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Formação/circulação/recepção discursiva: ler, ver, ouvir o arquivo hoje

DO DOMINGO DO PENSAMENTO AO CORPO MIDIÁTICO

1.4 Formação/circulação/recepção discursiva: ler, ver, ouvir o arquivo hoje

O conhecimento do novo é possível apenas na não verdade do velho.

[Agamben, 2012, p.177] O conceito de formação discursiva, base teórica das reflexões sobre o arquivo, ao mesmo tempo em que se constitui num dos principais alicerces da teoria do discurso, tem sido objeto de revisões, sofrendo, nas palavras de Guilhaumou, “metamorfoses em alguma coisa que não é sua negação” (GUILHAUMOU, 2007, p.106). Há, como vimos, um trajeto epistemológico partindo de uma concepção homogênea de formação discursiva para uma abordagem heterogênea, caminho esse percorrido não sem certa crise no uso do conceito. Mais do que uma mudança inscrita e restrita a um conceito, essa metamorfose implica em outros entendimentos do real e outras formas de fazer trabalhar as Ciências Humanas. A incorporação da heterogeneidade como constitutiva do conceito de formação discursiva é o que tem permitido à teoria se adaptar às demandas sociais na relação entre a estrutura e o acontecimento. Assim, buscamos – a partir da análise empreendida neste capítulo – um

trabalho final de reflexão sobre o conceito, bem como sua relação com as particularidades de nosso corpus: o arquivo de brasilidade da canção brasileira.

Já demonstramos como a noção-conceito de FD, desenvolvida em A arqueologia do saber por Foucault é apropriada por Pêcheux no momento inicial da Análise do Discurso, relacionando-a ao pensamento de Althusser, resultando, desse processo, numa conceituação homogênea, determinada por um exterior ideológico. A concepção homogênea de FD começa a ser relativizada em Semântica e discurso, quando Pêcheux (1995) propõe a ideia de interdiscurso, retomada de maneira mais operacional no trabalho de Courtine (2009a). O interdiscurso introduz a alteridade no centro do conceito de formação discursiva. “O próprio de toda FD é dissimular, na transparência do sentido que aí se forma [...] o fato de que isso fala sempre, antes, fora ou independentemente” (PÊCHEUX, 1995, p.147). Inicia-se, então, sobretudo no trabalho de Courtine (2009a), uma aproximação gradativa com a concepção original de FD em Foucault, já marcada pela relação de heterogeneidade perceptível na síntese do enunciado como um nó numa rede, irrompendo a partir de um domínio associado. As contribuições de Foucault, acrescidas das reflexões sobre o interdiscurso nos domínios teóricos de Pêcheux e Courtine, resultam no rompimento da visão fechada de formação discursiva. Essa revisão permite, como demonstra Maria do Rosário Gregolin, trabalhar “a linha tênue entre a regularidade e a instabilidade dos sentidos do discurso” (GREGOLIN, 2007b, p.156).

A concepção heterogênea da formação discursiva é indissociável da metodologia de análise do arquivo como o sistema geral de formação e transformação dos enunciados (FOUCAULT, 2004b, p.149-150). A formação discursiva, nesse contexto, reflete a dispersão dos lugares enunciativos, tornando mais complexa a construção das análises. Esse mecanismo leva Courtine (2009a) a definir as FDs como fronteiras que se deslocam, cuja força propulsora é a memória discursiva acionada pelo interdiscurso. É a partir, portanto, dessa concepção, resultante dos diálogos de Pêcheux com a obra de Foucault, e replicados na construção teórica de Courtine, que empregamos, nesta tese, o conceito de formação discursiva, articulando-o com as noções de interdiscurso (Pêcheux (1995); Courtine(2009a)), bem como de acontecimento discursivo, práticas discursivas e arquivo (Foucault (1995)), conforme demonstra a análise até agora empreendida.

A problematização da heterogeneidade como elemento constitutivo das formações discursivas é ao mesmo tempo sintoma de uma crise na sua aplicabilidade e caminho para atualizar o conceito no dispositivo teórico. Em seu último texto, O discurso: estrutura ou acontecimento, Pêcheux identifica uma “instabilidade radical” (GREGOLIN,

2007b, p.160) na formação/circulação dos discursos, procurando respostas ao momento histórico em que se intensificava os novos regimes de discursividades instaurados pelos meios de comunicação de massa e a espetacularização da vida pública. A consequência é o questionamento sobre a herança estruturalista do conceito. A ideia de formação discursiva sugeriria, nesse sentido, um descompasso com as modificações de um real, em que as formulações são logo desfeitas para darem lugar a outras, na ordem do excesso a que somos submetidos. “Assim, a insistência da alteridade na identidade discursiva coloca em causa o fechamento dessa identidade e, com ela a própria noção de maquinaria discursiva estrutural... e talvez também a de formação discursiva” (PÊCHEUX, 1997b, p.315).

O “talvez” é o signo que deixa em suspenso duas possibilidades teóricas: o trabalho de reformulação do conceito de formação discursiva ou o seu descarte diante do reconhecimento do prazo de validade vencido, na medida em que a noção de FD se refere, na essência, à concepção dos discursos como blocos homogêneos, determinados por um exterior ideológico. Só é possível, portanto, seguir aplicando o conceito de formação discursiva diante de uma revisão radical nos seus pressupostos. Assim, o trajeto epistemológico sugere uma inversão entre o primeiro momento da AD e o quadro atual. Do primado da homogeneidade para o extremo da heterogeneidade. Parte-se da estabilidade de um sistema de formação dos enunciados para chegar ao seu oposto, o rompimento das estruturas na circulação dispersa, fragmentada e descontínua dos discursos, colocando em questionamento a própria viabilidade do conceito.

A heterogeneidade ao mesmo tempo em que permite refletir sobre a relação entre o dentro e fora de cada formação discursiva traz o ingrediente da alteridade para o seu próprio interior. A dificuldade é fazer trabalhar essas derivas nas análises. Piovezani (2009) percebe uma insuficiência do conceito de formação discursiva observável em abordagens simplificadoras. “A heterogeneidade dos fatores e a diversidade dos aspectos que o discurso político contemporâneo congrega não poderiam, segundo cremos, ser satisfatoriamente compreendidos por meio da descrição de uma, duas ou mais formações discursivas”. (PIOVEZANI, 2009, p.216). Piovezani (2009), ao diferenciar a heterogeneidade da diversidade, sinaliza alguns desafios em relação à utilização do conceito. Sobre o primeiro elemento, a heterogeneidade, as reflexões teóricas permitem hoje sua aplicação sem cair na armadilha de uma simplificação maniqueísta de tendência homogeneizante (do último Pêcheux à Foucault e desse a Courtine não faltam subsídios para abordagens plurais da noção de formação discursiva, algumas análises de teor maniqueísta que ainda surgem em trabalhos de AD se devem mais a interpretações superficiais da teoria). O segundo elemento, a

diversidade, que revela um caráter histórico ligado à ordem do excesso e que tem sido objeto de debate no contínuo processo de construção teórica, faz-se ver também nos desafios relacionados à incorporação do imagético nas abordagens discursivas. O fluxo rápido e excessivo de conteúdos sincréticos em múltiplas plataformas midiáticas a partir dos anos 1980 torna mais complexa a identificação das formações discursivas tal como se davam, por exemplo, no final dos anos 1960. Há um caráter histórico relativo ao impacto da diversidade na teoria do discurso, como uma marca do excesso contemporâneo; enquanto, a heterogeneidade também diz respeito a uma construção teórica de natureza filosófica sobre a relação entre o mesmo e o diferente na teoria do discurso.

É possível, entretanto, fazer da dificuldade o salto, como se deu com a incorporação da noção de heterogeneidade no interior do conceito de formação discursiva. A diversidade e a descentralização dos discursos são tanto sintoma dos novos desafios enfrentados pelo analista, quanto elemento que revalida a atualidade e pertinência da ideia de formação discursiva. Romper com a necessidade de certa sistematização dos enunciados diversos e dispersos – que está na base da noção-conceito de formação discursiva – é ceder à ordem ideológica predominante que faz do excesso a principal estratégia de manutenção de uma homogeneidade capitalista, anulando a um só tempo a perspectiva histórica e o pensamento crítico. A diversidade de formações discursivas (cada uma heterogênea em relação a si mesma e às outras) é reveladora do movimento errante do sujeito e do sentido na contemporaneidade, mas negar a atualidade do conceito é ceder ao primado caótico da dispersão. Uma das principais contribuições de Foucault à teoria do discurso é a busca de regularidades, que nos parece ser a essência do conceito de formação discursiva. O instrumental metodológico que parte do enunciado à formação discursiva e desta ao arquivo permite abordar o discurso a partir da regularidade e dispersão, privilegiando o elemento histórico na sua relação com o acontecimento. Courtine (2009a, p.81), retomando o pensamento de Foucault, demonstra como a unidade da formação discursiva só existe – ainda assim de maneira relativa – na formação do enunciado, lá onde o sujeito se ancora (ou é ancorado) para formular seu enunciado. Limite tênue, a formação precede e se confunde com a transformação.

As mudanças nas formas de circulação e a diversidade de elementos presentes hoje nas discursividades ainda são subordinadas a esse momento capital, em que o sujeito se posiciona para sua formulação, sempre resultado de um jogo entre a busca de autonomia e a submissão à formação discursiva. É onde se dá, inclusive, o acontecimento discursivo. A tese de Courtine (2009a), na busca pela aproximação entre o conceito de formação discursiva em

Foucault e em Pêcheux, estabelece uma distinção entre o sistema de formação dos enunciados que determina “o que pode e deve ser dito” e o nível de uma sequência discursiva concreta: o eixo intradiscursivo da formulação (COURTINE, 2009a, p.83). O trabalho de Courtine (2009a) privilegiava naquele momento o enunciado verbal, mas prevalece, a despeito das transformações nas materialidades discursivas, essa relação entre o eixo do interdiscurso e o intradiscurso articulados através do conceito de formação discursiva. É um instrumental de análise que permite a prática de uma leitura histórica sustentada na (e pela) linguagem.

As mutações contemporâneas do discurso trazem dois novos desafios: considerar as materialidades sincréticas que fundem verbal e não verbal , e perceber as transformações do sentido advindas das novas formas de circulação. A incorporação do foco na circulação trouxe à tona algo que já era latente na formulação do dispositivo teórico no ambiente francês dos anos 1960: a relação próxima da Análise do Discurso com o estudo das mídias. As mudanças tecnológicas e seu impacto na circulação/recepção dos discursos impõem outros campos transdiciplinares para a AD. Maíra Nunes (2012) observa duas tendências históricas no estudo das mídias que repercutem nas referências teórico- metodológicas da Análise do Discurso. A primeira, de base marxista, concebe as mídias como mecanismos de alienação e reprodução da ordem econômica, sendo instrumentos de exploração das massas. É a concepção que resulta, num primeiro momento, na abordagem homogênea da formação discursiva. A segunda, adotada nesta tese, compreende-as como espaços heterogêneos de reprodução das relações de poderes e resistências. Se o marco do primeiro modelo de estudo do impacto das mídias na sociedade é a Escola de Frankfurt (onde, inclusive, se concebeu a noção de indústria cultural), no segundo, há uma variedade de escolas que se desenvolvem a partir dos anos 1960, compreendendo desde a vertente da Semiologia barthesiana na França, aos trabalhos do grupo de Umberto Eco na Itália. O ponto em comum é a incorporação das teorias semiológicas para o estudo das mídias, promovendo, assim, uma aproximação com o linguístico/discursivo: “Não se trata mais de pensar a comunicação como transmissão de informação, mas como produção de sentidos” (NUNES, 2012, p. 215).

A Análise do Discurso é, hoje, um campo em que o linguístico se funde aos signos imagéticos e sonoros. A condição de entremeio, característica da teoria, é também uma fronteira móvel que cada vez mais dialoga com os estudos midiáticos. O passo adiante do dispositivo teórico – que se impõe como desafio atual – é considerar o sujeito da recepção, tomado como um espaço de transformação/reelaboração dos sentidos. Courtine (2006), nos seus textos mais recentes, observa como é necessário deslocar a atenção da lógica de

produção para a recepção do discurso. O indivíduo que recebe uma mensagem não é um lugar vazio, um ponto neutro. “É essa adaptação teórica face à evolução do mundo atual que a análise do discurso não pode mais se furtar por muito tempo” (COURTINE, 2006, p.110). Priorizar na análise o movimento dos sujeitos – da constituição à recepção dos discursos – é incorporar novas formas de heterogeneidade ao conceito de formação discursiva, na medida em que há vínculo estreito, como vimos, entre a noção de formação discursiva e o momento de formação/formulação dos enunciados.

Um dos caminhos possíveis para buscar o sujeito da recepção é descrever e interpretar os mecanismos de identificação desse sujeito com os discursos que o circundam, no limite tênue entre a noção de identidade e de processos de subjetivação . O funcionamento do arquivo da brasilidade é indissociável das discussões sobre identidade nacional, algo que está no centro do discurso tropicalista. Assim, o exercício final deste capítulo é atualizar os debates da AD, dialogando com pensadores de outras áreas das ciências humanas para problematizar a relação entre globalização e identidades nacionais na contemporaneidade. É um passo indispensável para se chegar aos processos de subjetivação que constituem o principal ponto teórico do segundo capítulo. Seguindo os rastros do discurso tropicalista é da noção de antropofagia que partimos.