• Nenhum resultado encontrado

O argumento modal

No documento Como os Nomes Nomeiam (páginas 49-55)

1. DESCRITIVISMO

1.2 O argumento modal

45 referente dos nomes é determinado pelo significado dos mesmos. Mas é importante notar que é possível defender o descritivismo sem defender a referência indireta. O ponto aqui é simples. Podemos sustentar, por exemplo, que o referente de um nome é determinado descritivamente (seja por uma descrição isolada ou por um agregado) e, ao mesmo tempo, recusar que as descrições envolvidas forneçam o significado dos nomes. Nada na tese de que o referente de um nome N é o objeto que satisfaz uma ou um conjunto de descrições implica que o significado de N é fornecido pelas descrições em questão. Por outras palavras, podemos sustentar uma teoria descritivista da referência sem sustentar uma teoria descritivista do significado.

Conforme veremos a seguir, existe um conjunto de objeções poderosas às duas versões de descritivismo apresentadas acima. Nas próximas seções apresento estas objeções e noto que as duas primeiras dizem respeito apenas à tese descritivista sobre o significado dos nomes, deixando intacta a tentativa de usar descrições apenas para explicar a referência dos mesmos. Uma vez que apenas a última objeção (o argumento semântico) diz respeito à teoria da referência propriamente dita, somente ela será tratada em pormenor neste livro.

46 Comece pensando na seguinte frase:

(4) Se Aristóteles existe, então Aristóteles é Aristóteles.

(4) é necessariamente verdadeira. Não é possível que Aristóteles exista e Aristóteles não seja Aristóteles. Claro que Aristóteles poderia existir e ter outro nome, mas o que (4) afirma é que se ele existe, então ele é ele mesmo. Isto não poderia ser falso.

Agora retire a última ocorrência do nome “Aristóteles” de (4), de modo a obter o seguinte:

(X) Se Aristóteles existe, então Aristóteles é ___________

O resultado é uma frase com uma parte em branco. Apenas coloque a descrição “o fundador da lógica formal” na parte em branco, de modo a obter o seguinte.

(5) Se Aristóteles existe, então Aristóteles é o fundador da lógica formal.

Repare que, diferentemente de (4), (5) não é necessariamente verdadeira. Aristóteles poderia ter existido e, ainda assim, não ter fundado a lógica formal. Ele poderia, por exemplo, ter morrido logo após nascer, ou ter se dedicado exclusivamente à carpintaria, sem gastar seu tempo com coisas tediosas como a lógica. Portanto, (4) é necessariamente verdadeira, mas (5) não. Se isto é assim, então (4) e (5) devem expressar proposições diferentes.

Mas a única diferença entre ambas é que nós substituímos uma das ocorrências do nome “Aristóteles” (em (4)) pela descrição “o fundador da lógica formal” (em (5)). Deste modo, a única explicação para a diferença de significado entre ambas é que o nome e a descrição contribuem de um modo diferente para o significado das frases. Por outras palavras, o nome “Aristóteles” tem um significado diferente da descrição “o fundador da lógica formal”.

O problema é que o argumento pode ser generalizado. Tome as descrições normalmente associadas ao nome “Aristóteles”: “O fundador da lógica

47 formal”, “o autor da Metafísica”, “o discípulo mais importante de Platão”, etc. Se colocarmos qualquer uma delas no espaço em branco de (X), o resultado será uma proposição que, diferentemente de (4), não é necessariamente verdadeira.

Assim, pelo mesmo argumento, nenhuma destas descrições é equivalente ao nome “Aristóteles”. Ao que parece, nossa única saída seria rejeitar o descritivismo clássico.

Para piorar, o mesmo argumento funciona contra a teoria dos agregados. Tome novamente (X).

(X) Se Aristóteles existe, Aristóteles é _____________

Agora coloque no espaço em branco a descrição mais complicada “a coisa da qual um número suficiente, porém vago e não especificado, das afirmações: ele é o fundador da lógica formal, ele é o autor da Metafísica, etc., são verdadeiras”. O resultado é o seguinte:

(6) Se Aristóteles existe, Aristóteles é a coisa da qual um número suficiente, porém vago e não especificado, das afirmações: ele é o fundador da lógica formal, ele é o autor da Metafísica, etc. são verdadeiras.

(6) não é necessariamente verdadeira. Aristóteles poderia ter existido sem ter satisfeito um número suficiente daquelas descrições. Na verdade, ele poderia ter existido sem ter satisfeito qualquer das descrições que efetivamente mencionei. Novamente, ele poderia ter morrido logo após nascer ou ter tido uma vida completamente diferente, sem se dedicar minimamente à lógica, filosofia, etc. Mas vimos que (4) é necessariamente verdadeira. Logo, (4) e (6) expressam proposições diferentes. Logo, a descrição mais complicada acima não é equivalente ao nome “Aristóteles”. A teoria dos agregados é falsa.

Kripke vai além e fornece um argumento adicional contra as duas versões de descritivismo que vimos. Este segundo argumento apela ao fato de que nomes, mas não descrições, são designadores rígidos. O conceito de designador rígido é geralmente definido em termos do conceito de mundos

48 possíveis. O idioma dos mundos possíveis é usado para tornar mais claro a nossa conversa sobre necessidades e possibilidades.

Grosso modo, um mundo possível é um modo como as coisas podem ser. O modo como as coisas efetivamente são é também um modo como elas podem ser e, assim, é também um mundo possível; ao qual chamamos “mundo atual”. Repare que o mundo atual (o modo como as coisas efetivamente são) não inclui apenas o presente. De fato, por mundo atual entende-se todo o nosso universo, incluindo seu passado, presente e futuro com tudo que há nele. Agora, podemos traduzir a nossa conversa sobre possibilidades e necessidades para uma linguagem que use a noção de mundos possíveis. Dizer que algo é possível é dizer que algo é o caso em pelo menos um mundo possível. Dizer que algo é necessário é dizer que é o caso em todos os mundos possíveis.

Vimos que (5) não é necessariamente verdadeira. Isto significa que (5) não é verdadeira em todos os mundos possíveis ou, o que dá no mesmo, existem mundos possíveis nos quais (5) é falsa. Podemos imaginar um mundo no qual Aristóteles se dedicou à carpintaria, ao invés de à filosofia e lógica, deixando assim de fundar a lógica formal. Neste mundo, Aristóteles existe, mas não é o fundador da lógica formal. Mas é claro que neste mundo Aristóteles continua sendo Aristóteles, de modo que (4) continua sendo verdadeira neste mundo. Na verdade, nossa intuição é que não haverá mundos nos quais Aristóteles existe e Aristóteles não é Aristóteles. A proposição expressada por (4) é verdadeira em todos os mundos possíveis. Por outras palavras, (4) é necessariamente verdadeira.

Vimos, portanto, que enquanto o valor de verdade de (5) (e também (6)) varia de mundo para mundo, o valor de verdade de (4) não varia, sendo sempre verdadeiro. Kripke pensa que algo análogo acontece com descrições e nomes próprios. Enquanto o referente de nomes normalmente não varia de mundo para mundo, o de descrições normalmente varia (há devidas exceções que ignoraremos por aqui). Comecemos pelo caso dos nomes.

Repare que para a frase “Maria é inteligente” ser verdadeira em um mundo possível m, basta que a pessoa de fato referida pelo nome “Maria” seja inteligente em m. Não há qualquer problema adiante sobre quem é o referente de “Maria” em m. Este nome se referirá em m à mesma pessoa a quem ele se

49 refere no mundo atual. Por outras palavras, o referente de “Maria” é constante de mundo para mundo. Por isto, para avaliarmos a verdade da proposição expressada por esta frase com respeito a uma situação possível, não é preciso procurar pelo referente do nome naquela situação.

Mas descrições usualmente funcionam de um modo diferente. A frase

“O atual presidente do Brasil é um homem” é verdadeira. Mas consideremos um mundo possível onde Maria Bethânia é a presidenta do Brasil. Neste mundo, a frase acima é com certeza falsa. Assim, se quisermos avaliar a verdade desta proposição com respeito a uma dada situação possível, precisaremos descobrir quem é o referente da descrição naquela situação. De modo geral, quando avaliamos a verdade de uma frase da forma “O F é G” com respeito a uma situação possível, temos de procurar pelo referente de “O F” naquela situação.

Isto ocorre porque o referente de uma descrição pode mudar de um mundo possível para outro. Portanto, não é constante.

Para expressar esta diferença, diz-se que nomes, mas não descrições, são designadores rígidos. A noção intuitiva de designador rígido é a seguinte:

Um termo t é um designador rígido se, e somente se, designa o mesmo indivíduo em todos os mundos possíveis onde ele existe, e designa nada mais em qualquer outro mundo possível. No entanto, podemos distinguir entre muitos tipos de designadores rígidos. Se tratando de nomes próprios, o mais comum é defender que são designadores rígidos persistentes ou obstinados. Um designador rígido persistente é um que designa o mesmo objeto em todos e somente todos os mundos possíveis onde ele existe. Um designador rígido obstinado é um que designa o mesmo objeto em todos os mundos possíveis, se ele existe ou não. (Para uma distinção entre os vários tipos de designadores rígidos veja Brock (2004, p. 283)).

Agora, pode-se alegar que isto explica parcialmente por que (5) é falsa em alguns mundos possíveis. Enquanto o referente de “Aristóteles” é constante, o referente de “o fundador da lógica formal” não é. Assim, embora Aristóteles seja o referente desta descrição no mundo atual, existem mundos nos quais Aristóteles existe, mas a descrição “o fundador da lógica formal” não o denota (seja porque ela não denota alguém, seja porque denota um indivíduo diferente).

Ora, quando usarmos o nome “Aristóteles” para falar de um destes mundos, nos

50 referiremos ao próprio Aristóteles, já que o referente deste nome não varia de mundo para mundo. Mas quando usarmos a descrição associada, não denotaremos Aristóteles. O resultado é que (5) será falsa neste mundo.

Observações similares se aplicam a (6).

Em resumo, a versão mais sofisticada do argumento de Kripke pode ser exposta como segue: nenhum termo que seja um designador rígido pode ser equivalente a (ter o mesmo significado de) um termo que não seja um designador rígido. Assim, nenhum nome que seja um designador rígido pode ser equivalente a uma descrição não rígida. Dado que Kripke está confiante de que nomes geralmente são rígidos e as descrições mais comuns associadas a eles geralmente não são rígidas, fica difícil acreditar que alguma das versões anteriores do descritivismo está correta.

O argumento modal talvez seja o mais discutido nos últimos anos, e foram desenvolvidas pelo menos duas versões novas do descritivismo para lidar com este argumento: o descritivismo de escopo amplo e o descritivismo rigidificado. Ambas serão apenas mencionadas aqui. O primeiro apela a uma conhecida ambiguidade, prevista pela teoria das descrições, de frases contendo descrições definidas em contextos modais. Em tais contextos, as descrições podem tomar escopo amplo ou restrito em relação ao operador modal. A partir daí, a ideia central é que nomes próprios não apenas abreviam ou são equivalentes a descrições definidas, mas indicam que a descrição abreviada deve tomar escopo amplo sobre operadores modais. Por outras palavras, existe uma convenção – que, no entanto, pode ser cancelada em situações especiais – de que as descrições abreviadas pelos nomes devem tomar escopo amplo sobre os operadores modais. Com este movimento, os defensores desta perspectiva acreditam poder escapar do argumento modal, e explicar como e em que sentido nomes próprios são designadores rígidos. Uma defesa desta versão do descritivismo pode ser encontrada em Sosa (2001). O segundo, por sua vez, começa por notar que o argumento de Kripke tem uma limitação importante: ele só funciona se supusermos que as descrições definidas que são abreviadas pelos nomes não são rígidas. É fácil perceber que existem descrições rígidas.

Um exemplo de descrição deste tipo é “o indivíduo que atualmente é o fundador da lógica formal”. Esta descrição, quando usada por um falante de nosso mundo,

51 denota Aristóteles em todos os mundos possíveis nos quais ele existe, mesmo aqueles nos quais ele não fundou a lógica formal. A partir daí, a tese central dos descritivistas rigidificados é que os nomes próprios não apenas abreviam descrições, eles abreviam descrições rigidificadas do tipo acima. Os descritivistas rigidificados acreditam que, com isto, podemos explicar perfeitamente o comportamento dos nomes em contextos modais, prevendo sua rigidez e escapando do argumento modal. Para uma defesa desta versão do descritivismo, veja Nelson (2002). Ainda é um problema em aberto se alguma destas versões consegue realmente escapar do argumento modal, ou fornecer uma explicação satisfatória da rigidez dos nomes próprios. Críticas podem ser encontradas em Soames (1998) e Branquinho (2001).

Seja como for, repare que o argumento modal tem força apenas contra teorias descritivistas que afirmam que o significado dos nomes é o significado de descrições. Como vimos, é a princípio possível defender que descrições desempenham um papel apenas na determinação do referente dos nomes, sem defender que os últimos são equivalentes a descrições. Por outras palavras, o argumento modal é antes um argumento sobre teorias do significado do que teorias da referência. Por este motivo, este argumento não será mais discutido daqui para frente.

No documento Como os Nomes Nomeiam (páginas 49-55)