca, provou, cuspiu/ É amargo, não sabe o que perdeu/ Tem um gosto de fel, raiz amarga/ Quem não vem no cordel da banda larga/ Vai viver sem saber que mundo é o seu/ Mundo todo na ampla discussão/ O neuro-cientista, o economista/ Opinião de alguém que esta na pista/ Opinião de alguém fora da lista/ Opinião de alguém que diz que não.

O sentido tecnológico do sintagma banda larga é subvertido para falar da diversidade religiosa do planeta no efeito de passagem da micro à macropolítica, já presente na apresentação do tema relacionando o ato de provar um novo gosto e se inserir na ampla rede mundial. Gil faz uma citação antropofágica de uma das raras composições de João Gilberto, Bim bom, cuja letra aborda a decantação da experiência estética do inventor da batida da Bossa Nova: É só isso o meu baião/ E não tem mais nada não. Na diversidade de temas e mundos, na cultura digital, o guia do cartógrafo é o coração, de onde vem o encantamento pela batida da Bossa Nova/ velho baião: Uma banda da banda é umbanda/ Outra banda da banda é cristã/ Outra banda da banda é kabala/ Outra banda da banda é alcorão/ E então, e então, são quantas bandas?/ Tantas quantas pedir meu coração/ E o meu coração pediu assim, só/ Bim-bom, bim-bom, bim-bom, bim-bom.

A voz do poeta se torna, então, próxima das polêmicas envolvendo o Ministro numa postura engajada sobre a necessidade de estender como uma teia no território nacional o acesso das populações remotas à banda larga. Ou se alarga essa banda e a banda anda/ Mais ligeiro pras bandas do sertão/ Ou então não, não adianta nada/ Banda vai, banda fica abandonada/ Deixada para outra encarnação/ Rio Grande do Sul, Germania/ Africano- ameríndio Maranhão/ Banda larga mais demografizada/ Ou então não, não adianta nada/ Os problemas não terão solução/ Piraí, Piraí, Piraí/ Piraí bandalargou-se um pouquinho/ Piraí infoviabilizou/ Os ares do município inteirinho/ Com certeza a medida provocou/ Um certo vento de redemoinho.

A letra retoma a dinâmica da produção de subjetividades a partir dos novos recursos tecnológicos, numa referência à própria memória do compositor afetada pelas ondas do rádio na infância do sertão baiano. É preciso estender a banda larga a todos os territórios antes da outra “encarnação”, para que as novas gerações descubram seus próprios caminhos:

Diabo de menino agora quer/ Um i pod e um computador novinho/ Certo é que o sertão quer virar mar/ Certo é que o sertão quer navegar/ No micro do menino internetinho/ O Netinho, baiano e bom cantor/ Ja faz tempo tornou-se um provedor - provedor de acesso/ À grande rede WWW/ Esse menino ainda vira um sábio/ Contratado do Google, sim sinhô/ Diabo de menino internetinho/ Sozinho vai descobrindo o caminho/ O rádio fez assim com seu avô.

O olhar do poeta se torna contemporâneo ao analisar o fenômeno da cultura digital numa perspectiva histórica, articulando-a às ferrovias e a outros meios de transporte que promoveram as trocas simbólico-culturais e movimentam a cartografia dos afetos. Rodovia, hidrovia, ferrovia/ E agora chegando a infovia/ Pra alegria de todo o interior/ Meu Brasil, meu Brasil bem brasileiro/ O You Tube chegando aos seus grotões/ Veredas do sertão, Guimarães Rosa,/ Ilíadas, Lusíadas, Camões,/ Rei Salomão no Alto Solimões.

Banda larga cordel termina com o paradoxo dos sabores-saberes sensoriais e territoriais na referência às brincadeiras da infância, para apontar um trajeto histórico entre a produção de subjetividades do avô diante do rádio e da ferrovia e o menino que já nasce familiarizado com as novas tecnologias: O pé da planta, a baba da babosa./ Pôs na boca, provou, cuspiu/ É amargo, não sabe o que perdeu/ É amarga a missão, raiz amarga/ Quem vai soltar balão na banda larga/ É alguém que ainda não nasceu.

São múltiplos os sentidos da banda larga de Gil: os músicos populares que povoaram o imaginário do menino, a diversidade étnica, cultural e religiosa do planeta (umbanda, cabala, cristã), e por fim o sentido do acesso livre para signos culturais a partir de um dispositivo técnico, como uma promessa otimista de libertação. Há um ciclo iniciado em Caruaru e fechado no retorno do compositor ao seu ofício primeiro, transformado pelo trânsito político. Sujeito que se reinventa, a todo tempo, se equilibrando sobre o fio de um discurso que toma forma a partir de uma intuição poética e se espalha como pontos de cultura na rede discursiva que liga a brasilidade ao mundo e o mundo à brasilidade.

Ao se colocar numa dada formulação, o sujeito se ancora no interdiscurso (o eixo da memória), revolve os arquivos e desloca o presente pelo aspecto visionário. É através desse jogo que se constitui o saber-poder tropicalista. A matriz antropofágica age tanto em relação a temporalidades (a dimensão histórica atualizada), quanto em relação às novas geografias do afeto (o campo dos acontecimentos). O antropófago/arqueólogo atua nos arquivos – trazendo à tona o até então esquecido – e no contemporâneo (pelo olhar dissociado do seu tempo capaz de revelar as luzes onde se vê as trevas e as trevas onde se vê a luz), juntando elementos distintos numa formação discursiva também original, herdeira dos universos canibalizados, mas heterogêneas em relação a eles.

O dispositivo analítico nas instâncias poética, política e midiática, tal como trabalhamos, busca explicitar camadas discursivas – linhas de saber-poder – diversas na composição do discurso tropicalista. Demonstramos como se dá a produção de subjetividade definidora do discurso produzido por Gilberto Gil. Discurso esse que, ao circular, agencia outras subjetividades, compondo micropoderes/resistências/identidades móveis numa dimensão coletiva. Guattari (1992), ao pensar na heterogeneidade dos elementos presentes na produção de subjetividade, aponta os componentes semiológicos significantes resultantes das manifestações familiares, esportivas, educativas, do meio-ambiente, da religião e da arte, os elementos fabricados pela indústria cultural (cinema, mass-midia), todo um conjunto de signos que transcendem à ordem linguística.

Assim, as linhas de força – político, poético e midiática – presentes no discurso tropicalista produzem sentido de maneira interconectadas e disputam, entre si, a primazia dos enunciados. O arquivo tropicalista-antropofágico se ancora, sobretudo, nos dispositivos midiáticos quer olhemos a memória agenciada por Gilberto Gil (ondas do rádio, os discos de vinil, o cinema, a internet), quer consideramos a própria produção do artista no interior dos mass-midia. O discurso tropicalista não se limita a considerar os meios de comunicação apenas na dimensão de circulação de um conteúdo formulado alhures. Há, na própria formulação, a tematização recorrente da relação entre esses meios e a vida cotidiana histórico- territorial dos sabores-saberes. E é no centro dessa relação que a potência antropofágica revela sua estratégia mais contemporânea. Pensar a relação dos discursos com os meios de comunicação é transcender a ideia de um veículo para circulação, mas considerar os protocolos sociais, as práticas discursivas que estão tanto na origem quanto no desenvolvimento de cada meio. E a trajetória de Gilberto Gil é exemplar de uma relação que começa no rádio, passa pela TV e dessa à internet.

Se, como vimos, o acontecimento tropicalista no final dos anos 1960 ruiu a regularidade da série discursiva – tanto numa perspectiva da história da música brasileira quanto numa relação mais ampla com o meio político-cultural do país –, a estabilidade da posição sujeito do compositor popular talvez tenha levado, no decorrer do tempo, o artista Gilberto Gil a se tornar um a mais na opacidade das telas de TV, no contexto da cultura do excesso a que somos submetidos com maior intensidade desde os anos 1980. A trajetória de Gil tem buscado – pela sua característica antropofágica – um deslocamento da posição do sempre já lá tropicalista nos movimentos posteriores aos festivais de música que o revelaram. O verniz tropicalista se tornou opaco, no primado da aparência em relação à vivência, o acontecimento banalizado na repetição da fusão de cultura popular e pop. O movimento do

cartógrafo para o campo político, nesse caso, sugeriria numa mudança da expectativa da série, sendo um acontecimento que, confrontado com a memória (a irrupção do Tropicalismo nos festivais de música), criaria um campo magnético novo. De um lado, o artista adquirindo novas vivências nas apresentações na ONU e, de outro, o Ministro abrindo frentes na bandeira da cultura digital. Movimento que reforça a regularidade “visionária” de um político-artista ou de um artista-político.

A Cultura digital só aparece nos trabalhos de Pêcheux e mesmo em Foucault, Deleuze e Guattari como intuição. A vinculação de Gilberto Gil às discussões sobre a cultura digital – esse grande arquivo dos saberes em escala planetária –, que, articulados aos sabores da vida real, criam uma ordem diversa da opacidade do acontecimento televisivo. O outro que se apresenta na tela de um computador, nas redes sociais, é mais próximo dos afetos de quem o aciona do que a imagem neutra, passiva da tela de TV. A discussão sobre os pontos de cultura, a composição Banda larga cordel, percebem na internet um recurso tecnológico que agencia as subjetividades de maneira mais ativa, ainda que relativizando o tom de otimismo de muitas análises que desconsideram também o véu do poder onde brotam as resistências. Na cultura digital, todos deixam registros, marcas de seus movimentos, num refinamento do mecanismo de controle. Mas na banda larga que se busca, a via é de mão dupla e a produção de subjetividades ganha novos contornos. Da articulação entre as inovações tecnológicas e as experimentações sociais poderia emergir – acreditava Guattari (1992, p.13) – uma saída do período opressivo para dar lugar a uma “era pós-mídia, caracterizada por uma re-apropriação e uma re-singularização da utilização da mídia (acesso a banco de dados, às videotecas, interatividade entre os protagonistas, etc)”. Tudo o que, de certa forma, se materializa na internet, não sem conflito ou resistência, como demonstram as polêmicas envolvendo sujeito Ministro Gilberto Gil na discussão sobre cultura digital.