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3 Os moradores e o processo de marginalização

3.4 CASAS E QUINTAIS

No início da ocupação não havia condições dignas de moradia e sim barracos cobertos de lona, sustentado por estacas de madeiras. Em uma conversa com um dos moradores que vivenciou essa época, ele nos fala que dentro de seu barraco andava-se curvado, pois não tinha como ficar em pé. Nessa época existia apenas um cômodo em cada barraco, mesmo para os moradores que possuíam família com filhos era o único espaço para abrigar a todos. Comida e necessidades fisiológicas eram feitas do lado de fora.

A casa, é o contexto da primeira socialização e, simultaneamente, o da primeira individualização, pois só nos tornamos indivíduos para os outros entrando no mundo – e antes de tudo no mundo doméstico. (AGIER, p.103, 2011)

Com a construção dos barracos de taipa pôde-se enfim dividir o espaço internamente, o que possibilitou a criação de quartos para o casal e para as crianças. Não mais apenas abrigava-se, as pessoas tinham práticas de moradia nos seus barracos. É interessante ressaltar que a construção desse novo tipo de habitação também fez uso de solidariedade, os vizinhos e parentes se ajudavam na construção dos barracos. A autoconstrução se tornou um domínio de elaboração simbólica (HOLSTON, p 29, 2013) Antes de atingir a metade da década de 1990, começou-se a construção das casas de tijolos. Por se tratar de uma construção cara, os moradores só iniciaram o uso desse padrão de construção após a certeza da permanência na área. As casas eram de apenas um pavimento e cobertas com telhas de amianto, as paredes sem reboco, tinham quase sempre o tom de marrom dos tijolos. Nessa época os quintais dessas casas eram maiores que a própria casa, fazia-se uso da área para o cultivo de hortaliças, instalações de galinheiros, alguns quintais maiores tinham árvores frutíferas de grande porte e faziam criações de suínos. Tudo utilizado no primeiro momento no complemento da própria alimentação, apenas o excedente era doado aos parentes e vizinhos mais próximos, e em último caso vendido.

Na medida em que as casas foram crescendo, os quintais foram sendo diminuídos, as árvores foram dando lugar ao cimento e ao concreto. Um processo de diminuição das áreas verdes semelhante à própria criação das cidades brasileiras. Nos dias atuais em que caminhamos pelo bairro, ainda foi possível encontrar áreas verdes, o tom verdejante é a segunda cor que mais se destaca, somente sendo superada pelo amarronzado dos tijolos expostos das paredes desnudas das casas.

Diante da diminuição das áreas disponíveis para a construção, o bairro começa a sofrer o processo de verticalização desordenada – tão comuns aos espaços urbanos – vários pavimentos são construídos sem qualquer orientação técnica. Usam-se apenas as experiências adquiridas na rotina do trabalho na construção civil. Vigas e fundações variam em profundidade e espessura, medidas dos materiais usados também. As primeiras casas a possuírem além do térreo, um primeiro andar – as ditas casas de dois andares – eram um símbolo de distinção social, visto que mostrava ostentação de melhora financeira.

É em meio a esse movimento que encontramos um dos processos de solidariedade ainda existente – bater a laje. Essa prática foi intensificada nos últimos anos, ela nos é

interessante por reforçar os laços de amizade e parentesco, sendo seu acontecimento relevante de ser narrado:

Os preparativos para bater a laje começaram há alguns dias. No primeiro dia, logo pela manhã o caminhão da loja de materiais de construção trousse todo o material, carregamos sobre os ombros todos os sacos de cimento, pesando 50 quilos cada. Depois, em dupla colocamos também sobre os ombros as longarinas (espécie de pré-moldado), com cerca de 5 metros cada. Ao fim, carregamos os blocos de cerâmica usados entre as longarinas. Partimos então para carregar a areia e o gravilhão (tipo de cascalho), usamos carros-de-mão para isso. No segundo dia, cobrimos os móveis e destelhamos a casa, de imediato colocamos as longarinas, encaixando os blocos em seguida entre elas, colocou-se ao por último as mangueiras por onde passará a fiação depois da laje está pronta. Escoramos tudo com estacas de madeira que partiam do chão em direção ao teto. O dia propriamente de bater a laje é o mais intenso, o número de pessoas aqui supera as duas dezenas, o dia começou ainda na madrugada, às quatro da manhã já estávamos carregando areia, cimento e gravilhão, misturando os dois primeiros usando pás e enxadas para acrescentar o cimento por último, o resultado é o concreto. Os homens são divididos em funções, os de maior capacidade técnica são colocados no alto da estrutura para colocação do concreto, os de menor capacidade - como eu - carregam e viram o concreto. A falta de habitualidade com essa atividade logo se manifesta, surgem as primeiras calosidades, verdadeiras bolhas, que depois viraram feridas, o remédio me foi ensinado: “coloca depois daqui a mão na água com sal, é certo!”, de fato a ardência e dor do tratamento dá resultado, no dia seguinte está bem melhor. Estou despreparado, uso sandálias e não botas, mãos nuas ao vez de luvas. Sou avisado: “vai comer suas mãos e seus pés!”. Isso de fato acontece, nos dias que se sucederam senti os efeitos do concreto, das mãos e dos pés se desprendem camadas de pele. O sol nasce bonito no horizonte, enquanto o suor desse pelos rostos, piadas são contadas em meio ao duro trabalho. Já com o sol alto sobre nossas cabeças ligamos o som, o pagode e o reggae dão o ritmo do trabalho. Perto do meio dia está tudo terminado. Somos levados para comer o feijão, anunciado a todos como atrativo quando foram chamados para bater a laje, os braços cansados faz o garfo parecer muito mais pesado do que realmente é. (Diário de Campo, Maio de 2012)

Um fenômeno que também explica a diminuição dos quintais e suas áreas verdes é o próprio processo de crescimento familiar. Um fato recorrente no bairro é a gravidez precoce, a chegada de crianças sem a devida estrutura de acolhimento, e dentre essa falta de estrutura para o acolhimento está a casa em si. Com isso, os avós dos bebês oferecem aos pais dos mesmos, a laje de suas casas, laterais ou o fundo, em geral são construções menores que as casas principais, e muita das vezes resumem-se a um quarto para dormir. O uso de um mesmo quintal para diferentes núcleos familiares é coisa comum no bairro, certos quintais inexistem hoje em dia, em virtude do crescimento das construções.

O processo que descrevemos atinge a maioria das casas, mas não a todas elas. Ainda hoje, encontramos barracos de madeira equilibrando-se na beira de córregos. A

vistos enquanto periféricos, de modo heterogêneo, no seu interior estão pessoas vivendo realidades socioeconômicas distintas, há pobres e miseráveis morando em um mesmo ambiente. Ainda que no primeiro momento todos vivessem condições muito próximas, os processos históricos trataram de fomentar diferenciações, a chegada de contingentes de pessoas, posteriormente à negociação da permanência, é um deles.

3.5 MUDA-SE A GERAÇÃO, CONTINUA-SE COM A POBREZA

Como anunciou-se há pouco, o bairro já se encontra em sua terceira geração, alcançou-se em pouco mais de duas décadas o nascimento dos netos dos primeiros moradores. O número de filhos por família vem diminuindo, fato que não desperta grandes discordâncias de especialistas e órgãos estatais. O fato de gerações anteriores terem muitos filhos era usado para justificar o grau de pobreza. Outros diziam que eram por ser pobres que as famílias tinham muitos filhos. Entretanto, desperta-se aqui uma importante questão. Como explicar a pobreza ainda existente, já que o número de filhos vem diminuindo? A possibilidade explicativa parece apontar para a precocidade da gravidez. Durante a coleta de dados encontramos adolescentes de 15 (quinze) anos ou menos já gravidas, algumas de 17(dezessete) anos já na segunda gravidez.

Esse fato empírico apontou para onde devíamos olhar – dentro dos quintais e casas – facilitando assim o nosso melhor entendimento. A precocidade para essas adolescentes acarreta uma série de problemas, defasagem escolar nos últimos meses de gestação e nos primeiros de amamentação é um deles, mas muitas resolvem mesmo deixar de estudar após a gestação. Os pais desses bebês, na maioria também não passam de adolescentes, ainda na fase de cursar os anos escolares do ensino médio. O que faz muitos abandonarem a jovem gestante no processo de gestação e criação do filho, os que resolvem assumir a paternidade deixam de estudar e se lançam no mercado de trabalho de salário mínimo. Com isso, não há estrutura social e psicológica para a chegada do bebê, levando os avós a saírem em amparo de seus netos, fornecendo local pra morar, como dissemos anteriormente, bem como, ajudas financeiras.

Os novos arranjos familiares passaram a ter menos filhos, entretanto, em virtude do despreparo para essa situação, repassam parte ou a totalidade das responsabilidades no acolhimento do filho aos avós do mesmo, sendo assim, casais tem menos filhos, porém mais netos. Ao fim, fica evidenciado que o programa de planejamento familiar deveria servir de base, sobre onde se deve pensar todo o conjunto de políticas públicas, e não

funcionar como um apêndice dos programas de saúde na fase em que se encontra. Como se podem elaborar metas e projetos se não se sabe, acompanha, ou planeja o crescimento do público assistido por elas?