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Consumidores e identificação

No documento Como os Nomes Nomeiam (páginas 123-130)

3. NOMES E IDENTIFICAÇÃO

3.6 Consumidores e identificação

Nesta seção apresento um esboço geral sobre a referência dos consumidores, isto é, sobre a referência por empréstimo. A descrição precisa será dada apenas na próxima seção, e alguns detalhes importantes são desenvolvidos nas seções seguintes. Aqui me limito a fornecer um esboço geral e impreciso de como os consumidores se referem a algo por meio de nomes, e explicar como este esboço pode conectar a habilidade referencial dos consumidores à utilidade dos nomes na aquisição, acúmulo e transmissão de informações sobre objetos particulares. O leitor já deve ter percebido a minha pressuposição de que uma das funções centrais dos nomes próprios é permitir o

120 desenvolvimento de cadeias informacionais ricas sobre objetos particulares.

Obviamente, nomes não são os únicos itens linguísticos com esta função, mas a rejeição de que esta seja uma de suas funções centrais me parece inaceitável.

A teoria da referência dos consumidores que apresentarei aceita que o conhecimento discriminatório é uma condição necessária para a referência (através de nomes) por parte dos consumidores. Por outras palavras, ela aceita o princípio de Russell. Entretanto, ela implica que este princípio deve ser estendido para incluir um quarto modo de identificação aos três modos mencionados na seção 1.6. Assim, penso que a explicação da referência dos consumidores envolve um modo distinto de satisfazer este princípio. Neste ponto, discordo de Evans (1982, p. 403) e concordo com Sainsbury (2005, p.

97).11 Em todo caso, é somente na próxima seção que isto ficará totalmente claro.

Evans e Kaplan (respectivamente no primeiro e no segundo trecho citado abaixo) foram os primeiros a esboçar o ponto de partida do tipo de tratamento que tenho em mente.

Nestes termos, o requerimento sobre o falante usando um nome próprio não é que ele indique a qual objeto tem a intenção de estar (...) se referindo, mas que indique qual nome tem a intenção de estar (...) usando.12

11 Infelizmente, Sainsbury fornece poucos detalhes de como é que um usuário de um nome satisfaria o princípio de Russell. Como Evans, ele pensa que as informações que associamos aos nomes têm um papel determinante. Mas não nos diz qual é. Este é um ponto importante, pois se não for necessário que um consumidor satisfaça o princípio de Russell, então este princípio está em apuros. Na seção 5 do capítulo 2 de J. Campbell (2002) há uma pequena discussão sobre nomes que se aproxima imensamente do que é defendido aqui. A discussão não vai muito longe, dado que o principal objetivo dele é discutir demonstrativos, mas pode ser muito instrutiva.

12 Evans (1982, p. 384, tradução minha).

121 A característica contextual que consiste na história causal de uma expressão particular de um nome próprio no idioleto do agente parece ser mais naturalmente considerada como determinando qual palavra foi usada do que como fixando o conteúdo de uma única palavra sensível ao contexto. (...) A teoria causal da referência nos conta, em termos de características contextuais (incluindo as intenções dos falantes) qual palavra está sendo usada em um dado proferimento.13

A despeito das diferenças entre eles, ambos estão falando de usuários tendo a intenção de usar um nome específico. Mas não apenas isto, afinal, a intenção de usar o nome-estilo “Sócrates” não pode garantir que alguém se refira ao filósofo e não ao jogador do Corinthians (na seção 2.10, vimos que este tipo de problema colocou Marcos em dificuldades). Eles têm uma noção de nome-tipo em mente, de falantes tendo a intenção de usar um nome-nome-tipo específico.

Kaplan parece pensar que o nome-tipo usado por um falante é determinado pela cadeia causal da qual ele faz parte, enquanto Evans desenvolve uma proposta que aceita o princípio de Russell.14 Por esta razão, é com a proposta do último que me ocupo a seguir.

Grosso modo, a ideia de Evans é que um consumidor competente de um nome tem de ser capaz de indicar qual nome-tipo usa. Um sujeito é capaz de indicar qual nome-tipo usa quando é capaz de indicar a qual prática de uso de nomes pertence.15 Entendo esta última capacidade como a capacidade de

13 Kaplan (1977, p. 562, tradução minha).

14 Posteriormente, ele recuou em seu comprometimento com a perspectiva causal. Ver seção 2.4.

15 Importante: do fato de que consumidores individuam nomes-tipo por meio de práticas não se segue que nomes-tipo sejam metafisicamente individuados por práticas. De forma similar, do fato de policiais individuam seres humanos por suas digitais não se segue que seres humanos sejam metafisicamente individuados deste modo. Obviamente, consumidores não estão preocupados com o problema metafísico de como nomes-tipo são individuados, assim como policiais não estão preocupados com o problema

122 indicar de quem a referência é parasitária, ou de quem o sujeito toma a referência de empréstimo. Obviamente, um consumidor pode não ser capaz de apontar um conjunto de pessoas e dizer “Foi deles que tomei de empréstimo a referência!”. Precisamos de uma explicação do fenômeno que não exija que consumidores sejam capazes de fazer isto. Minha sugestão é que os consumidores competentes de nomes possuem a habilidade prática de identificar o referente do nome como aquele a quem os membros de uma prática específica se referem. Isto significa que eles sabem como usar o nome possuído por eles para rastrear o seu referente. Já vimos que nomes próprios, tomados isoladamente, são maus mecanismos de identificação. Por isto é mais promissor explicar a capacidade referencial dos consumidores em termos de um material identificador que inclua também marcadores. Um consumidor competente de um nome sabe como usar seu material identificador para rastrear o referente do mesmo; algo similar (porém não idêntico) ao que ocorreu no exemplo dos hospitais.

Eis um esboço da ideia. Imagine que Chico possua o nome-estilo

“Sócrates”, e que ele decida procurar pelo referente deste nome no Google.

Dado que existem vários indivíduos chamados “Sócrates” no mundo, ele encontrará vários indivíduos, de modo que a mera posse deste nome-estilo não é suficiente para que ele rastreie algum deles em particular. Mas se Chico possuir marcadores como “é filósofo” e “é da Grécia antiga”, poderá tornar sua busca mais precisa. Na posse de um material identificador mais rico formado pelo nome mais os marcadores em questão, ele pode então encontrar um indivíduo particular dentre todos aqueles chamados “Sócrates”. É tentador concluir que o indivíduo que Chico procura é aquele chamado “Sócrates” de quem seus marcadores são verdadeiros: o indivíduo chamado “Sócrates” que de metafísico de como seres humanos são individuados. O recurso às práticas é apenas um modo útil de diferenciar um nome-tipo do outro, assim como o recurso às digitais pode ser um modo útil de diferenciar um ser humano do outro, mas nem um nem outro precisa ser visto como fornecendo critérios metafísicos para individuação de práticas ou seres humanos. Na seção 3.19 discuto brevemente o problema da individuação de nomes-tipo e sua relação com práticas de uso de nomes.

123 fato é um filósofo da Grécia antiga. Por mais tentadora que esta conclusão seja, contudo, devemos resistir a ela. A informação que o sujeito possui não precisa ser verdadeira para cumprir seu papel (EVANS, 1982, p. 384. CAMPBELL 2002, p. 38). Conforme veremos na próxima seção, o que realmente importa para o sucesso da identificação é que os marcadores sejam informações difundidas em uma prática específica de usar o nome para fazer referência singular a um objeto. O indivíduo que Chico procura não é aquele chamado “Sócrates” de quem suas informações são verdadeiras, mas aquele chamado “Sócrates” de quem suas informações são difundidas (mas ver seção 3.10). Chico tem a habilidade prática de usar seu material identificador para rastrear a pessoa acerca de quem seus marcadores são informações difundidas.

A posse desta habilidade requer a preexistência de um conjunto de usuários do nome que tenham difundido aquelas informações sobre o seu referente. Se não houvesse uma prática de usar o nome “Sócrates” na qual os marcadores de Chico são informações difundidas, a sua busca no Google seria inútil. Neste caso, ele jamais conseguiria identificar um indivíduo particular dentre todos aqueles que possuem o nome-estilo “Sócrates”. Quando Chico rastreia o referente de “Sócrates”, está rastreando aquele indivíduo acerca de quem os membros de uma prática específica de uso deste nome difundiram certas informações. De forma resumida, está rastreando aquele indivíduo a quem os membros de uma prática específica de uso se referem. Podemos dizer que Chico tem a habilidade prática de usar seu material identificador para identificar Sócrates como aquele a quem os membros de uma prática específica se referem.

Conforme disse antes, este é um modo distinto de satisfazer o princípio de Russell. A capacidade de identificar Sócrates neste caso não é a capacidade de reconhecê-lo com base em sua aparência. Também não é conhecimento de propriedades identificadoras de Sócrates. O sujeito não precisa ter qualquer descrição definida unicamente satisfeita por Sócrates. Eu sequer sugiro que ele precise ter conhecimento proposicional de alguma descrição definida metalinguística do tipo “a pessoa chamada ‘Sócrates’ de quem tal e tal informação é difundida”. Ele apenas tem a habilidade prática de usar seu material para identificar Sócrates como aquele a quem os membros de uma

124 prática específica de usar este nome se referem. Por outras palavras, ele sabe como usar seu material identificador para distinguir o referente de “Sócrates” dos outros objetos do mundo (mas ver seções 3.16 e 3.17).

O esboço acima se acomoda perfeitamente à ideia de que uma das funções cruciais dos nomes próprios é facilitar a aquisição, acúmulo e transmissão de informação sobre objetos particulares. Para perceber isto, basta imaginar o que aconteceria se o material de Chico não fosse rico o bastante para lhe permitir identificar alguém em particular. Neste caso, a utilidade do nome na aquisição, acúmulo e troca de informações seria, na melhor das hipóteses, severamente limitada. Importante: isto deve ser aceito mesmo por aqueles que rejeitam o princípio de Russell. O ponto pode ser ilustrado por uma série de consequências pontuais que decorreriam da pobreza de seu material identificador. Suponha, por exemplo, que o único marcador de Chico seja “é um homem” e tome seriamente a ideia de que ele não possui qualquer modo ulterior de identificar o suposto referente do nome que usa. Se desejar, assuma que, a despeito de sua situação cognitiva, Chico é capaz de se referir a alguém por meio do nome “Sócrates”. Para facilitar o exemplo, imagine que ele decida criar um arquivo em seu computador com o nome “Sócrates”, e que inclua neste arquivo a única informação que possui: é um homem. Daí decorre o seguinte.

(a) Chico é incapaz de adicionar qualquer informação nova ao seu arquivo. Imagine que Chico tente encontrar mais informações sobre o indivíduo a quem ele supostamente se refere por “Sócrates”. Cada nova informação encontrada será adicionada àquela que ele já possui em seu arquivo. Chico pode buscar por informações no Google, com um amigo, etc. Mas ele jamais será capaz de determinar se a pessoa referida pelas fontes pesquisadas é a mesma de seu arquivo. Existem várias pessoas chamadas “Sócrates” de quem “é um homem” é uma informação difundida, e uma vez que Chico não é capaz de determinar a qual delas se refere, não é capaz de determinar se o indivíduo de seu arquivo é aquele de quem o artigo ou o amigo falam. Nesta situação, Chico jamais estará justificado em adicionar qualquer informação nova sobre algum particular, obtida de qualquer fonte que seja, à informação que já possui. Neste sentido, ele é incapaz de adquirir informações sobre o suposto referente de seu arquivo.

125 (b) Chico é incapaz de acumular novas informações sobre o referente de seu arquivo. Uma vez que ele é incapaz de adquirir informações novas sobre o suposto referente, também é incapaz de acumular informações novas sobre ele. Não importa o quanto o universo envelheça, ou o quanto Chico estude, ele jamais será capaz de acumular qualquer coisa nova em seu arquivo.

(c) Em certo sentido, Chico é incapaz de ensinar a alguém sobre o referente de seu arquivo. Se assumirmos que Chico é capaz de se referir a alguém, então talvez ele possa nos ensinar que este alguém é um homem. Mas dado que ele é incapaz de adquirir e acumular novas informações em seu arquivo, isto será o máximo que poderá ensinar. Mas as coisas ainda pioram.

Mesmo a habilidade de Chico de ensinar que Sócrates é um homem é limitada em um sentido especial. Chico não é capaz de indicar sobre quem é o seu arquivo, ela não consegue indicar se é sobre o filósofo grego, o jogador do Corinthians, seu vizinho ou qualquer outra pessoa chamada “Sócrates” de quem o marcador “é um homem” seja difundido. Por esta razão, nenhum ouvinte estará justificado em somar a informação (supostamente) ensinada por Chico às informações que já possui sobre qualquer outro indivíduo. Chico é incapaz de fazer com que qualquer pessoa aumente seu conhecimento sobre qualquer indivíduo a quem já é capaz de se referir. Importante: este não é um estado momentâneo, mas o estado no qual ele permaneceria mesmo que tivesse vida eterna e passasse ela inteira estudando.

Espero que (a)-(c) forneçam ao leitor uma imagem do quão dramática seria a situação de Chico caso o material identificador possuído por ele fosse demasiado pobre. Isto aponta para o seguinte: existe uma conexão íntima entre a riqueza do material identificador de um consumidor de um nome e a capacidade do mesmo de adquirir, acumular e transmitir informações sobre o objeto nomeado. O esboço de explicação apresentado acima reconhece isto na medida em que aceita que é precisamente a posse de um material identificador suficientemente rico que fornece ao consumidor a habilidade de se referir, e consequentemente de transmitir, adquirir e acumular informações sobre o referente do nome. Basta comparar o que Chico podia fazer em nosso primeiro exemplo, quando seu material era suficientemente rico, com o que ele podia fazer no segundo.

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