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DO DOMINGO DO PENSAMENTO AO CORPO MIDIÁTICO

1.3 Tropicalismo e arquivo de brasilidade

Procuramos articular, nas páginas anteriores, dois acontecimentos que se deram no mesmo tempo histórico, porém em geografias diferentes: a emergência do Tropicalismo no universo midiático-artístico brasileiro, e da Análise do Discurso no ambiente das Ciências Humanas no contexto francês. Como exercício final de encerramento desse capítulo, cumpre- nos um duplo esforço de atualização: situar contemporaneamente a AD diante das mudanças históricas e das materialidades do discurso e pensar as transformações no discurso da brasilidade a partir do Tropicalismo.

A forma de empreender esse desafio é através da busca por relacionar o Tropicalismo com o que denominamos arquivo de brasilidade a partir do conceito de arquivo em Foucault (2004b). Como o movimento dos artistas baianos se inscreve nesse arquivo, procurando perceber as particularidades de Gilberto Gil? É um jogo que se dá na memória presente, tanto no acontecimento tropicalista quanto nos seus desdobramentos mais de 40 anos depois. São dois domínios que se relacionam como fios entrelaçados numa rede: a memória agenciada pelo Tropicalismo no momento de sua formulação e o próprio Tropicalismo enquanto memória atualizada na contemporaneidade. É o mecanismo que faz funcionar o arquivo de brasilidade a partir do Tropicalismo e é ele que tentaremos apreender para melhor situar o trânsito do sujeito do discurso Gilberto Gil.

Para isso, valemo-nos, sobretudo, da atualidade das contribuições de Foucault aos estudos do discurso. É necessário, ainda que de forma breve, situar os desafios teóricos atuais da Análise do Discurso para perceber a forma como as contribuições do filósofo dão conta de embasar as demandas contemporâneas. Já observamos como os textos finais de Michel Pêcheux promovem uma aproximação crescente com as ideias de Foucault: na concepção da heterogeneidade como constitutiva de toda formação discursiva, no distanciamento crítico em relação às leituras marxistas de Althusser, na mudança de perspectiva em relação à história, contemplando também os discursos cotidianos. São esses textos de Pêcheux – mais próximos de Foucault –, em conjunto com a produção do autor de A arqueologia do saber que constituem, desde o início do trabalho, o dispositivo teórico de nossa análise.

na medida em que se fundamenta nos diálogos de Pêcheux com a obra de Foucault e avança na proposta de atualizar a teoria à dinâmica da história posterior ao desaparecimento dos dois pensadores. A forma como Courtine partiu da análise do discurso comunista francês (nas suas palavras, “a autopsia da língua de madeira” (2011a, p. 149)) para a problematização das mudanças nos regimes dos discursos políticos contemporâneos, a tarefa de formular a história do rosto e do corpo, exprimem uma trajetória intelectual que dialoga com o passado e abre possibilidades futuras para os estudos do discurso. É preciso, observa Courtine, manter a atenção aos textos fundadores da AD, mas também é necessário cuidado na repetição desses pressupostos ao infinito, “porque as condições históricas e teóricas mudaram, porque o objeto empírico, o próprio discurso, transformou-se” (COURTINE, 2011a, p.14). É uma mudança simbolizada, como vimos, pela passagem da língua de madeira para a língua de vento, ressignificada por Courtine (2011a) como discurso líquido.

Quanto a mim, eu já lhe era sensível, visto que eu passaria a maior parte de meu trabalho sobre o discurso durante os anos 80 a desenvolvê-lo, empenhando-me em compreender como os discursos “sólidos” haviam sido substituídos por discursos “líquidos”, conforme a fórmula de Zygmunt Bauman22, que, nesse aspecto, acredito ser bastante feliz e que emprego

atualmente para nomear o que outrora se designava como as línguas de vento (COURTINE, 2011a, p. 148).

Courtine (2006, p.39) observa como as mudanças nos discursos políticos, sobretudo a partir da queda do muro de Berlim nos anos 1980 – período de desmoronamentos ideológicos coincidindo com mutações tecnológicas que interferem nas formas de circulação- recepção dos discursos –, fizeram da AD uma paisagem teórica em ruínas. Nos 20 anos que separam a constituição da AD pecheutiana da crise do socialismo real, a Análise do Discurso passou do interesse por corpora de discursos doutrinários ou institucionais para a história social do texto. Essas mutações fazem da AD um território de “múltiplas tensões” (COURTINE, 2006, p.44), que se revelam nas descontinuidades.

Não há um avançar homogêneo da teoria. No prefácio do livro “Verbo, Corpo e Voz” de Carlos Piovezani, Courtine (2009b, p. 11) demonstra como os ecos do pensamento de Pêcheux são mais vivos hoje no Brasil do que na França. Na Europa, a teoria se distancia da história ao se gramaticalizar num processo que expõe “a derrocada da dimensão autocrítica da AD em benefício de sua consolidação disciplinar” (COURTINE, 2009b, p.12). Assim, a AD no Brasil deverá fazer escolhas, nos diz Courtine, tanto na triagem das referências

francesas quanto na necessidade de abrir caminhos que respondam às condições históricas e teóricas de nossa geografia e momento. Courtine aponta o principal desafio atual: a impossibilidade de limitar a análise das palavras quando as imagens do homem público, os signos corporais produzem os efeitos de verdade na ordem líquida dos discursos.

Essa ampliação dos signos discursivos para além das palavras tem motivado nos últimos anos, no Brasil, um rico debate entre pesquisadores filiados à Análise do Discurso de linha francesa23. Não é nossa prioridade nesse trabalho aprofundar essa discussão. Gostaríamos, entretanto, de considerar algumas conclusões que parecem hoje quase consensuais tanto para Jean-Jacques Courtine, quanto para alguns pesquisadores brasileiros que trabalham com Análise do Discurso francesa de orientação pecheutiana. Enfatizamos há pouco a pertinência do método arquegenealógico de Foucault para se pensar não só a inscrição tropicalista no arquivo de brasilidade, como também os deslocamentos do sujeito a partir da experiência protagonizada por Gilberto Gil. Essa opção metodológica encontra sua validação em Courtine (2011a), ao perceber a atualidade da noção de enunciado.

Tive a intuição de reler a Arqueologia do saber, obra sobre a qual eu havia despendido grande atenção, mas relê-la diferentemente, permanecendo mais próximo de Foucault e mitigando a leitura dos pensadores lingüistas dos quais me vali e com os quais estabeleci um crivo que infligi a Foucault, quando eu confundia, de modo demasiadamente voluntário, o enunciado foucaultiano com um fragmento de linguagem verbal (COURTINE, 2011a, p. 151).

A concepção de enunciado para Foucault transcende, portanto, o elemento linguístico, sem deixar de incorporá-lo.

É uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles “fazem sentido” ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita) (FOUCAULT, 2004b, p.98).

Em A arqueologia do saber, Foucault (2004b) relaciona e aproxima o conceito de enunciado ao de arquivo. Se o primeiro é, como foi dito, o átomo do discurso, o segundo

23 Referimo-nos mais especificamente aos grupos Labor, da Universidade Federal de São Carlos, coordenado

pela Profa. Dra. Vanice Sargentini; e Geada, da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Araraquara, coordenado pela Profa. Dra. Maria do Rosário Gregolin. Nos anos 80, Courtine sugeriu, de maneira breve, a noção de Semiologia Histórica para dar conta de materialidades imagéticas no discurso. Embora reconhecendo a pertinência da abordagem, não temos interesse em utilizá-la neste trabalho pela razão evidenciada pelo próprio Courtine anos depois: o conceito de enunciado em Foucault não é estritamente linguístico, e pode dar conta dessas outras materialidades.

tem sua consistência a partir da positividade dos enunciados reunidos num sistema instável e poroso: o arquivo. Os enunciados se agrupam em formações discursivas organizadas sob a forma de arquivo, cuja característica é ser, ao mesmo tempo, depositário da memória e o mecanismo capaz de tornar os discursos enunciáveis. O arquivo não é, assim, matéria inerte, onde se preservam os conhecimentos, epistemes, culturas, saberes, mas é o próprio mecanismo da enunciabilidade em que as formulações atualizam dada memória. Trata-se do conjunto de regras que determinam o aparecimento ou apagamento de enunciados, o discurso efetivamente produzido em dado período e que continua a produzir sentidos no processo histórico, como acontece com o Tropicalismo.

O mecanismo de funcionamento do arquivo pode ser melhor elucidado com base nos conceitos de interdiscurso e intradiscurso (COURTINE, 2009a). O interdiscurso, como instância de constituição do enunciado, refere-se ao domínio de saber de determinada formação discursiva. Há sempre um “já dito” alhures em toda formulação; no momento em que o sujeito se coloca no enunciado, agencia uma instância da memória. O lugar do interdiscurso é denominado por Courtine (2009a) como eixo vertical. Já o intradiscurso se associa ao eixo horizontal em que os objetos desse saber são atualizados, na instância da enunciação. A relação intrínseca entre interdiscurso e intradiscurso pode melhor ser percebida a partir da noção de pré-construído. De acordo com Courtine (2009a), o termo pré-construído foi introduzido por Paul Henry e designa uma construção anterior à enunciação que marca a existência de um descompasso e uma indissociabilidade entre o interdiscurso (lugar de constituição do pré-construído) e o intradiscurso (lugar da enunciação por um sujeito). “Trata- se do efeito discursivo ligado ao encaixe sintático: um elemento do interdiscurso nominaliza- se e inscreve-se no intradiscurso sob a forma de pré-construído, isso é, como se esse elemento já se encontrasse ali” (COURTINE, 2009a, p.74). É na relação do enunciado com o arquivo que se situa, portanto, o domínio de saber de uma formação discursiva, o eixo vertical.

Há, como se sabe, uma memória dos modernistas paulistas no Tropicalismo, sobretudo Oswald de Andrade. São variadas as redes que ligam o Tropicalismo a Oswald de Andrade. Gostaríamos de realçar, entretanto, a forma como a antropofagia, concebida por Andrade (2011) se transforma na síntese da estratégia tropicalista. A proposta antropofágica é canibalizar simbolicamente a cultura estrangeira pelo ponto de vista do elemento indígena (que estava aqui antes da chegada dos colonizadores). O Manifesto Modernista dialoga com a teoria freudiana – totem e tabu –, com o marxismo, e se coloca numa posição antagonista em relação à orientação étnica de outra vertente modernista: o grupo Verde–Amarelo, que valorizava o folclore e o elemento indígena como resistência ao estrangeiro. “As migrações. A

fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os conservatórios e o tédio especulativo” (ANDRADE, 2011, p. 27). O que está em jogo na antropofagia é a relação com o colonizador, o mundo civilizado e a busca de uma identidade possível brasileira para além do purismo ancestral (o bom selvagem) ou a subserviência da incorporação acrítica da cultura europeia. O sujeito antropofágico não busca restituir uma pureza perdida e substitui a mimésis da civilização europeia pela interiorização das influências externas de um ponto de vista estrategista, assimilando o que lhe interessa e eliminado o que não lhe diz respeito. É uma visada filosófica que pressupõe uma identidade em constante mutação, um sujeito em processo, estando, nesse sentido, à frente do seu tempo.

O Tropicalismo apropria-se, como sabemos, do conceito de antropofagia oswaldiano, fazendo dele sua estratégica inaugural. Os tropicalistas atualizam a ideia de antropofagia para legitimar a opção política-estética de fundir cultura popular e cultura de massa, e fazem dessa mistura a base discursiva na rede de signos que envolvem letras de canções, arranjos, signos visuais; ao fazê-lo, expõe o distanciamento entre o real da língua e da história no cancioneiro brasileiro militante. A relação colonizador/colonizado, inspiradora da antropofagia, é atualizada nos anos 1960 para a dicotomia imperialismo/culturas nacionais latino-americanas. A antropofagia recriada no Tropicalismo se apropriava dos símbolos imperialistas – a indústria cultural, a Coca-Cola – para articulá-los/incorporá-los numa chave da brasilidade híbrida. O que se dava como possibilidade filosófica no manifesto de Oswald de Andrade aparece como aplicação estratégia norteadora do fazer artístico no movimento liderado pelos artistas baianos.

É uma relação interdiscursiva cujas marcas estão na materialidade dos enunciados, na medida em que encontramos referências textuais a Oswald de Andrade na já comentada letra de Geléia geral (Gilberto Gil e Torquato Neto): alegria é a prova dos nove/ [...] Pindorama, país do futuro. Outro acontecimento que remete à presença de Oswald no Tropicalismo é, como vimos, a primeira encenação do Rei da vela por José Celso Martinês Correa, em 1967, 34 anos depois do escritor modernista a ter escrito. Rei da vela reflete a opção política de Oswald pelo comunismo posterior ao Manifesto Antropofágico. A peça explora personagens emblemáticos do início da urbanização brasileira e refletem o engajamento de Oswald com o comunismo, posterior ao Manifesto Antropofágico: a elite agrária, industrialização incipiente, agiotagem, subserviência e resistência ao mundo civilizado europeu. A dicotomia entre o selvagem tropical e o civilizado europeu perpassa a obra e trajetória de Oswald e reaparece no Tropicalismo como síntese complexa das contradições, identificações da brasilidade.

Há múltiplos acessos do Tropicalismo ao arquivo de brasilidade, mas a antropofagia constitui-se, como temos enfatizado, no principal, principalmente pelo aspecto estratégico do conceito oswaldiano na práxis tropicalista. Nosso recorte neste capítulo não aprofunda as relações do movimento baiano com a história da música popular brasileira, a importância desse assunto justifica, no nosso entendimento, um tratamento específico no terceiro capítulo. O que temos buscado apreender na descrição-interpretação do gesto tropicalista é a rede de estratégias que ligam o movimento a várias esferas da vida cultural, acadêmica, midiática brasileira. Interessa-nos, nessa perspectiva, um exercício senão de conceituação, mas de apontamentos do que entendemos por arquivo de brasilidade.

A noção de arquivo de brasilidade sugere uma ilusória exaustão cujo risco seria tornar o conceito inoperante. É preciso recortá-lo, algo que se dá nas demandas específicas de cada trabalho preocupado em pensar a história brasileira, a produção de identidades a partir da ideia de brasilidade de um ponto de vista discursivo.

O arquivo não é descritível em sua totalidade; e é incontornável em sua atualidade. Dá-se por fragmentos, regiões e níveis, melhor, sem dúvida, e com mais clareza na medida em que o tempo dele nos separa (FOUCAULT, 2004b, p.148).

Eis porque optamos por enfrentar no início desta tese o acontecimento tropicalista, e não o mandato de Gilberto Gil à frente do Ministério. A escolha se deve tanto à complexidade e importância do Tropicalismo, quanto à relativa distância dos 40 anos que nos separam da década de 1960. Esse breve intervalo histórico parece suficiente para entender a dinâmica do Tropicalismo no arquivo de brasilidade, tanto as condições de sua enunciabilidade – que acreditamos ter explorado até agora –, quanto seu funcionamento a ser buscado nas páginas seguintes, sobretudo no segundo capítulo.

O principal aspecto que rege o arquivo de brasilidade são os diversos discursos sobre a experiência de uma identidade brasileira possível, construída no processo histórico e mutante por conta desse mesmo processo. Massa disforme e dispersa de enunciados. Arquivo que reúne tanto a história dos grandes acontecimentos, como as micro-histórias. Discurso poético, midiático, acadêmico, literário, etc. Regime linguístico e não linguístico, toda uma memória iconográfica das pinturas e artes plásticas, a história do cinema, da canção popular, a constituição do samba, toda uma antologia de corpos discursivos no futebol. A soma das manifestações culturais e religiosas a partir do sincretismo. Todo enunciado que tematiza e atualiza alguma memória sobre a experiência de ser brasileiro aos nossos olhos e a partir do

olhar estrangeiro. O discurso do colonizador sobre o colonizado e o inverso. Cada uma dessas formações discursivas, e outras que escapam à vã e estéril tentativa de enumerar a exaustividade dos arquivos. A possibilidade do arquivo de brasilidade sugere, antes, uma metodologia de análise histórico-discursiva a partir do pensamento de Foucault: aproximar a Análise do Discurso da história brasileira pelo funcionamento do arquivo, procurando ver enunciados que são retomados, esquecidos, e estar atento aos acontecimentos que desestabilizam o processo histórico, mirar as descontinuidades, não os universais, buscar uma abordagem capaz de refletir um olhar discursivo sobre o processo histórico que vem nos constituindo como brasileiros.

Tomá-lo como um grande baú da memória sobre a brasilidade é desprezar o que no arquivo é mais vivo: a forma como essa memória é atualizada nos diferentes momentos históricos, os movimentos que trazem, do fundo para a borda, enunciados até então esquecidos; ou fazem o contrário: empurram para o fundo o que até ontem estava na ordem do dia do discurso. Mais do que inventariar essa espécie de herança simbólica, o método arqueológico de Foucault procura perceber o funcionamento do arquivo. História heterogênea de apagamentos e acúmulos. É a esse amplo e inapreensível universo que nos referimos como arquivo de brasilidade.

O arquivo é, pois, a garantia de memória – ao mesmo tempo em que é por ela garantido – não da memória cognitiva, consciente, controladora de si e dos outros como querem vertentes da psicologia e da pedagogia, mas daquela que é responsável pela manutenção da tradição, dos aspectos culturais, dos conhecimentos que herdamos, saberes esses – muitas vezes anônimos – que, ao permanecerem, se transformam, ao serem lembrados, são esquecidos (CORACINI, 2005, p. 601).

Como a heterogeneidade é constitutiva de toda formação discursiva, o arquivo de brasilidade também tem sua zona de fronteira em relação a tudo o que não é brasilidade, a relação com outro, a alteridade, onde se situa, como veremos, o deslocamento suscitado pelo Manifesto Antropofágico em 1928 e pelo gesto tropicalista em 1967-1968. A identidade se constitui pela diferença. “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” (ANDRADE, 2011, p.27). É através dessa heterogeneidade constitutiva que melhor se pode ver a movimentação do arquivo.

Na profusão de enunciados sobre a brasilidade, existem aqueles que retornam em diferentes momentos históricos em novas enunciações. Esses são uma espécie de núcleo do arquivo de brasilidade. É a eles que a AD brasileira deve se voltar, como sugere Courtine

(2011a), para buscar nos acontecimentos discursivos o movimento da história. “Não basta a demarcação dos antecedentes para determinar uma ordem discursiva: ela se subordina, ao contrário, ao discurso que se analisa, ao nível que se escolhe, à escala que se estabelece” (FOUCAULT, 2004b, p.161). Tarefa não menos facilitada diante da abrangência do Tropicalismo. Através da paródia, da alegoria, do pastiche, das referências intelectuais, do lirismo de um mundo entre urbano e rural, da modernidade tecnológica; o Tropicalismo busca, na essência, o questionamento sobre os discursos da brasilidade e se funda sob a noção de descontinuidade e heterogeneidade tão caras a Foucault24. O antropólogo Eduardo Viveiro de Castro pensa o Tropicalismo como um dos acontecimentos de maior escala na história cultural brasileira:

um movimento cultural de alcance nacional, de repercussão vertical, que ia da academia até a juventude,que era teorizado pelos críticos literários ao mesmo tempo que seus discos eram comprados pela garotada que tomava ácido no píer de Ipanema (CASTRO in SAVAZONI; COHN, 2009, p.81). É precisamente essa rede articulada em torno do Tropicalismo (e por ele articulada) que nos indica a forma como os artistas baianos ainda hoje têm feito funcionar o arquivo de brasilidade.

A inscrição de um acontecimento como o Tropicalismo no arquivo de brasilidade é indissociável do desenvolvimento dos meios de comunicação de massa a partir dos anos 1960. Num colóquio realizado em Paris, em 1983, com a participação de Michel Pêcheux que resultou no livro O papel da memória, os autores demonstram como os meios de comunicação mudaram as relações com os acontecimentos. Jean Davallon observa como “os meios de registro da imagem e do som” fizeram da mídia o centro do arquivo da memória social (DAVALLON, 1999, p.23). É nela que os saberes são estocados e restituídos “tão bem quanto os acontecimentos”. A preocupação de Davallon é a relação entre o acontecimento – seja ele midiático ou não – e a memória. A ocorrência da memória depende de que o acontecimento registrado saia da indiferença, deixe o domínio da insignificância para que ele recupere sua vivacidade.

Na mesma publicação, o texto de Michel Pêcheux, Papel da memória, busca entender a forma como a profusão de acontecimentos na contemporaneidade se relaciona com a perda de simbolização e, portanto, apaga-se a história. A reflexão de Pêcheux tem por base