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O poeta contemporâneo: a reinvenção da baianidade

ENTRE A POESIA, A POLÍTICA E A CIRCULAÇÃO MIDIÁTICA

2.3 O poeta contemporâneo: a reinvenção da baianidade

A Bahia já me deu régua e compasso.

[Gilberto Gil, Aquele abraço, 1969] É necessário, agora, buscar o terceiro eixo de funcionamento dos arquivos tropicalistas – o poético –, a exemplo do político resultante do deslocamento do sujeito do discurso entre o histórico-territorial e a desterritorialização. A especificidade poética, tal qual a entendemos, não pode ser tomada apenas na dimensão dos versos das canções, incorpora também o próprio aspecto musical de uma maneira mais ampla: tanto a voz que dá corpo aos versos, como a música que os acolhe, os arranjos e apresentação cênica. Tomamos o poético como metonímia do sujeito artístico, aquilo que no criador não se vincula ao primado mercadológico. O que une todo esse conjunto na categorização do poético é a singularidade do sujeito que enuncia: a expressão do artista. Diz respeito tanto à forma – versos, melodias,

58 Entrevista gravada no DVD Eletroacústico de 2004. 59 Referência eletrônica, ausência de página.

harmonias e voz se colocam na busca por inscrever a subjetividade do artista nos jogos discursivos –, quanto ao conteúdo enunciado. O sujeito poético, ao mesmo tempo em que é afetado pelo mundo o afeta. É na relação da subjetividade com o social que os arquivos poéticos se movimentam.

Para melhor situar o arquivo poético, é preciso propor uma passagem do conceito de identidade (tal como vínhamos trabalhando na concepção do arquivo de brasilidade) para o de produção de subjetividades. É uma opção teórica inscrita na concepção de sujeito presente nas reflexões sobre as micropolíticas de Michel Foucault e seus desdobramentos na obra de Deleuze e Guattari (1997). Nem tanto o sujeito pleno cartesiano dono de sua razão, tampouco o sujeito descentrado pela ideologia e o inconsciente, tal como aparece na concepção da AD nos anos 1960. A produção de subjetividades reconhece o espaço de elaboração do sujeito que no jogo da linguagem pode também subverter as determinações que o assujeitam. Trata-se de uma relação de poder-saber de maneira alguma pensada de um ponto de vista individual: “ao invés de uma dor, um modo de doer; de um desvario, um modo de desvairar; de uma trajetória um modo de traçar” (PACHECO, 2010, p.89). Guatarri (1992) pensa a subjetividade enquanto produção de instâncias individuais, coletivas e institucionais, assumindo um caráter polifônico. Desde a infância, há uma relação trans-subjetiva entre o sentimento de si e de outro, numa dialética dos afetos partilháveis e não partilháveis. A relação com a alteridade se dá, portanto, numa exploração processual da singularidade dos acontecimentos.

No ponto em que nos encontramos, a definição provisória mais englobante que eu proporia de subjetividade é: o conjunto que torna possível que instâncias individuais e-ou coletivas estejam em condições de emergir como território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesmo subjetiva (GUATTARI, 1992, p.15).

É nessa dimensão que é possível perceber o funcionamento de um arquivo poético tropicalista a partir da subjetividade de um sujeito do discurso, Gilberto Gil.

Nas discussões sobre as identidades híbridas, mostramos como o ponto de vista antropofágico-tropicalista pressupõe uma constante negociação com a alteridade no dinâmico processo de constituição das identidades nunca estanques, sempre se reconfigurando. Se essa característica constitui a singularidade do projeto tropicalista à luz dos debates no ambiente cultural-político brasileiro de final dos anos 1960, é preciso demarcar o núcleo poético como resistente a um outro risco tão sectário quanto as propostas de identidade fechadas nas

concepções do nacional-popular na arte militante. Trata-se do excesso de relativismo multiculturalista – tendência predominante a partir dos anos 1980 –, o que Mauro Maldonado (2004, p.67) classifica como “falso pluralismo”, tão pernicioso quanto a intolerância identitária. Se relações com base na dicotomia tolerância-intolerância buscam a supremacia do idêntico sobre o outro, o excessivo poder do neutro é igualmente um impedimento à abertura a esse outro. “A insistente retórica da diversidade cultural e de identidade traduziu-se num achado igualitarismo” (MALDONADO, 2004, p.67). Para Maldonado, o outro é presença viva autoimposta de maneira anterior à atribuição de sentido. A linguagem é a ponte de acesso à alteridade através de um “encontro que não é comunhão, mas separação” (MALDONADO, 2004, p.69). A alteridade só existe pela afirmação da diferença.

No viés antropofágico, o sujeito que devora escolhe o que incorporar e não deixa de afirmar sua diferença. A crítica ao relativismo multicultural observada por Maldonado (2004) encontra paralelo numa interessante revisão do conceito de subjetividade antropofágica tal qual foi formulado por Suely Rolnik (2010). A autora – seguindo os caminhos abertos por Michel Foucault e desenvolvidos por Deleuze e Guattari – utiliza a noção de subjetividade como um conceito mais plural do que identidade cultural, pelo risco da última resvalar para a ideia de “vontade de enraizamento” (ROLNIK, 2011, p.132). A subjetividade pressupõe um constante movimento por onde se pode perceber as relações micropolíticas, poderes e resistências, em última instância definidores dos embates macropolíticos. A produção de subjetividades assume, como vimos, uma dimensão coletiva. O sujeito se constitui na relação entre seu universo interior com o que lhe é exterior. Giorgio Agamben (2007) observa como a linguagem é o instrumento que ao mesmo tempo possibilita e dá os limites desse processo: “Uma subjetividade produz-se onde o ser vivo, ao encontrar a linguagem e pondo-se nela em jogo sem reservas, exibe em um gesto a própria irredutibilidade a ela” (AGAMBEN, 2007, 63).

A construção/desconstrução das subjetividades supõe uma constante negociação entre o mesmo e o diferente, por onde se dá tanto os regimes de assujeitamento quanto as estratégias de resistência e criação. Um jogo entre as modificações de um modo de pensamento e as mutações do mundo circundante. As noções de territorialização e de desterritorialização são usadas por Rolnik (2011) retomando Deleuze e Guattari, fundamentadas na ideia das cartografias: mapas móveis do movimento dos desejos e dos afetos. É a caracterização de um nomadismo psíquico cujo sentido é a busca de territorializações que, uma vez alcançadas, dão lugar a novas migrações para outras regiões do simbólico. A criação de uma obra de arte – como uma música ou um disco – é a

materialização de um território simbólico, agenciador da produção de subjetividades no escopo das influências exercidas pelo artista, a partir da circulação do discurso por ele produzido. Dar forma a esse nomadismo – inventar territórios – é uma das essências da prática artística, o sujeito poeta desenvolve a autopercepção do movimento dos afetos e a fidelidade a eles – antes mesmo das razões mercadológicas – é definidora da potência criativa do objeto artístico. Rolnik (2011) não trata de individualidades, mas de uma concepção de lugar/sujeito na tradição foucaultiana articulada com o imaginário próprio do universo da Psicanálise. Dessa forma, propõe a distinção entre o corpo visível e o corpo vibrátil. Enquanto o primeiro apreende a superfície do que é exterior ao sujeito – o que se dá a ver –, o segundo é sensível às vibrações, ao invisível sugerido pelos fluxos do desejo. A sociedade disciplinar tenta capturar esse fluxo numa estratégia de esvaziamento do corpo vibrátil, reduzindo-o à esfera do visível. É o que é possível perceber, por exemplo, nas subjetividades excessivamente influenciadas pelo discurso da mídia, em que o sujeito é capturado por simulacros dos próprios desejos, vagando de território em território numa carência nunca satisfeita que o faz consumidor, mas não criador. A captura das subjetividades pelo poético é fator de estimulação ao corpo vibrátil e pode funcionar como resistência à ordem consumista pela possibilidade de criação. O discurso poético, assim, se complementa na instância da recepção, acende a chama do vibrátil na produção de subjetividades.

O poder poético da arte: dar corpo às mutações sensíveis do presente. Torná- las apreensíveis participa da abertura de possíveis na existência individual e coletiva – linhas de fuga de modos de vida estéreis que não sustentam coisa alguma a não ser a produção de capital. Não será essa precisamente a potência política própria da arte? (ROLNIK, 2010, p.24).

Ao analisar a história mais recente do Brasil, Rolnik (2010) estabelece alguns padrões de subjetividades predominantes forjados nos anos da ditadura militar e ainda produzindo sentidos. A autora sugere categorias como “O militante em nós”, “o coronel em nós” e o “hippie em nós”. Viver no ambiente dos anos 1960, no Brasil, significa ser capturado por essas – e outras – subjetividades. Na figura simbólica do militante e do coronel, por exemplo, há o predomínio da fixação em territórios simbólicos. O primeiro por se fechar à sensibilidade do corpo vibrátil diante da verdade histórica da luta de classes. O segundo por tentar bloqueá-lo em nome da manutenção de uma identidade fixa: a ditadura que delimita as subjetividades aceitáveis. O hippie, ao contrário, faz da busca pelo invisível o seu sentido, abrindo-se a toda sugestão do corpo vibrátil. O conceito de subjetividade antropofágica utilizado pela autora no final dos anos 1980 buscava situar as experimentações da

contracultura brasileira nas décadas anteriores, sobretudo a partir da atualização da antropofagia oswaldiana pelo Tropicalismo. Esse tipo de subjetividade hippie-tropicalista- antropofágica se inscreve como resistência à sociedade disciplinar num contraponto à figura do “burguês” em sua versão hollywoodiana do pós-guerra, e busca sobreviver à truculência da ditadura militar. As principais características da subjetividade antropofágica, conforme Rolnik (2010), seriam a ausência de identificação absoluta com qualquer repertório, a desobediência às regras estabelecidas e a coragem da experimentação, “uma liberdade de hibridação (no lugar de atribuir valor de verdade a um universo em particular)” (ROLNIK, 2010, p.18).

Ocorre que essa política de produção de subjetividades antropofágicas foi incorporada e instrumentalizada pelo capitalismo financeiro transnacional a partir dos anos 1980, coincidindo inclusive com o fim dos regimes ditatoriais na América Latina e no Leste Europeu. Um processo que teria levado ao multiculturalismo neutro de que fala Maldonado (2004), um relativismo radical que dificulta a possibilidade de troca nas relações em nome de uma “forma”, uma aparência de incorporação das diferenças. A influência dessa cooptação pela sociedade disciplinar do caráter de resistência da subjetividade contracultural gerou, nas palavras de Rolnik, “uma antropofagia cafetinada”, resultando uma espécie de “alienação patológica” (ROLNIK, 2010, p.22). No Brasil, a tradição antropofágica foi um fator de radicalização do processo, criando uma adaptação soft ao ambiente neoliberal, da qual não escapou a própria geração dos anos 1960-1970. “O país provou ser um verdadeiro campeão atlético da flexibilidade a serviço do mercado. Aliciada em seu pólo mais reativo, essa tradição produziu o que chamei então de „Zumbis antropofágicos‟” (ROLNIK, 2010, p.22).

Há uma relação entre o pensamento de Rolnik e o duplo poder-saber tropicalista já analisado na crise entre a vivência poética e a sedução burguesa.

Muitos dos protagonistas dos movimentos das décadas anteriores caíram na armadilha: deslumbrados com a celebração e força de criação e de sua postura transgressora e experimental, até então estigmatizadas e confinadas na marginalidade, fascinados com o prestigio de sua imagem na mídia e seus altos salários, eles se entregaram à sua cafetinagem, tornando-se, em sua maioria, os próprios criadores dos mundos fabricados para e pelo capitalismo na sua nova roupagem (ROLNIK, 2011, p.18).

Já demonstramos como essa crise provocada pela incorporação do polo de rebeldia da contracultura pela sociedade disciplinar gerou um outro movimento do sujeito Gilberto Gil, uma criação de novos territórios simbólicos materializados nos álbuns Refazenda (com seu deslocamento da ideia de desbunde), Refavela (trazendo para a cena o

debate sobre a negritude na cultura brasileira) e Realce (a legitimação do desejo de diversão para todos). Gilberto Gil se tornou um artista pop, bem pago, mas isso se deu sem abrir mão da complexidade em sua obra, certa fidelidade aos apelos do corpo vibrátil, ao elemento poético. Um malabarista equilibrando o mercadológico com uma poética de reflexão sobre as contradições de seu tempo histórico.

É como se o sujeito-poeta buscasse sua subversão a partir da própria lógica de incorporação da resistência pela sociedade disciplinar. Se a resistência se torna poder, é possível engendrar novas resistências nas próprias malhas do poder, cuja bússola é a percepção dos movimentos do corpo vibrátil. Também nesse sentido se pode pensar a estratégia antropofágica. O álbum Realce (1980) – o terceiro da trilogia – é o que melhor permite perceber esse efeito. É o momento em que o próprio artista ganha seu primeiro disco de ouro e se torna uma das grandes expressões do pop nacional. O manifesto divulgado junto com o álbum Realce propunha: “Denominar o brilho anônimo /como um salário mínimo de cintilância/ a que todos têm direito/como a noite de discoteque após o dia do trabalho [...] como o domingo de futebol /após a semana na fábrica” (GIL, 1980)60.

A produção de subjetividades proposta em Realce é ao mesmo tempo tributária e deslocada tanto da formação discursiva “do militante em nós” – com sua busca de uma sociedade socialmente mais justa – quanto “do hippie em nós” – com sua postura hedonista, dionisíaca, do privilégio do desejo. Do militante, a ideia do acesso à saúde, à educação, à vida digna a todos; do hippie o reconhecimento de uma dimensão lúdica da existência.

A contradição entre o poeta seduzido pelo conforto burguês e os excluídos reaparece como regularidade na obra do artista. Em A novidade (parceria com Hebert Vianna, 1986), o título da canção dialoga com a expectativa do poeta explorar novos mundos simbólicos: espera-se dele a revelação do indizível, o novo. A letra faz referência à imagem do poeta/burguês feliz com a sedução da musa (“a sereia bonita”), mas em guerra não contra a fome – como era comum na tradição da arte militante – mas com o esfomeado. Uma fome que se revela também na disputa pelo objeto do desejo: a sereia. Reaparece o reconhecimento de outras fomes que não a de alimento, contemplada no “salário mínimo de cintilância” do manifesto Realce: A novidade era a guerra/ Entre o feliz poeta e o esfomeado/ Estraçalhando uma sereia bonita/ Despedaçando o sonho pra cada lado/ Ó, mundo tão desigual/ Tudo é tão desigual/ Ó, de um lado este carnaval/ Do outro a fome total.

60 Referência eletrônica, ausência de página.

A meta-reflexão sobre o fazer poético – da qual Metáfora é o exemplo mais forte – reaparece em Logos versus logo, de 1985. A letra aborda, de maneira crítica, dois lugares do sujeito poeta. De um lado, desvinculado da vida comum, numa reprodução da lógica da economia capitalista: E de outro, o poeta da revolução futura: Celebra-se, poeta que se é/ Durante um tempo a déia radical/ De tudo importar, se para o supremo ser/ De nada importar, se para o homem mortal/ Abarrotam-se os cofres do saber/ Um saber que se torne capital/ Um capital que faça o futuro render/ Os juros da condição de imortal/ (Mas a morte é certa!)/ [...] E o bom poeta, sólido afinal/ Apossa-se da foice ou do martelo/ Para investir do aqui e agora o capital/ No produzir real de um mundo justo e belo/ Celebra assim, mortal que já se crê/ O afazer como bem ritual/ Cessar da obsessão pelo supremo ser/ Nascer do prazer pelo social. O refrão busca um outro lugar do poético, o aqui e agora, o contemporâneo, nem tanto o imortal da academia, nem tanto o agente da revolução, mas o que faz da própria existência a obra de arte: Trocar o logos da posteridade/ Pelo logo da prosperidade.

A capacidade de dar forma ao movimento do desejo: agulha do real nas mãos da fantasia (A linha e o linho, Gilberto Gil) – constitui uma regularidade poética tropicalista. A própria maneira como as primeiras músicas de Caetano e Gil trouxeram o sabor de novidade no ambiente dos festivais e o deslocamento sugerido pela trilogia com o prefixo re são reveladores dessa característica associada à ideia da vanguarda: sinalizar e materializar os novos territórios do desejo para abandoná-los em seguida, quando sujeito e sentido não mais coincidem. É por onde o vibrátil adquire a qualidade de visionário. O funcionamento dos arquivos poéticos tropicalistas possui duas marcas constitutivas interligadas: a antecipação, a vocação por antever elementos dispersos nas práticas discursivas e a capacidade de não se fixar, fluir no movimento dos afetos e desejos. Uma vez concluída a territorialização (no processo que vai da composição das canções a sua gravação e circulação), há um movimento de exploração de novos territórios. Nesse processo, o elemento poético do artista é agenciador, arrasta consigo certa tendência do corpo vibrátil no meio social – sendo a mais pura tradução da subjetividade antropofágica em nós –, o mercadológico vem a reboque desse movimento vibrátil/visionário.

O fluir nas ondas dos desejos e dos afetos próprio da subjetividade hippie- tropicalista-antropofágica tem como efeito colateral a neutralidade cega causada pelo excesso de relativismo multicultural apontado por Maldonado (2004). Um risco do qual o Tropicalismo se safa diante da existência de um núcleo identitário, uma diferença afirmadora da alteridade tanto no interior do arquivo de brasilidade quanto no trânsito cultural

globalizado. O funcionamento do arquivos poético tropicalista é tributário de uma “ordem do olhar” que delineia um modo de existência da baianidade através do qual a diferença é incorporada, digerida. Não se trata, evidente, de uma baianidade fechada em seu centro, mas o centro a partir do qual ao mesmo tempo se hibridiza e se inscreve a particularidade poética no jogo discursivo no universo simbólico da brasilidade e no contexto internacional A busca pela alteridade na subjetividade tropicalista/antropofágica é a transformação de si a partir do ilimitado processo de movimento do desejo e dos afetos. O poético tropicalista se dá pela inscrição em um núcleo da baianidade a partir do qual se fazem as negociações simbólicas antropofágicas. É possível devorar o rock inglês, a africanidade, o reggae jamaicano, mas tudo isso se dá a partir de uma coerência, um núcleo. Sendo sempre diferente, o sujeito da arte Gilberto Gil é também o mesmo.

Numa de suas canções de maior sucesso, Gilberto Gil tematiza essa relação entre o desbravamento de novos mundos tendo por guia os desejos e afetos e a fidelidade a um núcleo imaginário/identitário. Em Aquele abraço, de 1969, o compositor canta: Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço/ A Bahia já me deu régua e compasso/ Quem sabe de mim sou eu - aquele abraço! Rolnik (2010, p.148), ao caracterizar a subjetividade tropicalista, observa como “em seus corpos, história e geografia são totalmente indissociáveis. Sabem que a geografia incorporal de seus afetos é inseparável da história factual de seus territórios”. O cruzamento entre história (a memória) e geografia (o acontecimento/ movimento) constitui a chave da poética tropicalista. Se a antropofagia é, como vimos, referência explicita no Tropicalismo, a baianidade é o centro do interdiscurso na expressão dos artistas, na medida em que se faz presente na sua formulação nem sempre de maneira consciente . A régua e o compasso são as medidas simbólicas do movimento dos afetos por novas geografias, instrumentais dados ao cartógrafo pela terra-mãe: Por mais distante/ O errante navegante/ Quem jamais te esqueceria, canta Caetano em Terra, de 1978. Um comentário feito por Gilberto Gil quando do acontecimento discursivo da música Domingo no parque nos ajuda a definir essa régua e esse compasso. Gil reconhece uma intenção no momento de compor a música de fazer algo que fosse próximo às narrativas de Dorival Caymmi, com seus pescadores entregues ao mar e à dor dos amores na terra (GIL in RENNÓ, 1996, p.81): “vou fazer uma música à la Caymmi, fazer de novo um Caymmi, um Caymmi hoje”, diz o compositor.

Temos de um lado um sujeito que não se fixa – sua arte é sempre um deslocamento – do rock ao baião, do samba ao reggae, do apontamento das injustiças sociais ao reconhecimento do prazer hedonista, do masculino ao feminino; e de outro a fidelidade a

um centro (uma relativa fixação). Giorgio Agamben (2009) associa o poeta ao contemporâneo a partir da ideia de Nietzsche a respeito da necessidade de uma desconexão e dissociação em relação ao presente.

Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido inatual; mas, exatamente, por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo (AGAMBEN, 2009, p. 58-59).

O contemporâneo, para Agamben, mantém os olhos fixos no seu tempo para ver nele o escuro, tentando neutralizar nas luzes as trevas. A medida para o filósofo não é o tempo cronológico, mas o devir histórico: “como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo e a criança na vida psíquica do adulto” (AGAMBEN, 2009, p. 69). Coincidir perfeitamente com o seu tempo é ficar na esfera do visível, deslocar é buscar o vibrátil,