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Samba, Bossa Nova, geração dos anos 60: os discursos da canção

A VOZ QUE FALA NA VOZ QUE CANTA: METAMORFOSES DO CANCIONISTA

3.1 Samba, Bossa Nova, geração dos anos 60: os discursos da canção

O funcionamento dos arquivos da canção popular resulta do jogo entre as formações discursivas e a inscrição de subjetividades. Há historicamente a demanda para a singularidade do cancionista – compositores que além de elaborar os versos e melodias muitas vezes os interpretam (TATIT, 2002). A história da música popular brasileira é indissociável desses indivíduos que se tornam sujeito no ofício de dar forma à canção. Luis Tatit (2002, p.9) compara o cancionista a um malabarista cujos instrumentos de trabalho são a língua e a música. “Tem um controle da atividade que permite equilibrar a melodia no texto e o texto na melodia, como se para isso não despendesse qualquer esforço” (TATIT, 2002, p.9). Gesticulador intuitivo, às vezes lírico ou oportunista, o cancionista por vezes prioriza a maneira de dizer – a palavra entoada na linha melódica – em relação ao que é dito. Para se tornar um cancionista, é necessário ao sujeito o domínio de habilidades poéticas e musicais e uma capacidade de dialogar tanto com o mercado quanto com o meio social. O cancionista se vale ainda do próprio corpo – sobretudo a voz – para difundir sua produção semiótica.

O marco inicial da história da canção urbana (que se desdobra, como veremos, em passados mais remotos) é a gravação dos primeiros sambas na segunda década do século passado no Rio de Janeiro. Deriva daí o lugar social do cancionista, aquele que movimenta os arquivos políticos, poéticos, fazendo circular seu discurso nos dispositivos midiáticos. José Miguel Wisnik (WISNIK; SQUEFF, 1982) assinala a particularidade da música popular brasileira como fenômeno simbólico/social ao mesmo tempo integrando vários sistemas e os subvertendo.

Originária da cultura popular não letrada em seu substrato rural, desprende- se dela para entrar no mercado e na cidade; deixando-se penetrar pela poesia culta, não segue a lógica evolutiva da cultura literária, nem filia-se a seus padrões de filtragem, obedecendo ao ritmo permanente da aparição- desaparição do mercado, por um lado, e ao da circularidade envolvente do canto, por outro; reproduzindo no contexto da indústria cultural, tensiona muitas vezes as regras da estandartização e da redundância mercadológica. Em suma, não funciona dentro dos limites estritos de nenhum dos sistemas culturais existentes no Brasil, embora deixe-se permear por eles (WISNIK; SQUEFF, 1982, p.123).

O discurso da canção popular adquire, assim, uma maleabilidade que o faz transitar entre diferentes sistemas, se tornando, no decorrer do século XX, a manifestação de uma estética ao mesmo tempo refinada e popular.

A história da canção brasileira é tecida por acontecimentos discursivos, tais como as gravações dos primeiros sambas, o surgimento da Bossa Nova, a canção de protesto,

o Tropicalismo, a Jovem Guarda, dentre outros. Cada uma dessas formações tem seus próprios fundamentos estético/poéticos que se traduzem nos temas abordados, na interpretação, na escolha dos instrumentos que vão compor o arranjo das canções e refletem, nesse conjunto de elementos, “jogos de verdade” no ambiente cultural brasileiro dos diferentes períodos. Paul Veyne (2011), retomando Foucault, utiliza a metáfora do aquário para pensar os discursos, equivalente aos paradigmas de cada período histórico: “a cada época, os contemporâneos estão, portanto, tão encerrados em discursos como em aquários falsamente transparentes, e ignoram que aquários são esses e até mesmo fato de que há um” (VEYNE, 2011, p.25).

A espessura dos discursos está além dos clichês, das generalidades que marcam cada época. O trabalho genealógico busca, sobretudo, trazer à tona o que permanece obscuro, o domínio autônomo do “inconsciente do saber” (VEYNE, 2011, p. 30). A partir da metáfora dos aquários-discursos, podemos pensar a música popular brasileira como um arquivo marcado por três momentos que redefiniram – de maneira descontínua – tanto os limites quanto os alcances da canção popular: a constituição do samba como ritmo nacional no nascimento da indústria fonográfica no início do século XX; a Bossa Nova no final dos anos 1950 e a geração dos compositores dos anos 1960, surgida nos festivais de música transmitidos pela televisão, entre os quais figura Gilberto Gil.

Essas três momentos foram constituídos a partir da inscrição dos cancionistas- sujeitos do discurso que a cada tempo histórico redefiniram as formas de expressão da canção popular. Luis Tatit (2002, p.11) recorre ao conceito de dicção para tentar abarcar os variados elementos presentes na singularidade do cancionista: algo que engloba o projeto estético implicado em cada canção, cujo ponto de partida é o ato de compor complementados pelo arranjo e gravação. O compositor traz uma proposta, trabalhada pelo cantor e explicitada ou modalizada pelo arranjador na busca de uma dicção convincente. A música brasileira a qual se filia o tropicalismo se constitui, assim, num tipo de arquivo em que os três momentos marcantes – samba, Bossa Nova, geração dos anos 60 - correspondem a domínios de memória a partir das quais surgem as novas dicções, ao mesmo tempo tributárias dessa herança e deslocando-a na especificidade de cada sujeito do discurso da canção64. Tatit (2002) se dedica a estudar a dicção dos principais cancionistas brasileiros: seu modo de gravar, interpretar e, principalmente, compor uma canção. O estudo contempla vários compositores – Caetano

64 Não se trata de negar a importância e a riqueza de outros movimentos musicais que constituem a história da

música popular brasileira, mas de observar como , de um ponto de vista discursivo, o tropicalismo dialoga com esses três momentos considerados como marcos por Luis Tatit (2002).

Veloso, Dorival Caymmi, Chico Buarque, Luiz Gonzaga entre outros –, mas não inclui Gilberto Gil. Tarefa a que nos propomos no próximo capítulo. Ainda assim, o autor relembra uma intuição que teve Gil como protagonista e que seria um dos fundamentos de sua teoria – o de que a canção é um prolongamento da fala. Num show na década de 1970, o cantor baiano interpretava sambas de Germano Mathias com uma dicção muito próxima da fala: “texto coloquialissímo e inspiração cristalina. Era o Gil falando sobre os acordes percussivos de seu violão” (TATIT, 2002, p.12). A observação o levou a perceber o fio da fala entre as tensões melódicas de outras composições em que tal efeito se dava de maneira menos explícita.

O aspecto da fala camuflada na canção tem uma implicação nesse “lugar” social ocupado pela música popular no Brasil. A história da nossa música apresenta uma flutuação entre o canto musicado e o canto falado: desde as modinhas anotadas em partituras em convivência com o nascente samba feito de improviso no início do século XX; os seresteiros e os autores de marchinhas de carnaval de tom coloquial nas décadas seguintes; o samba canção e samba de breque; até a geração dos anos 1980, caracterizada de um lado por artistas como Djavan, Ivan Lins, que privilegiavam o canto musicado e, por outro, grupos como Rumo e Premeditando o Breque evidenciando o canto falado. A forma como o RAP frutificou por aqui evidencia também a convivência entre canto falado e musicado no nosso cancioneiro: “sem a voz que fala por trás da voz que canta não há atração nem consumo. O público quer saber quem é o dono da fala” (TATIT, 2002, p.14). Também não há política, poderíamos completar. É uma relação mais complexa do que o estilo canto falado ou musicado e está por trás, inclusive, da demanda pela voz dos compositores para opinarem sobre assuntos nacionais, sobretudo na ditadura. O poder-saber envolvido na atividade da música popular cria uma expectativa pela voz que fala camuflada na voz que canta, como se a primeira pudesse revelar algo do que o mistério da canção tateia. Um jogo com a plena participação dos compositores, como o provam as polêmicas já descritas: o discurso de Caetano por ocasião da apresentação de É proibido proibir, as inúmeras entrevistas dos cancionistas opinando sobre temas nacionais, além da participação nos comícios que pediam a volta das eleições diretas nos anos finais da ditadura. Essa relação entre a voz que canta e a voz que fala – a partir da teoria de Tatit (2002) – nos permitirá uma abordagem discursiva do fenômeno da canção popular.

A diferenciação do canto em relação à fala pode ser articulada com as noções de princípio da realidade e princípio do prazer de matriz psicanalítica: a fala vem de um real histórico e o canto tateia o caminho que vai do simbólico ao imaginário: “o imaginário é o registro das significações fixas, ao passo que o simbólico é o registro significante no qual as

significações não se estabilizaram” (KEHL, 2002, p.114). Desse movimento instala-se o princípio do prazer possível ampliando as possibilidades do real. A canção dá forma a um imaginário cujo lastro é o real. A Bossa Nova, por exemplo, criou um imaginário a partir da paisagem e dos costumes da zona sul carioca, atualizando e refinando a linguagem do samba. Do equilíbrio entre realidade e prazer na atividade do cancionista-malabarista, um outro conceito psicanalítico – o da sublimação – é adequado para entender o processo. A obra de arte, ao propor a ideia da fantasia compartilhada, instaura o paradigma da sublimação na criação artística (KEHL, 2002, p.158). O gozo estético presente na canção renova o jogo tenso entre a falta de sentido (princípio da realidade) e a impossibilidade de realização do desejo e o prazer da significação. “Triunfo do princípio do prazer transformado agora em prazer estético sobre a dureza real da morte e da vida” (KEHL, 2002, p.187).

Em ensaio publicado nos anos 1990, José Miguel Wisnik (2004) postula que através da música se constitui no Brasil

uma nova forma de „Gaia ciência‟, isso é um saber poético-musical que implica uma refinada educação sentimental [...] mas, também, „uma segunda e mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais ingênua e cem vezes mais refinada do que ela pudesse ter sido jamais‟ (a frase é de Nietzsche na abertura d‟Gaia Ciência) (WISNIK, 2004, p.218).

A música brasileira ao mesmo tempo sinaliza a cultura do país e é capaz de exportar símbolos de brasilidade não pitorescos ou folclóricos. O saber alegre é permeado pela “provisoriedade na satisfação e satisfação na provisoriedade” (WISNIK, 2004, p.224), ligando a música ao dinamismo dos acontecimentos. Como nos versos de Realce (Gilberto Gil): Se a vida fere/ Como a sensação do brilho/ De repente a gente brilhará; ou numa das faixas do disco de Gil e Caetano em celebração aos 25 anos do Tropicalismo, em que se canta: o samba é o pai do prazer/ o samba é filho da dor/ o grande poder transformador (Desde que o samba é samba, Caetano Veloso); a canção é respiro da resistência, como um campo de satisfação possível no cotidiano. Uma história da brasilidade vibra entre as ondas sonoras e as palavras enunciadas na língua aveludada do canto.

Embora o saber alegre tenha antecedentes, como veremos, na difusão da modinha no império e na irrupção da canção urbana no início do século XX, há um novo lugar social ocupado pela música popular a partir da Bossa Nova que deságua no Tropicalismo. Algo que levou Caetano Veloso no auge do movimento liderado pelos baianos a falar em “linha evolutiva”, uma ilusão de continuidade perceptível na forma como os compositores das novas gerações dialogam com as antigas. O sucesso internacional da Bossa

Nova foi o propulsor dessa ambição potencializada na geração dos anos 1960. A música Chega de saudade, gravada em 1958, foi decisiva, como vimos, para a inspiração de compositores como o próprio Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque, por ter instaurado ao mesmo tempo um nível de sofisticação harmônica e melódica aliada ao tom despretensioso e coloquial nas letras e interpretação que abriram novo campo de possibilidades para a atividade da canção no Brasil. A linha evolutiva sinaliza ao mesmo tempo para um comprometimento com a história da canção e a pretensão de, através dela, chegar a formas poético-políticas que dessem conta da experiência de ser brasileiro.

O gesto da Bossa Nova é contido. Escapa tanto à vontade de potência do tecnicismo jazzístico quanto à vulgarização populista. A batida do samba incorporada ao violão de João Gilberto, seu canto sutil que rompeu com o estilo vozeirão dos cantores de bolero, as letras descrevendo a beleza feminina no cenário da zona sul carioca, fazem com que a bossa se torne “uma promessa de felicidade” realizada na canção (WISNIK, 2004, p.224). Wisnik retoma um enunciado de Caetano Veloso – “o Brasil precisa chegar a merecer a bossa nova” (WISNIK, 2004, p.224) – por reconhecer no movimento musical da zona sul carioca um otimismo em que a aparente ingenuidade revela, antes, sabedoria, onde estão resolvidos provisoriamente todos os males do mundo. O oposto do que encontraremos no Tropicalismo com seu “pessimismo alegre”, conforme atribuição do próprio Caetano Veloso, se referindo à forma como o movimento protagonizado por ele e Gilberto Gil expõe e alegoriza as contradições do país. “Otimismo (trágico) e pessimismo (alegre) são cifras de uma relação ambivalente com o destino brasileiro que a canção sustenta na frágil oscilação entre a palavra cantada e a palavra falada” (WISNIK, 2004, p.225).

A voz que fala, para Tatit, interessa-se pelo que é dito, enquanto a voz que canta, pela maneira de dizer. “A voz articulada do intelecto converte-se em expressão do corpo que sente” (TATIT, 2002, p.15). No princípio entoativo permanece, entretanto, a marca da fala no canto. A natureza da voz que fala é efêmera, tem um caráter utilitário (o vínculo é, como dissemos, com o princípio da realidade): não se estabiliza, não se repete e nem tem autonomia. Sua expressão se dá entre os recortes da realidade e os recortes fonológicos (TATIT, 2002). O canto dá passagem à forma fonológica a fonética. Há uma estabilização em movimentos cíclicos, ritualísticos. Dessa relação, depreende-se o poder da canção, capaz de “aliviar as tensões do cotidiano, substituindo-as por tensões melódicas que só inscrevem conteúdos afetivos ou estímulos somáticos” (TATIT, 2002, p.16). O ouvinte cria uma relação de afetividade relacionando a música à sua memória pessoal, muitas vezes de forma involuntária.

É porque existe a voz que fala na voz que canta que há um dinamismo singular na forma como as práticas discursivas se refletem e são transformadas no campo da canção. No outro extremo, os elementos da musicalidade – a afinação, o timbre da voz que canta – penetram em territórios muito sutis de construção no simbólico, sítios de significação potencialmente lúdicos e capazes de sublimar a relação do sujeito com o seu desejo. A voz que canta abre o caminho para a voz que fala e é nesse processo que o saber alegre se torna poder. É por onde, inclusive, o gesto tropicalista se tornou uma ameaça à ditadura militar, com Caetano e Gil exilados na Europa. A canção como poder de agenciamento de subjetividade: tanto mais forte quanto mais ela transforma em linguagem sedutora práticas discursivas dispersas no social.

A relação entre a voz que fala e a voz que canta já supõe um sujeito em trânsito equilibrando o que tem a dizer com o modo de dizer. É o lugar simbólico ocupado pelas posições do autor e do intérprete (que no caso de Gil coincidem na maioria das vezes). Essa relação não escapou aos temas de inspiração do compositor. Em O compositor me disse, música composta por Gilberto Gil para Elis Regina em 197465, o tema é a voz que canta: O compositor me disse que eu cantasse distraidamente/ Essa canção/ Que eu cantasse como se o vento soprasse pela boca/ Vindo do pulmão/ E que eu ficasse ao lado pra escutar o vento jogando as palavras/ Pelo ar/ O compositor me disse que eu cantasse ligada no vento/ Sem ligar/ Pras coisas que ele quis dizer/ Que eu não pensasse em mim nem em você/ Que eu cantasse distraidamente como bate o coração/ E que eu parasse aqui/ Assim. Em Febril, Gilberto Gil tematiza sobre a demanda pelo público (na recepção do discurso) pela voz que fala: Veio gente me pedir uma esmola/ Veio gente reclamar uma escola/ Veio gente me aplaudir/ Veio gente vaiar/ Veio gente dormir nas cadeiras/ Veio gente admirar meu talento/ Veio gente adivinhar meu tormento/ Veio gente me xingar/ Veio gente me amar/ Veio gente disposta a se matar por mim/ E eu cantava aquela música, aquela música/ Alucinação/ Como se eu fosse um punhado de gente/ E aquela gente ali, não/ Como se o salão repleto fosse um deserto/ E eu fosse mil/ Mil troncos de árvores velhas/ Árvores velhas de pau-brasil.

A abordagem de Gil em Febril e em O compositor me disse demonstra como a dualidade entre a fala e o canto se resolve mais no campo do inconsciente (isso e aquilo) do que no do supereu (isso ou aquilo) (KEHL, 2002, p.184). De um lado uma mensagem, da outra o grão da voz. A abrangência discursiva da música popular brasileira depende da identificação da voz que fala na voz que canta, mas o gozo estético – o prazer da significação

– se dá pela conjunção entre o que é dito e a maneira de dizer. A demanda pela voz que fala é sintoma do desejo de estender a satisfação provisória ao princípio da realidade, prolongar o efeito da canção. Articular a voz que fala na voz que canta é, portanto, algo inerente ao oficio do cancionista e determinante na posição-sujeito ocupada por ele na sociedade brasileira, cujo entendimento demanda um recorte histórico mais amplo, considerando, sobretudo, a construção de uma rítmica particular da brasilidade.

3.2 O recado da síncopa: da formação inconsciente à formação social

A música popular brasileira resulta de trocas no ambiente urbano, sobretudo no Rio de Janeiro, cuja consequência mais difundida é o samba, como o primeiro ritmo nacional a conquistar relevância mercadológica abrindo caminho para outros gêneros. Esse fenômeno é responsável, como dissemos, pela constituição de um novo lugar institucional no meio social brasileiro ligada aos setores populares, representada pela figura do cancionista– aquele que fala / canta aspectos da vida cotidiana.

Luis Tatit (2004), num texto em que se propõe a retomar a história da música no Brasil no século XX, sinaliza um aspecto característico da canção que torna possível perceber as relações entre a voz que canta e a voz que fala. A canção brasileira tem sua fonte na oralidade popular. O compositor se apropria da linguagem das ruas, transformada em melodia, para ocupar um espaço social de enunciabilidade. O canto é, como vimos, uma dimensão potencializada da fala. As leis da fala interagem com as da música na busca da compatibilidade entre melodia e letra. Historicamente, a música brasileira foi utilizada pelos compositores para mandar “recados” seja no universo da cultura caipira , nas tradições populares do nordeste ou no nascente samba.

O grande feito – sempre intuitivo – dos sambistas, maior que a estabilização da sonoridade, foi o encontro de um lugar ideal para manobrar o canto na tangente da fala [...] Desse modo, preparavam suas canções para a gravação, mas não deixavam de usá-las como veículo direto de comunicação: mandavam recados aos amigos e desafetos, criavam polêmicas e desafios, faziam declarações ou reclamações amorosas, introduziam frases do dia-a- dia, produziam tiradas de humor, “dizendo” tudo de maneira convincente, com as inflexões entoativas adequadas e, no entanto, conservando a musicalização necessária à estabilidade do canto (TATIT, 2004, p.42-43). O canal entre a voz das ruas e o espaço midiático é potencializado ainda por uma característica muito particular da música popular. As canções são repetidas, retomadas, enunciadas em diferentes momentos históricos e contextos, desde que se inscrevam na

memória. A música popular se beneficia dessa particularidade, a poesia das letras cantadas transita pelo tempo histórico, retorna com um sentido diverso do original. Novos intérpretes e outros contextos históricos dão novos sentidos aos enunciados. A canção se torna, assim, também espaço de resistência que, por vezes, sobrevive às investidas populistas (como no Estado Novo) ou marxistas (como nos anos 60) e até mesmo capitalistas de moldá-la por uma ideologia dada a priori. A capacidade da música popular brasileira de ser um “recado das ruas” se deve à forma como desde o início da colonização brasileira se tornou um espaço de mediação entre os vários universos culturais formadores da brasilidade. A inquietação sobre o discurso da canção tem sido responsável pelo alargamento do período histórico: inquirir as relações entre música popular e cultura brasileira desde o início da colonização, esforço que, por vezes, resulta “mais de um simulacro construído por historiadores do que de provas documentais” (TATIT, 2004, p.19). É preciso percorrer esse caminho, ainda que de forma breve, para buscar as pistas do que procuramos: a constituição do cancionista no meio social.