CAPÍTULO 1 Mãe Efigênia: a cidade e o Ngunzo de Manzo
1.6 Belo Horizonte: uma cidade fora do lugar
Apesar de ter sido planejada, como visto nas palavras de seu construtor para
crescer do centro para as margens, o que se viu desde os primeiros anos de ocupação da
nova capital foi seu oposto, uma cidade que cresceu nas e para as margens.
Segundo o Anuário de Belo Horizonte (2000), já na década de 1910 do século
passado, portanto, quando a cidade tinha pouco mais do que uma década de existência,
70% da população viviam nas zonas suburbana e rural. Conformando o que Paula e
Monte-Mor (2000) denominaram de duas categorias de cidade, uma no interior da
Avenida do Contorno, ou seja, a cidade planejada que chamo de cidade no lugar e a
cidade não planejada, as margens da Avenida do Contorno, que chamo aqui de cidade
fora de lugar (Agier,2011).
Nos primeiros anos, o crescimento da cidade se deu em seu sentido leste-
oeste, na zona não planejada, suburbana vizinha ao centro, contrariando os planos de seu
construtor, que como visto, planejara uma pequena área urbana, em que a avenida mais
larga da cidade ligaria a cidade no eixo sul - norte, sendo este o eixo de desenvolvimento
ordenado da malha urbana “Apenas a uma das avenidas, que corta a zona urbana de
norte a sul e que é destinada a ligação dos bairros opostos, dei a largura de 50 m, para
constituí-la em centro obrigado da cidade”. Tal desenvolvimento pode ser explicado pela
privatização da cidade planejada pelas elites, restando aos demais moradores a ocupação
da zona suburbana e rural, que também foram alvos de privataria, sendo seu comércio
formador de uma clientela em termos políticos e econômicos.
A ocupação destes lugares fora de lugar se inicia a leste nos hoje bairros da
Floresta, Santa Efigênia e Santa Tereza e a oeste com a ocupação do Carlos Prates e
Calafate. A ocupação precoce destas regiões e sua localização vizinha à área urbana levou
a incorporação destes bairros, em termos de algumas políticas pública, ao lugar de zona
urbana, ou seja, ao lugar planejado ainda nas primeiras décadas da cidade. Tal
incorporação, em um processo que se retroalimentou da especulação dos preços da terra
e de um processo cartorial de registros de imóveis sujeitos às fraudes, significou muitas
das vezes a expulsão de antigos moradores para áreas ainda mais suburbanas. Processo
este ainda vigente, como pode ser visto nas atuais remoções de vilas e favelas, ou de
ocupações com décadas de existência, para dar lugar a projetos urbanos gentrificadores
ou grandes condomínios, como no caso da Granja Werneck na vizinhança do Quilombo
Urbano de Mangueiras, na cidade de Belo Horizonte.
Os anos 1930 e 1940 deu início um período de grande crescimento
populacional da cidade, que contrariando o planejado, continuava a crescer pelas
margens. Ao fim dos anos de 1930 a população da cidade chegou à casa dos 200 mil
habitantes, número máximo para o qual havia sido planejada. Dez anos mais tarde, a
cidade comportava cerca de 350 mil habitantes. Nos anos 1940, o crescimento das
margens acaba por se estender para quase toda a zona definida como suburbana no
projeto inicial da capital. A especulação imobiliária combinada com um processo de
ocupação negociada – em termos de uma clientela e arranjos econômicos, jurídicos e
políticos – e as ocupações forçadas expandem a mancha urbana, os trajetos e os projetos
dos fora de lugar pelo tecido da cidade.
Por outro lado, os anos 1940 são também marcados por dois processos de
ocupação induzidos pelo poder público. O primeiro deles é a criação do Distrito Industrial,
denominado de Cidade Industrial que, localizada na cidade vizinha de Contagem significou
um atrativo de ocupação do vetor oeste e norte da cidade. A criação deste distrito levou a
abertura de uma via rodoviária do centro da capital a este Distrito Industrial. Além da
cidade industrial, os anos 1940 são marcados por um novo lugar planejado e ordenado
pelo poder público, a Pampulha, região escolhida para ser área de lazer e veraneio das
elites Belo Horizontinas
50.
50 A importância da Pampulha para a arquitetura brasileira é medido pelo fato de seu conjunto arquitetônico e urbanístico ser considerado patrimônio cultural da cidade, do estado e do país. E atualmente candidata a Patrimônio Cultural da Humanidade. A hoje regional Pampulha nasceu em torno da lagoa artificial que foi construída no inicio da década de 1940, com o barramento de alguns córregos e ribeirões como o Pampulha, formadores da bacia do Ribeirão Onça e Ribeirão Arrudas ambos afluentes do Rio das Velhas que por sua vez desagua no São Francisco. Para compor o entorno da Lagoa, Oscar Niemayer, projetou um conjunto arquitetônico que serviu de influência para a arquitetura moderna brasileira, sendo segundo o próprio arquiteto um embrião da futura cidade-capital da Nação e de outras obras relevantes de sua autoria mundo
a fora. Destacam-se a Igreja São Francisco de Assis, o Museu de Arte da Pampulha, a Casa do Baile e o Iate
Tênis Clube. Além disso, os jardins de Burle Marx, a pintura de Cândido Portinari, os azulejos de Paulo Werneck e as esculturas de Ceschiatti, Zamoiski e José Pedrosa completam o conjunto da orla da lagoa. A orla da Lagoa da Pampulha concentra várias opções de lazer, como o Estádio Governador Magalhães Pinto, mais conhecido como "Mineirão", o ginásio do Mineirinho, o Jardim Botânico, o Jardim Zoológico, o Parque Ecológico, o Centro de Preparação Equestre da Lagoa e pistas para ciclismo e caminhada. Entretanto, sua região se expandiu muito além da orla da barragem e suas mansões, condomínios e chácaras, de modo que nas franjas dos córregos surgiram várias ocupações irregulares de moradias precárias. Algumas delas com o passar do tempo e a organização de seus moradores tornaram-se bairros com serviços urbanos e
Os anos 1950 são um período de transformações no perímetro urbano da
cidade planejada, com o surgimento de várias novas edificações e dos primeiros arranha-
céus, bem como de reformas viárias para acomodar os aproximadamente 500 mil
habitantes da agora metrópole belohorizontina. Este momento marca também um
deslocamento interno na cidade planejada, as classes médias e altas iniciam um processo
de migração interna para as margens sul da cidade planejada.
Os fora de lugar por sua vez continuam – a fazer a cidade – ocupando cada vez
mais as zonas suburbanas e atingindo a chamada zona rural, do projeto da cidade-capital.
Parte destes fora de lugar intensificam as ocupações das regiões montanhosas da cidade,
principalmente aquelas localizadas na zona sul e leste, vizinhas à região onde se
localizavam boa parte da demanda por seus serviços e trabalhos, em geral no setor
primário, braçal e doméstico.
Os anos 1960 assistem à explosão demográfica da cidade que, acompanhando
as demais capitais do sudeste, torna-se atrativa para os migrantes principalmente do
interior do estado e da região nordeste, em busca de oportunidades na nova região
industrial
51. A população da cidade atinge na década de 1970 a marca de 1.255.415
habitantes, o que significou um impressionante crescimento de quase 100% no período de
uma década e meia. Ao fim desta década a mancha urbana, os trajetos e projetos dos fora
de lugar alcançara todo o tecido urbano, suburbano e praticamente todo o tecido rural da
cidade-capital, que passou a avançar sobre as urbes vizinhas, tornadas cidades
dormitórios.
Desde meados dos anos 1960, a cidade planejada, hoje apenas uma parte da
região centro-sul, passa a abrigar uma cornubação de favelas ligando as franjas sul e leste
arruamentos, outras ainda se encontram classificadas pelos ordenadores do espaço urbano como informais e com possibilidades de atuação violenta do planejamento ordenador.
da cidade, com destaque para as aglomerações dos bairros São Lucas, Santa Efigênia e
Paraíso na zona leste e do Morro do Papagaio/Barragem Santa Lúcia
52encravados nos
bairros de classe média e alta da cidade. (Figura 3)
Figura 3: Mapas representando à progressão da mancha urbana da cidade de Belo Horizonte, a área tracejada de preto é a cidade planejada.Fonte: Anuário Estatístico de Belo Horizonte, 2003.
Os fins dos anos 1970 e os anos 1980 levam a cidade ao transbordo de seus
limites. A região norte e o distrito de Venda Nova – anterior à própria cidade-capital – são
totalmente ocupados, o mesmo ocorre com o distrito do Barreiro. Os anos 90 marcam
reacomodações das classes sociais ao longo da zona urbana e dos bairros agora mais
52 O Aglomerado Santa Lúcia, era o mar de luzes cintilantes que vi por detrás do computador enquanto escrevia parte deste trabalho, formada por quatro vilas: Vila Estrela, Vila Santa Rita de Cássia (Morro do Papagaio), Barragem Santa Lúcia, e Vila São Bento (Vila Esperança, Carrapato ou Bicão). Partes dos moradores de duas das Vilas são vítimas da política higienista da prefeitura que em nome de um discurso da ordem, da tecnicidade e do bem estar definido por este mesmo complexo científico-ideológico busca submeter os moradores a um novo ordenamento espacial, visto pelos que foram obrigados a ser beneficiários do projeto como restritivos. Na Barragem como em outras partes da cidade, o Estado por ser apresentar como detentor de um conhecimento técnico, arroga-se em melhores condições do que o próprio sujeito do direito em definir o que é bem estar e moradia digna que, neste caso, significa a imposição da residência em conjuntos de apartamentos com áreas úteis de cerca de 44 metros quadrados que são em geral inferiores às antigas residências autoconstruídas pelos moradores, para citar apenas elementos materiais. Do ponto de vista imaterial, a violência leva à própria eliminação dos modos de vida, saberes,
fazeres destes grupos, como no caso de praticantes de religiões não cristãs, carroceiros e outros saberes que
centrais da antiga zona suburbana. Esta reacomodação não impediu a continuidade do
crescimento pelas margens, cada vez mais distantes da cidade planejada, feita
principalmente por aqueles com menor rendimento econômico. O rearranjo do espaço
urbano representa a redistribuição de antigos e novos moradores pela cidade, em um
processo de aprofundamento da segregação econômica e étnico-racial.
As classes médias altas e altas readequam seu discurso segregacionista e do
medo em termos de uma busca idealizada de vida urbana em meio a natureza, e se
refugiam cada vez mais nas bordas sul da cidade, em bairros como Mangabeiras,
Belvedere e outros limítrofes com o município vizinho de Nova Lima e em um processo de
formação de bairros privados, ou de condomínios fechados.
Por sua vez, a combinação da diminuição de áreas livres, especulação
imobiliária, concentração fundiária, desenvolvimento econômico, “facilitação” no acesso
ao crédito, incentivos governamentais, restrição ao processo de autoconstrução e por fim
a realização de grandes eventos esportivos, levou a uma hipervalorização do preço dos
imóveis, de modo que a classe trabalhadora por razões diversas às das classes média e
alta, também busca cada vez mais as margens da cidade nos bairros dormitórios das
cidades vizinhas do cornubamento de Belo Horizonte.
Vê-se por esta rápida descrição que a cidade é construção de seus citadinos,
são estes os arquitetos e alicerces dos des-re-territoriamentos da cidade. A cidade e suas
regiões morais não se trata de uma ideação, mas de lugares que territorializam a vida
vivida (Figura 4).
Figura 4: Mapas representando à progressão da mancha urbana da cidade de Belo Horizonte, a área tracejada de preto é a cidade planejada. Fonte: Anuário Estatístico de Belo Horizonte, 2003.
Manzo demonstra a importância de uma Antropologia da e na cidade
produzida a partir das relações, práticas e representações dos sujeitos detentores das
palavras políticas e dos saberes, fazeres, viveres em um processo que contextualiza a
comunidade e a cidade como um movimento constante e contínuo de transversalização
de trocas e caminhos cruzados. Neste sentido, estudar Manzo não é recortá-lo do espaço
urbano da cidade de Belo Horizonte, recortá-lo deste espaço urbano, seria negar-lhes a
vida vivida e vivenciada na participação da cidade. (Figura 5)
Figura 5: A partir do mapa das unidades de planejamento da PBH, podemos ver alguns dos bairros e lugares conformados pelo encontro das regionais Centro- Sul e Leste (tracejo meu) trajetos, percursos e manchas urbanas citados no trabalho. Fonte: Anuário Estatístico de Belo Horizonte, 2003.