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8 Os novos vizinhos e as velhas relações: do policiamento ostensivo à polícia comunitária

8.2 AS BASES COMUNITÁRIAS

Diversos bairros da capital baiana receberam desde ano de 2011, segundo lideranças comunitárias sem canais de diálogos e de modo impositivo, Bases Comunitárias de Segurança (BCS), enquanto parte do programa do governo da Bahia de segurança pública, o Pacto Pela Vida. Dentre os bairros que receberam as BCSs, encontra- se aquele que optamos enquanto campo de coleta de dados- o bairro da Ilha Grande. Neste momento, expõe-se aqui uma análise dos boletins diários da polícia, expedidos pela Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA) nos seis primeiros meses de 2012 e 2013. O incremento desta nova ferramenta se dá devido o entendimento que, “o método é que nos escolhe e nos guia, quase mesmo a nos determinar”. (ESPINHEIRA, 2008, p. 27), foi tomando ciência deste fato e incorporando-o, estabeleceu-se esta etapa de coleta de dados.

Dentre a gama de elementos conflituosos que se encontrou por meio das observações, destaca-se a questão da violência verbal e física, sofridas por moradores. Foi interessante também observar o que tem ocupado a agenda de ações dos agentes policiais lotados na BCS, bem como seu impacto sobre os homicídios. A implantação da BCS no bairro da Ilha Grande no ano de 2012 trouxe alterações na base das atividades rotineiras, fato inegável. Entretanto, as dimensões dessas mudanças e tensões resultantes ainda carecem de melhor análise. Informações coletadas em campo expõem fragmentos desta dinâmica. Dentre estes, apresenta-se aqui o que alguns moradores descrevem como certo “toque de recolher” ao falar do atrito que tem ocorrido com relação às festas. Alguns relatos falam da chegada da polícia, pondo fim as festas dos moradores em suas casas, com uso de spray de pimenta nos rostos das pessoas. Este fato expõe um antagonismo na relação morador x polícia, pois desperta aversão, indo na contramão da ideia de empatia, conceito tão defendido no curso de formação da polícia comunitária.

8.3 A OPERAÇÃO “FAXINA”

Com a operacionalização do programa de implantação das bases comunitárias da polícia militar, os bairros que estavam em vias de receber esse novo modelo de policiamento passaram por uma “limpeza” nos moldes policiais tradicionais.

No bairro estudado ocorreram nos últimos dias repetidas incursões policiais, posicionando-se nas entradas do bairro e percorrendo em comboio as partes centrais do mesmo. Nestas operações a polícia aborda transeuntes e motociclistas, conforme demonstra o diálogo reproduzido abaixo:

Policial= Ei você ai, mão na cabeça de cara pra parede! Morador= Eu?

Policial= você mesmo, não escutou não? Morador= tá bom.

Policial= abre as pernas! Tá vindo de onde? Morador= do trabalho.

Policial= abra a mochila. Esse livro grande? Morador= é um livro de informática.

Policial= abra ele ai pra eu ver. Certo, adiante seu caminho e não fique de bobeira ai na rua.

Após um ciclo de revistas a quem adentrava o bairro, as viaturas da COE (Comando de Operações Especiais), juntamente com agentes da polícia civil e

policiais da tropa de choque da Polícia militar passaram a circular pelo bairro, mas na ocasião não efetuaram prisões. (Diário de Campo, Julho de 2012)

O processo de implantação de algumas das BCSs foram televisionadas e comentadas em tempo real; ora pelos repórteres histéricos, ora pelo próprio Governador do Estado. Com isso, dados interessantes foram expostos em nossas telas. Cada apreensão ou morte era apresentada como um esquete seguido de aplausos, de um espetáculo ainda nebuloso.

“O bairro tá na televisão!” anuncia uma moradora do bairro. Viaturas

começam a circular e a realizar revista nos transeuntes, rapidamente as ruas se esvaziam, os operadores do mercado de drogas desaparecem, o comércio de drogas está fechado. Enquanto isso, a mídia faz uma cobertura sensacionalista ao vivo, focando casas e moradores, seguindo os passos policiais pelo bairro. O intuito desta operação, anunciado pela TV em tempo real, era capturar indivíduos que desempenhavam função de chefia no mercado de drogas local. Durante a operação, a polícia conseguiu capturar três homens, um quarto indivíduo acabou alvejado três vezes e vindo a óbito em suposto confronto com a polícia, um dos indivíduos presos foi apresentado como “braço-direito” da atual liderança local do tráfico, fato que levou o indivíduo preso a ser apresentado na mídia como o “prêmio da semana”. Com isso, a polícia parece iniciar uma espécie de “faxina”, visto que, a base comunitária do bairro e a suposta polícia cidadã, estão para serem implementadas no bairro. Ao cair da tarde, a rotina já fora reestabelecida, crianças jogam bola na rua asfaltada, o comércio funciona normalmente. Numa pequena viela, jovens operadores voltaram aos seus postos, o tráfico reassume seu pleno funcionamento. Após a retirada da polícia é facilmente observável o gradativo retorno à normalidade, o que causa uma grande inversão de valores, pois, a polícia é idealizada como forma de garantir a tranquilidade, mas nesse espaço periférico é sinônimo de tensão. As prisões e apreensões policiais, não têm minado o surgimento de novas lideranças e mesmo a continuidade do tráfico. Com isso, as vitórias da política pública de segurança, festejada nos meios midiáticos, mostram-se falaciosas frente ao cotidiano experimentado, pois em nada tem se alterado o fenômeno, apenas a quebra do cotidiano dos moradores, visto que policial aqui é figura rara e temporária, pois sua presença é curta, dura apenas o período de uma incursão, poucas horas em resumo. (Diário de campo, Julho de 2012)

O que o trecho acima descreve é uma série de acontecimentos que retirou do eixo a rotina dos moradores. A “faxina” iniciou-se ainda durante a madrugada, durando um longo tempo e acumulando casos de abusos na orquestração policial, casas foram adentradas por policiais sem qualquer mandado judicial. A melhor forma de se iniciar uma polícia comunitária é com uma intervenção tão invasiva? Ao que parece essa é a visão do Estado, algo semelhante ao que ocorreu com as favelas do Rio em meio ao processo de pacificação.

A operação, apesar de televisionada e narrada em um tom histérico e sensacionalista, teve questões obscuras, uma delas ocorreu em uma das ruas principais.

Um grupamento especializado da polícia surpreende um grupo de operadores em uma das vielas que desemboca em uma rua principal. Surpreendidos, os jovens saem correndo viela acima, abandonando no local um barril repleto de armas em seu interior. Tamanho o peso das armas são necessários dois policiais para transportá-lo. (Diário de campo, Agosto de 2012)

O helicóptero da mídia – uma espécie de panóptico social - evidencia em seu voo rasante que a sociedade estava olhando do alto para o que ocorria embaixo na periferia, mas isso não impediu que fatos de mesma ordem citados acima ocorressem. Entende-se o quão tentador seria discorrer aqui de como é frouxo o controle sobre os próprios policiais em termos institucionais, seja por incapacidade ou por interesse que assim ocorra. Entretanto, voltemos nossas lentes de análise aos moradores, pois esses sim sabem, viram e comentaram o ato ocorrido, é por meio desse tipo de situação que se estabelece o grau de confiabilidade em uma instituição.

Eis que se tem ai um dos elementos do temor dos moradores por parte da polícia: Como sentir-se confortável em ser colocado contra o muro e ser revistado por este mesmo membro do Estado que não hesita em roubar armas do tráfico? De formas diferentes, sessa foi a pergunta que muitos trouxeram à tona quando era questionado o motivo da desconfiança que depositavam na polícia.

8.4 - A IMPLEMENTAÇÃO

Os policiais que estão lotados nas BCSs foram ensinados a serem policiais comunitários em um curso que durou dois meses, sendo assim, um policial comunitário recebeu ao todo nove meses de formação policial tradicional/ostensiva e dois de ação comunitária. Seria possível dois meses reverter muito do que foi ensinado em nove? Este questionamento se faz pertinente ao passo que se observa discrepâncias e mesmo antagonismos nestas duas formações. O dito policiamento comunitário é descrito dentro do próprio corpo de oficiais da corporação tendo como palavra-chave a empatia. O que precisa ficar claro aqui é a dualidade a que esses policiais foram colocados, pois o militarizado soldado da PM agora precisa ser um policial socializado.

Passados alguns dias de ocupação do bairro, em meio aos preparativos da implantação da base, toma-se conhecimento de um conflito que está ocorrendo entre moradores e policiais, pois foi instalado certo toque de recolhimento, os bares do bairro só poderiam ficar abertos até às 22:30h. Com isso, muitos comerciantes se sentem indignados, é durante as madrugadas de fim de semana que o faturamento sobe. Diante disso, durante uma ordem de fechamento do estabelecimento ocorre esse diálogo:

Policial= 22:30h você vai fechar o bar. Comerciante= Eu não vou fechar nada!

Policial= Nós vamos dar uma volta e quando retornarmos o bar tem que está fechado

Comerciante = eu vou continuar aberto.

Policial= Gente, vocês que estão aqui no bar, nós vamos dá uma volta no bairro, e depois voltaremos, se vocês quiserem ver demais podem continuar aqui.

Todos pagam suas contas e saem rapidamente, momentos após os policias retornam, o bar continua aberto, mas completamente vazio. (Diário de Campo, Outubro de 2012)

A BCS foi planejada para ser implantada em um imóvel alugado, no valor de sete mil reais, antes o local foi alugado pelo próprio governo para funcionar como uma escola, originalmente o local era um pequeno mercado. Por conta dos parentes de sua esposa residirem no bairro, o proprietário não quis alugá-lo para a polícia, mas foi coagido a fazer essa transação.

O espaço passou por reformas, ou seja, verbas públicas foram usadas pra reformar um espaço privado, informações vindas de pessoas que acompanharam a reforma de perto. Durante o período de reforma a BCS funcionou em containers que foram comprados para serem usados como selas, aumentando as vagas do sistema prisional, mas foram impedidos pelos órgãos de direitos humanos, pois colocava os presos em situações desumanas. Os containers foram climatizados e colocados como base provisória.

Quando a reforma acabou, pensou-se que enfim seria utilizado o prédio reformado, lei do engano, até o presente momento a BCS continua a funcionar no improviso. O prédio reformado serve apenas de dormitório, um funcionamento precário. Somente após 14 meses desde a implementação da BCS é que o prédio reformado foi inaugurado.

A BCS conta com um grupamento de 100 policiais se revezando em seis turnos, esse contingente seria o suficiente para operacionalizar quatro viaturas e quatro motos, além de realizar a patrulha a pé e o serviço administrativo da BCS. Entretanto, o material humano é na prática insuficiente, por conta disso apenas as viaturas circulam com três policiais embarcados, as motos permaneceram estáticas na frente da BCS por meses, a única vez que foram vistas circulando no bairro foi durante uma visita oficial no bairro. Mais recentemente, os policiais começaram a realizar treinamento para o uso das motos em dupla. Em relação ao patrulhamento a pé - prática que permitiria um nível maior de interação entre os policiais e os moradores - permanece sem ser realizado.

Na “outra ponta”, a polícia também costuma relatar problemas enfrentados no exercício de suas atribuições.Em uma reunião realizada em conjunto com as lideranças do bairro, o comandante da BCS informou quais seriam as principais ocorrências do bairro. Segundo ele, existem três fatos que são recorrentes e que representam a maior parte das ações policiais: a) prestação de socorro, b) mediação de brigas conjugais, c) condução à base por desacato à autoridade.

O bairro conta com um posto de saúde, mas assim como o resto da estrutura da saúde do Estado, apresenta severas limitações e conflitos. Sendo assim, o mesmo só funciona em horário comercial, no período noturno fica fechado, caso os moradores precisem de algum atendimento de urgência, precisam se deslocar para outros pontos da cidade, sendo assim, a base serve para realizar esse processo de condução. Caso o posto funcionasse enquanto pronto socorro, tal fato inexistiria.

A questão da violência contra a mulher perpassa todos os segmentos sociais, e no bairro estudado não é diferente, os policiais são acionados para pôr fim a brigas de casais e até agressões físicas, mas uma vez cessado os conflitos os policiais dão por encerrado suas obrigações, não há encaminhamentos para as delegacias especializadas de atendimento à mulher, as DEAMs, ou para os centros de referências.

Os casos de desacato à autoridade chama a atenção pelo fato de representar concretamente a incapacidade do Estado em preparar os agentes da corporação policial para o trato com os moradores, bem como, os conflitos como resultante da falta de convívio – os moradores não estão acostumados com a presença do Estado.