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Duas práticas, um referente: dois contraexemplos à teoria

No documento Como os Nomes Nomeiam (páginas 184-188)

3. NOMES E IDENTIFICAÇÃO

3.18 Duas práticas, um referente: dois contraexemplos à teoria

180 consumidores. Seja como for, qualquer estratégia deste tipo requer argumentos positivos a seu favor.

181 Não é difícil formular um exemplo que tenha a estrutura acima. Imagine um sujeito que sofre gravemente de dupla personalidade, e que leva duas vidas distintas baseadas em cada uma das personalidades que desenvolveu. Alguns falantes o conhecem como um indivíduo exemplar, calmo, gentil e engajado em projetos de caridade. Nesta vida, ele adquiriu tanta proeminência e respeito que foi batizado de “Salvador” pelas pessoas que o admiram, pessoas estas que costumavam difundir a informação de que ele era um grande revolucionário.

Como dito, no entanto, Salvador tem uma vida alternativa, baseada em sua outra personalidade. Nesta outra vida, ele é conhecido por ser um indivíduo perverso, engajado em movimentos neonazistas e defensor de bizarrices morais de todo tipo. Também aqui ele ganhou proeminência e admiradores, que coincidentemente também o batizaram de “Salvador”, e difundiram que se tratava de um grande revolucionário. Ocorre que as pessoas não sabem que o Salvador santo e o Salvador vilão são a mesma pessoa. Afinal, ele sempre foi cuidadoso em não permitir que suas vidas distintas se misturassem. Muitos anos se passaram e só restaram consumidores do nome, seja para fazer referência ao santo ou ao vilão. Imagine que um consumidor atual deste nome possua um material identificador formado apenas pelo nome-estilo “Salvador” mais o marcador “é um grande revolucionário”. Pergunte-se: será o consumidor capaz de se referir a Salvador?

De acordo com a perspectiva apresentada até agora, o consumidor só terá sucesso em se referir se souber como usar seu material identificador para identificar o referente do nome como aquele a quem os membros de uma prática específica se referem. Dado que existem duas práticas de usar o nome

“Salvador” nas quais o marcador “grande revolucionário” é uma informação difundida, ele não será capaz de se referir por este nome. A previsão da teoria é que o consumidor falha em se referir a algo. Este resultado não chega a ser intuitivo, mas também não o considero absurdo. Não é o tipo de resultado que pode ser usado como indício conclusivo contra uma ou outra teoria. A situação é bem diferente com o próximo exemplo.

Exemplo 2 O segundo caso tem as seguintes características: (a) o mesmo nome-estilo é usado em duas práticas distintas de uso do nome, (b) as duas práticas levam ao mesmo referente, e (c) não existe a crença difundida de

182 que elas levam a objetos diferentes. Portanto, a diferença deste caso para o anterior é a cláusula (c).

Podemos pensar em um exemplo dramático em que isto ocorra.

Suponha que a namorada de João se chame “Maria”. Agora, imagine que João decida fazer a seguinte brincadeira. Ele reúne um grupo de produtores deste nome, aponta para ela, e diz “esta garota se chamará ‘Maria’”. Todos estão cientes de sua intenção: rebatizar Maria. Mas não apenas isto, o desejo é rebatizá-la usando o mesmo nome-estilo. A partir daí, João e seu grupo começarão a usar este nome com a intenção de usar o nome-tipo que foi criado neste batismo, e não no original. Aparentemente, João criou uma nova prática de uso do nome “Maria” para fazer referência a Maria. Como resultado, existem duas práticas de usar este nome-estilo para fazer referência à mesma mulher.

Diferentemente do que ocorreu no exemplo anterior, neste caso não há a crença difundida de que as pessoas na origem da cada prática são indivíduos distintos.

Por um lado, João e seu grupo sabiam perfeitamente que as duas práticas levavam ao mesmo referente. Por outro, podemos supor que os outros falantes sequer tomaram conhecimento da brincadeira de João, de modo que a questão de se as duas práticas têm ou não o mesmo referente sequer se coloca para eles. Agora, imagine que muitos anos se passaram e só restaram consumidores do nome. O único material identificador que um consumidor possui é o nome

“Maria” e os marcadores “é F” e “é G”. Suponha ainda que estes marcadores sejam informações difundidas em ambas as práticas de uso do nome “Maria”.

Sem maiores modificações, a teoria que defendi até agora prevê que este consumidor falhará em se referir a Maria. Afinal, ele não será capaz de identificá-la como aqueidentificá-la a quem os membros de uma prática específica se referem. No fim das contas, a brincadeira gera a falha na referência de todo consumidor que estiver na situação acima. Este resultado é trágico.

Para vislumbrar o tamanho da tragédia, repare que o diagnóstico acima implica que um grupo pequeno de falantes poderia facilmente gerar falhas generalizadas de referência de toda uma comunidade. Para isto, bastaria repetir a brincadeira de João. Por exemplo, eu e meus irmãos poderíamos agora rebatizar nossa mãe com seu nome original: “Carmensiva”. Em seguida, tomaríamos o cuidado de garantir que o máximo dos marcadores mais

183 comumente difundidos sobre ela fossem difundidos também em nossa nova e secreta prática de uso. Como resultado, geraríamos a falha na referência de qualquer consumidor cujo material fosse formado apenas pelo nome

“Carmensiva” e um ou mais destes marcadores. Exemplos do tipo podem ser multiplicados. Com uma brincadeira destas, um grupo pequeno de falantes poderia, de dentro do quarto de um deles, gerar a falha referencial de dezenas, centenas, milhares ou até milhões de consumidores de um nome. Certamente este é um resultado absurdo.

Uma estratégia de resposta aos exemplos acima seria manter a tese de que os consumidores relevantes falham em se referir a algo, mas explicar o porquê de termos a intuição oposta. A ideia é que a falha referencial provavelmente não teria efeitos práticos mais sérios nestes casos. Devido à ausência destes efeitos, acabamos intuindo que não houve falha. Mas será possível haver falha referencial sem maiores efeitos práticos? Ao que tudo indica, sim. Já vimos como isto poderia ocorrer (seção 3.12). Além disto, mesmo um defensor da teoria causal deveria aceitar esta possibilidade. Lembre-se do caso do sonhador. Segundo a teoria causal, ele falha em se referir a algo. Mas uma vez que pensa ter adquirido seu material identificador por vias normais, nenhum efeito prático será gerado. Talvez algo similar ocorra nos exemplos acima.

Esta resposta me parece limitada por duas razões. Primeiro, não é claro que a falha no exemplo 2 seja destituída de efeitos práticos. Os exemplos que considerei de falha referencial sem maiores efeitos práticos tinham a seguinte configuração. Um falante falhava em se referir por ter um material identificador muito pobre, mas um ouvinte erradamente pressupunha que ele se referiu a algo. Devido a esta pressuposição, o ouvinte dava continuidade à conversa, falando sobre o objeto que ele pressupôs que o falante tinha em mente. Nesta situação de conversação, o falante acabaria adquirindo a capacidade de identificar e se referir a um objeto, podendo adquirir e acumular informação sobre o mesmo. Obviamente, este processo pressupõe que o ouvinte era o tempo todo capaz de identificar e se referir ao objeto relevante. Supondo que o ouvinte fosse um consumidor, ele deveria ser um consumidor competente e tudo deveria correr bem com a prática de uso do nome relevante. Por outras palavras, a falha do

184 falante não tem efeitos práticos sérios precisamente porque tudo corre bem com a prática de uso da qual o ouvinte participa. O problema é que exemplos como o de Maria podem ser vistos como casos nos quais a própria integridade de uma prática de uso é colocada em jogo. Como vimos, casos deste tipo permitem que um conjunto pequeno de falantes acarrete, por meio de um simples artifício, a falha referencial de um grande número de consumidores. Estes consumidores perderão a sua capacidade de fazer referência pelo nome relevante, e por não saberem disto, continuarão a usá-lo normalmente, como se tudo corresse bem.

Não é claro que, numa situação destas, a integridade da prática se manteria intacta. Em resumo, para que esta estratégia seja plausível, precisaríamos de uma explicação mais detalhada de como a falha referencial generalizada poderia não ter efeitos práticos mais sérios. Em segundo lugar, é argumentável que a consequência de falha referencial generalizada entre os consumidores é por si só implausível, independentemente de quaisquer efeitos práticos que isto possa gerar. Não parece que alguém poderia acarretar falha referencial generalizada por meio de artifícios como aquele empregado por mim e meus irmãos.

Insistir no diagnóstico de que os consumidores acima falham em se referir a algo não é uma estratégia muito promissora.

No documento Como os Nomes Nomeiam (páginas 184-188)