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Batismo

No documento Como os Nomes Nomeiam (páginas 112-115)

3. NOMES E IDENTIFICAÇÃO

3.2 Batismo

Devitt está correto em afirmar que há pelo menos dois fenômenos que uma teoria da referência deve explicar: o fenômeno da fixação do referente e o do empréstimo da referência (ou referência parasitária). Mas seria mais adequado falar em introdução de um nome-tipo ao invés de fixação do referente.

Isto porque existem nomes vazios, para os quais nenhum referente foi de fato fixado. Para que uma prática de usar um nome tenha início não é necessário que um referente seja fixado, mas apenas que um nome-tipo seja introduzido. Toda prática remete a um evento no qual um nome-tipo é gerado, e quase sempre nomes-tipo são gerados a partir de um nome-estilo.9

O mais comum é que nomes-tipo sejam gerados por batismos. Talvez o estereótipo de batismo sejam casos envolvendo um falante capaz de discriminar perceptivamente um indivíduo e realizando um ato de fala declarativo do tipo

“Este indivíduo se chamará N”. Mas esta imagem pode ser modificada de vários modos. Primeiro, um batismo não requer alguma declaração explícita do tipo acima. Apelidos, por exemplo, são frequentemente introduzidos de forma mais direta. Certa vez alguém, ao me observar jogando futebol, disse que eu corria como o Papa Léguas. Isto foi o bastante para que surgisse uma prática de usar este incômodo apelido para fazer referência a mim. Segundo, já vimos que nomes também podem ser introduzidos por descrição, caso em que estipulamos que o referente do nome será quem quer que seja o único a possuir certa propriedade. Neste caso, não é necessário que o objeto nomeado esteja perceptivamente presente ao sujeito que realiza o batismo. Terceiro, é argumentável que nomes podem até mesmo ser introduzidos sem querer, isto é, sem que qualquer falante tenha tido a intenção de introduzi-los. Apesar de meu primeiro nome, “Sagid”, ser bastante simples, as pessoas aqui no Brasil têm alguma dificuldade de entendê-lo ou proferi-lo. Já ocorreu mais de uma vez de, ao ouvir meu nome pela primeira vez, alguém me perguntar espantado “Sagui?”.

9 A possível exceção à regra é o caso em que uma pessoa dá a alguém um nome nunca usado antes. Digo “possível” porque não me é claro o que exatamente ocorre neste caso.

Seja como for, isto envolve problemas metafísicos que faremos melhor em ignorar.

109 Imagine que um amigo ouça uma pessoa fazendo esta pergunta, e acredite se tratar de alguém me apelidando. O amigo então começa a usar “Sagui” para se referir a mim, e isto dá início a toda uma prática de uso. Nesta situação, um novo nome-tipo “Sagui” foi criado, e uma prática de uso se desenvolveu em torno dele.

Mas ninguém em qualquer momento teve a intenção de introduzir o nome.

Algo especialmente curioso é que muitos nomes-tipo podem ser introduzidos por meio de um único ato de batismo.

BBC News (12.06.02) relata um batismo em massa de 3000 pessoas na Índia. Podemos levar a ideia ainda mais longe.

Suponha que haja três mil pessoas, cada uma das quais adorando um deus diferente. Todos os deuses são sem nome.

Assim, um batismo em massa é organizado, no qual todos os deuses recebem o nome 'Pedro'.10

Em cada um dos casos acima houve apenas um ato declarativo de batismo, mas em cada um deles três mil novos nomes-tipo foram introduzidos.

Isto também é interessante porque parece colocar um problema para a teoria da identificação. Nenhum dos casos anteriormente considerados era problemático para o princípio de Russell. Cada um envolvia identificação via contato perceptivo, reconhecimento ou propriedades identificadoras. Mas os casos de batismo múltiplo são diferentes, porque é muito plausível que os sujeitos que realizaram o batismo não eram capazes de identificar cada um dos três mil indivíduos relevantes. Como consequência, alguém pode introduzir um nome-tipo para um indivíduo que não é capaz de identificar. Não será isto um contraexemplo ao princípio de Russell?

Repare que o princípio de Russell não diz que identificação é uma condição necessária para a introdução de um nome, ele diz que ela é uma condição necessária para a referência bem-sucedida por meio de um nome. Em princípio, portanto, está aberta a possibilidade de que uma pessoa seja capaz de batizar um indivíduo que não é capaz de identificar, embora isto geralmente não

10 Textor (2010, p. 112)

110 ocorra. Neste caso, é claro, a pessoa também não será capaz de se referir ao indivíduo que ela própria batizou. Para que os casos de batismos múltiplos acima constituam um contraexemplo ao princípio de Russell, tem de ser verdade que algum dos sujeitos que introduziram os nomes-tipo seja capaz de se referir, através dos nomes-tipo relevantes, mesmo àqueles indivíduos que ele é incapaz de identificar. Mas está longe de ser claro que este seja o caso. Se uma autoridade competente declara que todas as três mil pessoas em um estádio se chamarão “João”, ela é bem-sucedida em criar três mil novos nomes-tipo porque recorre a uma regra que determina a criação de um novo nome-tipo para cada pessoa que satisfaça a condição de estar naquele estádio. Mas daí não se segue que ela será bem-sucedida em usar cada um dos três mil nomes criados.

Se a autoridade disser em seguida “João é legal”, seu proferimento do nome não selecionará automaticamente algum dos três mil indivíduos nomeados por ela.

Algo mais é necessário para que ela seja capaz de usar o nome-estilo “João”

como um nome-tipo para um dos indivíduos em particular. De acordo com a teoria da identificação, este algo mais é precisamente a capacidade de identificar o referente do nome que utiliza. Por exemplo, se a autoridade singularizar um dos indivíduos através da visão, percebendo como ele é prestativo em ajudar uma criança perdida, então será capaz de usar o nome-tipo deste indivíduo em seu proferimento acima. Em conclusão, casos de batismo múltiplo não são um problema para a teoria da identificação. Por outro lado, eles parecem ser um problema para a teoria causal da referência. Podemos perfeitamente imaginar que a autoridade estivesse em contato causal, via percepção, com todos os sujeitos relevantes no momento do batismo (ele olhava para a multidão). Mas isto não lhe garantirá a capacidade de usar cada um dos três mil nomes-tipo que ele criou. Não é claro como uma perspectiva causal lidaria com este problema.

Por fim, Textor (2010, p. 113) também fornece um exemplo que pode ser usado para mostrar que a introdução de nomes-tipo nem mesmo requer um ato de batismo. Eu e você nos comprometemos a usar N parar fazer referência a x. A despeito de termos fixado este comprometimento, nunca ocorreu de usarmos N, talvez porque nunca tenha ocorrido de falarmos sobre x.

Intuitivamente, N é nosso nome-tipo para x, de modo que de fato tivemos sucesso em introduzir um novo nome-tipo. Entretanto, nenhum batismo foi

111 realizado. Se este exemplo está correto, então batismos nem mesmo são necessários para a geração de nomes-tipo. Para outras críticas à importância do batismo, veja Paul Ziff (1977, p. 319-321).

Se preferirmos, podemos estipular que “batismo” é um termo técnico que não precisa corresponder exatamente ao nosso entendimento ordinário desta palavra. Isto nos permitiria manter a tese de que nomes-tipo são sempre introduzidos por batismos. Por outro lado, isto criaria uma inevitável confusão entre o sentido técnico e o sentido ordinário de “batismo”. Por esta razão, talvez seja melhor falar em introdução ou geração de um novo nome-tipo. Geralmente, mas nem sempre, nomes-tipo são gerados por meio de batismos.

No documento Como os Nomes Nomeiam (páginas 112-115)