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A metáfora no canto e o lugar do poético na AD

DO DOMINGO DO PENSAMENTO AO CORPO MIDIÁTICO

1.2 A metáfora no canto e o lugar do poético na AD

Procuramos, até agora, descrever/interpretar o acontecimento discursivo tropicalista para fazer emergir sua singularidade, esforço que trouxe à tona uma multiplicidade de relações a serem trabalhadas no desenvolvimento da tese. A breve contextualização do gesto tropicalista no calor dos anos 60, articulada com o nascimento da Análise do Discurso como disciplina, sinaliza dois aspectos. O primeiro é a forte presença do marxismo tanto no ambiente acadêmico francês, quanto na Música Popular Brasileira. A diferença de contexto não pode desconsiderar o fato de que vivíamos sob uma ditadura militar e a música era um espaço múltiplo: catarse, resistência, mercado. Na sua dimensão discursiva, era um dos principais espaços por onde os sentidos deslizavam, tanto que se tornou célebre a maneira como os compositores – incluindo os tropicalistas – subvertiam, nos jogos das palavras, as interdições da censura. O segundo é o gesto tropicalista como uma espécie de premonição sobre as amarras ideológicas que as leituras marxistas geraram, vinte anos antes dessa mesma conclusão ganhar forma nas reflexões do próprio Michel Pêcheux e Jean- Jacques Courtine. Descompasso entre arte e ciência, diferenças de contextos históricos e geográficos possibilitam a aproximação entre teoria e objeto. “O tempo da pesquisa consiste em correr atrás do acontecimento”, nos diz Courtine (2006, p.109). O tempo da arte, ao contrário, é antecipar tendências, materializar em linguagem o que ainda se insinua nas práticas discursivas.

Nessa relação entre teoria e objeto, as novas formas de circulação do discurso, sobretudo a partir da popularização de tecnologias como a televisão, cumprem um papel fundamental. Se a desconsideração dos novos meios foi uma das causas do discurso comunista cair no “lugar vazio” de que fala Courtine, o Tropicalismo se construiu nas brechas

dos dispositivos midiáticos, inclusive, como mostramos, numa aproximação com as teorias de cultura de massa de inspiração mac luhiana, a partir do trabalho de Décio Pignatari e os irmãos Campos, cujo pano de fundo é a Semiótica de Peirce. Há uma influência dos estudos de mídia de vertente americana entre os múltiplos referenciais teóricos que embasavam os tropicalistas. Pignatari (1968, p.27) faz referência à distinção entre Semiótica e Semiologia para demarcar sua inscrição na primeira.

Na Europa, a semiótica é chamada de semiologia e se apresenta fortemente vincada pela parti pris lingüístico de suas origens, como se pode notar pela nomenclatura de suas principais noções: denotação e conotação, significante e significado. Porém, mesmo no setor da lingüística estruturalista, um Roman Jakobson não oculta suas preferências por Pierce, cuja orientação também acolhemos (PIGNATARI, 1968, p.27-28).

Nas margens do discurso musical tropicalista há, como vimos, uma rede complexa: as relações com o marxismo, as teorias sobre a comunicação de massa, o diálogo com as tradições populares brasileiras, o cinema, a televisão, o teatro, as artes plásticas. Os fios dessa rede se articulam, como vimos, com o ambiente anterior ao acontecimento tropicalista e coincidem com a implantação da ditadura militar no país além de sinalizar o trânsito entre o poético e o político potencializados no movimento liderado pelos músicos baianos.

É preciso seguir o curso da teoria para encontrarmos nela o lugar do poético, ausente nas primeiras formulações. Se há um descompasso entre a constituição da Análise do Discurso e o real histórico no próprio território francês (nos referimos à forma como maio de 68 motiva a primeira fundamentação teórica da AD, embora essa não incorpore, num primeiro momento, a complexidade do acontecimento protagonizado pelos estudantes franceses), é preciso reconhecer a singularidade do pensamento de Foucault por não comungar com a ideia de um poder central a partir da classe dominante. O filósofo problematizou o discurso, de um ponto de vista menos determinista do que o verificado no primeiro momento de Pêcheux. O discurso é um objeto cuja formulação se dá, em Foucault, sobretudo nas obras A arqueologia do saber, de 1969, e A ordem do discurso, de 1971. São reflexões que fazem parte da primeira época do pensamento do filósofo, marcado em seu conjunto pela busca do entendimento das relações entre saber e poder na sociedade, os modos de subjetivação e de constituição da ciência. A fase arqueológica do filósofo propunha, sobretudo, uma revisão metodológica das Ciências Humanas, influenciadas pelas correntes estruturalistas marxistas. Essas reflexões deslocam pouco a pouco o pensamento de Foucault para entender os poderes no meio social.

O discurso, na visada foucaultiana, não é um falar sobre algo, mas algo que preexiste e determina os próprios objetos. Uma relação estreita entre fazer e dizer através do que o filósofo denomina práticas discursivas.

Uma das singularidades da Análise do Discurso está na estreita relação com o que foi de fato enunciado, não se parte de virtualidades. É a materialidade do enunciado: o átomo do discurso na definição de Foucault (2004b), quem abre o flanco para o imaginário, o simbólico e a história.

Não se volta ao aquém do discurso – lá onde nada ainda foi dito e onde as coisas apenas despontam sob uma luminosidade cinzenta; não se vai além para reencontrar as formas que ele dispôs e deixou atrás de si; fica-se, tenta- se ficar no nível do próprio discurso (FOUCAULT, 2004b, p.54).

Foucault pensou o enunciado como um acontecimento na ordem do saber. O enunciado não se confunde com a língua, não é tão somente uma frase, um ato de fala, mas uma função na medida em que é produzido por um sujeito a partir de uma posição institucional que determina o que pode e deve ser dito. O enunciado, para Foucault (2004b), trazia em si a singularidade do acontecimento, sempre associado a um domínio de memória. Todo dizer se apoia sobre um já dito. O enunciado tem uma existência material e ao contrário da enunciação pode se repetir cabendo, inclusive, ao analista, buscar a recorrência dos mesmos enunciados em diferentes enunciações. Essas regularidades dariam os limites do que Foucault denominou formação discursiva, um conceito central na Análise do Discurso.

Pêcheux (1995) dialoga com o conceito de formação discursiva, mas o adapta – num primeiro momento – à perspectiva althusseriana, articulando-o à ideia de formação ideológica. O que resulta numa concepção homogênea sem considerar as divisões e contradições no interior de uma mesma formação discursiva. É uma ideia que deriva mais da influência marxista no primeiro momento da teoria do que na construção do conceito em Foucault (2004b), para quem a formação discursiva é constitutivamente heterogênea. A concepção de formação discursiva utilizada neste trabalho é aquela encontrada no terceiro momento da AD, quando Michel Pêcheux se aproxima mais do pensamento de Foucault: toda formação discursiva traz em si as marcas da alteridade, sendo sempre frequentada por seu outro.

O conceito de formação discursiva interessa-nos, sobretudo, por sua relação com a noção de arquivo, fundamental, como veremos, para situar o acontecimento tropicalista na cultura brasileira. Na relação entre as formações discursivas, quando conseguimos

enxergar na dispersão de enunciados certa regularidade, estaremos diante de uma positividade, um arquivo. O conceito, trabalhado por Foucault (2004b), diz respeito a todo o sistema de enunciados: “acontecimentos de um lado, coisas de outro [...]. O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (FOUCAULT, 2004b, p. 146-147). Para Foucault, é necessário um distanciamento histórico para que o arquivo seja melhor percebido. É impossível a descrição do arquivo na sua totalidade, dele se pode apreender fragmentos, regiões e níveis.

O arquivo é regido por dois sistemas: de enunciabilidade e funcionamento. Sargentini (2006), ao discutir a concepção foucaultiana de arquivo, demonstra que esses sistemas se complementam: aparecem tanto na formação quanto na transformação dos enunciados. Na relação do pesquisador com o arquivo, tanto o excesso quanto a falta se constituem em problemas. A discussão sobre os dois riscos de radicalização emergiu com a crítica feita pelo historiador Francês J. Leonard ao livro Vigiar e Punir, escrito por Foucault em 1975. Em artigo intitulado L’historien et le philosophe, em 1975, Leonard vai afirmar que Foucault não trata exaustivamente o arquivo, comporta-se como um “cavaleiro bárbaro que percorria três séculos a rédeas soltas”, se referindo ao saltos por períodos históricos diferentes. A resposta de Foucault no artigo A poeira e a nuvem, de 1980, levanta a importância da problematização que norteia a pesquisa. “Para o filósofo, a exaustividade é uma regra para quem quer tratar um período, mas não para se tratar um problema surgido em um dado período” (SARGENTINI, 2006, p. 42). O excesso de arquivo aponta para a ilusão de que está tudo anotado, vigiado, não é mais possível à história como criação. No outro oposto, a falta de arquivo sinaliza o equívoco da soberania do eu, o risco do dogma. Nem saber absoluto, nem impressões subjetivas são ideais, por isso a AD caminha pelo meio e se guia pela definição de um ponto de vista para examinar o arquivo. São as perguntas que organizam o corpus.

O pensamento de Foucault influencia o segundo momento da Análise do Discurso, entre os anos de 1975 e 1980. É a hora de questionamentos, de relativizações de preceitos construídos no primeiro momento. As máquinas discursivas se limitam a repetir a ideologia: o motor da história é, de fato, a luta de classes? O sujeito é totalmente interpelado pela ideologia? Existirá espaço para as resistências, para os sentidos-outros? Uma fase de perguntas, cujas respostas só se tornarão mais claras no movimento da história. É desse período a publicação do texto Semântica e discurso, de Michel Pêcheux, produção situada num espaço híbrido entre o primeiro momento e a etapa posterior da Análise do Discurso.

A terceira época da AD francesa resulta das reflexões ocorridas no início dos anos 80 e é um momento de profundas revisões na teoria, já sob a sombra das crises do

marxismo. A publicação da tese de Jean-Jacques Courtine – Análise do discurso: o discurso comunista endereçado aos Cristãos (1981) – é um marco principalmente porque o autor se volta a Foucault para relativizar a concepção de uma formação discursiva homogênea. Courtine traz o conceito de enunciado dividido, retomando a ideia de que uma formação discursiva é sempre frequentada por seu outro.

Foi a partir dessa releitura que Courtine faz de „A arqueologia do saber‟ que a análise do discurso – que em sua primeira fase tratava de corpus como se fossem homogêneos – se encaminhou para os estudos da alteridade, da heterogeneidade (GREGOLIN, 2007a, p.180).

No mesmo ano de divulgação da tese de Courtine, em 1981, Pêcheux (1981) publica o texto Sobre a des(construção) das teorias linguísticas, em que o lugar do poético aparece como um contraponto à ideia de que era possível criar um método de leitura científico. Pêcheux vai postular o equívoco como constitutivo da linguagem a partir da crítica à exclusão do simbólico em duas correntes predominantes na Linguística: a logicista e a formalista.

Esta incongruência marca o lugar deixado em tal perspectiva para uma reflexão que pretende fazer valer, no espaço da pesquisa lingüística, o jogo Mallarmeano dos significantes; a incidência inconsciente do Witz (chiste) e, de tudo o que, da língua, escapa ao sujeito falante: o lugar de um entre-atos engraçado dentro da seriedade da ciência, uma espécie de domingo poético do pensamento (PÊCHEUX, 1981, p.23).

Neste texto, Pêcheux diferencia um universo estabilizado do discurso (na matemática, nas ciências da natureza, nas tecnologias, na gestão dos controles administrativos), espaços onde “toda ambigüidade comporta, de fato, um risco, mortal” (PÊCHEUX, 1981 p. 24). Em contrapartida, há universos não estabilizados: “espaço sócio- histórico dos rituais ideológicos, dos discursos filosóficos, dos enunciados políticos, da expressão cultural e estética” (PÊCHEUX, 1981 p.24). A segunda categoria é marcada por uma presença constitutiva do equívoco, fato estrutural implicado pela ordem simbólica. A fronteira entre os dois espaços é difícil de determinar e sobre ela se equilibram as formas jurídicas, administrativas, as convenções cotidianas.

O texto de Pêcheux vê no Estruturalismo uma concepção aristocrática por acreditar na “velha certeza elitista que pretende que as classes dominadas nunca inventem nada porque elas estão demasiadamente absorvidas pelas lógicas do cotidiano” (PÊCHEUX, 1981 p. 26), algo semelhante à visão de arte do povo conforme o manifesto do CPC da UNE.

O humor, a poesia, conclui Pêcheux, não são apenas o domingo do pensamento – como acreditava a lógica estruturalista-marxista – mas sim manifestações de uma inteligência política e teórica. O autor propõe a Linguística mais do que um jogo nas regras (na medida em que as regras refletem sistemas de conhecimento estabilizados), mas um jogo sobre as regras (supor na língua a dimensão do simbólico). Toda construção pode aparentar uma outra: “uma palavra desliza sobre outra palavra” (PÊCHEUX, 1981 p. 28).

Nesse período de revisão, Pêcheux utiliza, com um sentido próximo, a mesma expressão de Caetano Veloso no discurso por ocasião das vaias a É proibido proibir: ambos mencionam a imbecilidade. O compositor brasileiro se referia à juventude sectária para qual a verdadeira música devia ser regional, com temática marxista, não percebendo nessa formulação o lugar vazio, o branco semântico na desconsideração de um universo urbano, um real histórico descompassado em relação às projeções da música de protesto. Pêcheux (2009), no prefácio da tese de Courtine – O estranho espelho da Análise do Discurso – mostra como esse campo do saber se queria uma espécie de prótese teórico técnica de leitura e “a imbecilidade” estava nesse lugar vazio do encontro entre ciência e política cuja síntese é “cientistas comunistas dedicados à análise do discurso por meio do discurso comunista” (PÊCHEUX, 2009, p. 23).

Essas ideias serão retomadas no texto O discurso: estrutura ou acontecimento, publicado na Franca em 1988. Pêcheux reafirma a crítica à ordem bio-social nas Ciências Humanas em detrimento do simbólico e a postura aristocrática das correntes estruturalistas- marxistas.

Neste ponto preciso, a posição teórico poética do movimento estruturalista é insuportável. Por não ter discernido em que o humor e o traço poético não são o “domingo do pensamento”, mas pertencem aos meios fundamentais de que dispõe a inteligência política e teórica, ela tinha cedido, antecipadamente, diante do argumento populista de urgência, já que ela partilhava com ele implicitamente o pressuposto essencial: os proletários não têm (o tempo de se pagar um luxo de) um inconsciente (PÊCHEUX, 1997a, p. 53).

Pêcheux conclui O discurso: estrutura ou acontecimento com uma reflexão sobre o batimento entre descrição e interpretação. A crença na ciência régia – no momento de constituição da Análise do Discurso – supunha a possibilidade da descrição, uma objetividade científica, espécie de máquina discursiva. Não há descrição pura, porque existe um sujeito da análise que por ser afetado pela ideologia e pelo inconsciente sempre irá interpretar os discursos. Essa é uma “questão de ética e política, uma questão de responsabilidade”

(PÊCHEUX, 1997a, p.57), assinala o autor.

Há, nesse ponto de vista, uma redefinição sobre o sujeito do discurso. É enquanto manifestação que oscila entre o inconsciente e a resistência que a poesia aponta para um sujeito menos determinado pela ideologia (como queria crer a primeira AD). Não se trata de dizer que o social não se faz presente na manifestação poética, mas de percebê-la como um lugar em que o sujeito se posiciona para além dos universos estabilizados do discurso. A partir dessa posição, gostaríamos de demarcar esse território simbólico da poesia como uma singularidade dentro dos universos político e midiático que constituem os outros espaços de movimento do sujeito a partir da trajetória de Gilberto Gil. A singularidade da Música Popular Brasileira, como veremos no terceiro capítulo, é a forma como reflete e refrata uma poética do cotidiano. É preciso buscar, portanto, a singularidade do universo poético.

A análise do discurso poético não se distingue, do ponto de vista metodológico, de qualquer outro discurso, sua especificidade se dá na produção de sentido: o modo mesmo de afetar e ser afetado pelo social. Roland Barthes, no texto O grau zero da escrita, estabelece as particularidades de uma escrita poética e de uma escrita política, diferenciação que pode nos ajudar a pensar os jogos discursivos na música popular brasileira dos anos 60. “A palavra poética nunca pode ser falsa porque ela é total; brilha com uma liberdade infinita e se propõe a irradiar em direção a mil relações incertas e possíveis” (BARTHES, 2004, p.42). Na escrita política, ao contrário, não há palavra sem valor, na constante busca da separação entre o bem e o mal, como no marxismo e stalinismo. O texto se torna unívoco, procura manter a “coesão de uma natureza”, a estabilidade de explicações e permanência de método: “não é senão, no extremo de sua linguagem que o marxismo alcança comportamentos puramente políticos” (BARTHES, 2004, p. 20).

Na perspectiva de Barthes, o poético supõe uma liberdade de todo ausente no político. Na escrita política, as ideias antecedem as palavras; no poético, a palavra deflagra o acontecimento. O fazer poético é universo não estabilizado, é trabalho a partir da própria ideia do equívoco na linguagem. É razoável supor que Barthes fala em categorias teóricas. Em todo fazer político e poético, há deslizamentos de um lado a outro. A univocidade não é total no político, assim como a liberdade também se fundamenta no político-ideológico no poético, sobretudo na sociedade capitalista em que a arte é também mercadoria. O reconhecimento de um espaço maior de liberdade faz do poético um campo que tateia o novo com maior intensidade do que o político, na medida da abertura ao utópico. Não se pode, evidentemente, de um ponto de vista foucaultiano, considerar a poesia como um universal: o verso só é livre num determinado contexto. A forma poética como qualquer outro tipo de discurso está

também circunscrita à historicidade. A passagem da Idade Clássica à Moderna na análise de Barthes (2004) acentua uma “liberdade” também constituída historicamente ao poetar que, inclusive, é desmerecida por vertentes estruturalistas que viam nessa forma de expressão “o domingo do pensamento” de que fala Pêcheux, inofensivo e inócuo diante da verdade histórica e científica do marxismo.

Assim, o lugar poético no sujeito pode ser pensado como um espaço de criação, não de todo livre da ordem social (de um ponto de vista da Análise do Discurso, não há discurso sem ideologia), mas onde o sujeito desliza para criar, no imaginário, novos mundos. É um espaço, sobretudo, de subjetivação. Se, pela Análise do Discurso, temos o sujeito duplamente interpelado – pela ideologia e pelo inconsciente –, o poético sugere também a interpelação do simbólico, um espaço múltiplo entre o inconsciente, o social e a dimensão significante da linguagem, onde toda palavra pode deslizar para outro sentido. Há um aspecto lúdico na poesia: o privilégio dos jogos de palavras, a fuga do sentido unívoco.

Um dos diferenciais da irrupção do Tropicalismo foi, justamente, sua filiação ao poético em relação às formulações da música engajada com suas implicações políticas dadas a priori. Heloísa Buarque de Hollanda (1980) observa como a música de protesto anulava o poético pela sua submissão ao ideológico, na elaboração do artista.

Programaticamente ele abre mão do que seria a força de seu instrumento de trabalho – a palavra poética – seu único engajamento possível – em favor do mimetismo que não consegue realizar, não levando, inclusive, em conta o nível de produção do simbólico nessa mesma poética popular (HOLLANDA, 1980, p.26).

O diferencial poético do Tropicalismo diante de uma música politizada, portanto, está na forma como seus autores se permitem aceitar (e tematizar) a vida urbana tal como ela se apresenta: a comunicação de massa, as bancas de revista, o momento presente.

O problema do Tropicalismo não é então saber se a revolução brasileira deve ser socialista-proletária, nacional, popular ou burguesa. Sua descrença é exatamente em relação à ideia de tomada de poder, a noção de revolução marxista – leninista que já estava dando provas, na prática, de um autoritarismo e de uma burocratização nada atraentes. Recusava, portanto, o Tropicalismo, a esperança no futuro prometido como redentor (HOLLANDA, 1980, p.61).

Contra esse projeto futuro, a ênfase no aqui e agora, a necessidade de revolucionar o corpo e os comportamentos. É, sobretudo, na quebra da série discursiva que se

dá o acontecimento tropicalista.

É um mecanismo cujo entendimento pode ser iluminado se pensarmos no lugar dedicado à metáfora (a figura de linguagem que melhor expressa o poético) no interior das teorias linguístico-discursivas. Bethânia Mariani (2007) aborda as diferentes concepções da metáfora a partir da teoria de três pensadores que têm em comum a ligação com o fundador da Linguística moderna, Saussure: o linguista russo Jakobson, o psicanalista Jacques Lacan e o filósofo Michel Pêcheux. A autora parte da clássica definição de metáfora como o processo