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CAPÍTULO 1 Mãe Efigênia: a cidade e o Ngunzo de Manzo

1.2 Belo Horizonte pela janela

Vista da janela do Terreiro de Manzo, no alto da Rua São Tiago, a cidade

descortina-se como um emaranhado de ruas e praças, casas e puxados incrustados nos

morros. Com suas casas, becos, ruelas, times de futebol, antenas e mais antenas de TV,

suas moças e rapazes pelo passeio conversando, flertando, de vez em quando apertando

um fino

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, os transeutes, a rapaziada da conversa fiada, o bêbado, o comerciante, as

senhoras em papos animados nos portões ou pelas ruelas, o carro da pamonha, as

intermináveis motos, dentre tantas paisagens. Deste lado, o morro, a favela, a Vila, a

cidade chamada de informal pelos burocratas municipais, as futuras pretensas zonas

especiais de interesse social - ZEIS - solução urbana para os burocratas democratas e bem

intencionados - e do outro, lá embaixo aos seus pés, a cidade que estes mesmos

31 Apertar um fino é uma gíria que designa um cigarro de cannabis preparado (ou bolado), em papel que pode ser de seda, folhas orgânicas de algumas plantas ou outro invólucro comburente.

burocratas chamam de formal, a cidade que é, em si mesma, a maior de todas as ZEIS para

os defensores dos (re) ordenamentos com suas praças, parques, bulevares, ruas calçadas,

prédios altos e luxuosos, com suas câmeras, porteiros negros e patrões brancos e suas

muitas proibições... A cidade formal em suas diversas gentes, que não comporta vazios em

sua cartografia oficial, mas que esvazia-invisibiliza e destrói a outra cidade informal, seus

modos, suas diver(sas)-gentes, organizações, saberes, viveres e sociabilidades.

Dualidade formal-informal é mais um dos modos como o discurso da ordem e

da tecnicidade achata a realidade urbana. Tal conceito opositivo toma o regular(izado)

como sinônimo de formalidade e a forma vivida e vivenciada pelos outros da citanidade

como o desordenado e o informal. A dicotomia entre os termos formal e informal não

indica como quer este discurso ordenador uma visão simétrica bipartite, dispostas de

maneira cartesiana – o que, em si mesmo, já seria um tipo de violência – mas ao contrário

como ilustra o caso de Manzo, constituem os termos e as ações de um regime

segregacionista de cidade. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: informal,

adj. de dois gêneros, significa: “o que não aparece ou se recusa a aparecer sob uma forma

definida”. Assim a cidade informal o é, na exata medida de seu devir-minoria, ou seja, a

potência de não ser totalmente codificável, desregulamentando o que se pretendia impor

a força, que transversaliza e cruza desmistificando o senso comum do que é ser e ter

carências, dentre outras operações desestabilizadoras da ordem. A realidade da cidade

vivida e vivenciada são as múltiplas potências organizativas das des-re-territorializações e

das formalidades-informalidades-desformalidades-reformalidades...

A cidade formal insiste em separar, de um lado, a cidade, outrora chamada de

Cidade Jardim, a cidade planejada, a cidade-capital, a cidade símbolo da República

nascente nos fins do século XIX. E, de outro a cornubação de favelas da zona centro-sul e

leste. Da janela de Manzo, o que se vê é a cidade cruzada com suas poucas áreas ainda

verdes, as grandes copas de árvores que se destacam aqui e acolá, os pedaços formais e

os informais que se transversalizam e se entrecortam, fazem caminhos cruzados. Ao fundo

a região central e para além desta, na linha poluída do Horizonte nem tão Belo, uma

mancha de cidade, que vista da janela é uma massa imponente e bela em sua feiura

cinzenta. Ao mesmo tempo aconchegante e assustadora. My homeland...

A cidade da infância ensolarada no entorno do bairro do Carmo e dos rôles

adolescentes pela Savassi. A cidade do grupo escolar Bueno Brandão e do Colégio Estadual

Central, com suas galeras, tipos, cores, estilos, músicas, apredizagens e rôles pelo coração

dos bairros da cidade formal. A cidade das tardes de adolescência na Biblioteca Pública, na

Praça da Liberdade. Da juventude na Federal

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. A cidade do Edifício Maleta, e suas

estórias, dos bares e botecos da juventude, a cidade de beleza singular em suas

madrugadas com suas luzes amareladas e seus ratos a passear entre os pés daqueles que

esperam pelo transporte coletivo - que porventura passará em algum momento.

A cidade dos movimentos da Praia da Estação, do Samba da Meia-Noite e do

Duelo de MC’s no viaduto Santa Tereza e na Praça da Estação

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. A cidade do quarteirão do

32 Modo em geral como os Belohorizontinos se referem à Universidade Federal de Minas Gerais. Se referir a

Federal, nestes termos de intimidade possui uma poética paradoxal em que a Universidade apesar de seus

isolamentos, seus muros, elitismos, impedimentos e pouca participação da minoria-majoritária dos moradores da cidade, torna-se ainda assim próxima e motivo de orgulho para estes seus mantenedores anônimos. A Federal foi onde graduei e, cursei mestrado, ajudei a fundar um grupo de pesquisa, e até tornei-me por um período seu professor substituto.

33 Trata-se de um conjunto urbano, constituído pela Praça Rui Barbosa, mais conhecida como Praça da Estação. Formada por duas grandes áreas, e um prédio imponente, o da Estação, a praça possui uma grande esplanada com fontes e monumentos. O segundo conjunto da praça do outro lado da Avenida dos Andradas é formado por jardins e esculturas. Além do conjunto monumental da praça e a estação, em seu entorno encontra-se outros prédios, como o Centro Cultural da UFMG, Centro Cultural 104, Edifício Central com suas galerias, a baixa Gaicurus, rua da prostituição que liga a Estação do Trem a Estação Rodoviária da cidade, chamada pelos belohorizontinos de a zona. Nesta praça tem-se início da Rua da Bahia - a mais celebre e celebrada da cidade-, e avenidas importantes como Amazonas e Andradas. Avizinha-se a Praça, em uma de suas margens o Viaduto de Santa Tereza desde sempre afamado por suas formas arrojadas e também por ser fonte de sociabilidade nas memórias e cancioneiros da cidade, como comprovam poemas e textos escritos por autores como Murilo Mendes, Carlos Drumond de Andrade – que na juventude, tal qual a turma

do pixo nos dias de hoje, escalava seus famosos arcos -, Roberto Drumond, Fernando Sabino. O viaduto foi

também ponte da passagem da cidade planejada para seus subúrbios não planejados. Por fim a direita do viaduto localiza-se o Parque Municipal, área verde e de lazer no coração da cidade, defronte ao Edifício da Prefeitura Municipal. Trata-se, portanto, de uma paisagem importante do centro da cidade e que “após ser

abandonada e ser considerada como uma área suja e de risco” segundo o dicurso da ordem e da técnica,

Soul

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e da Praça Sete, morada de Exu, Laroiê !!! com seus hippies no coração dos yuppies,

dos dançarinos de música Black, dos indígenas com seus artesanatos, dos artistas de rua,

dos pregadores evangélicos, das galerias de rock, dos movimentos pela diversidade sexual,

dos punks, lugar de fala e protesto dos movimentos sociais, com suas bandeiras e

manifestações.

A cidade de alguns amores e muitíssimas paixões, dos desencontros, da

violência cotidiana contra os diferentes

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, da escandalosa e absurda desigualdade social

gentrificadoras e segregacionistas, como cercamentos, a proibição do uso da Praça pelos seus habitués considerados pelo poder público, como desviantes. Em reação a estas atitudes, grupos principalmente de jovens, parte deles ligados aos cursos de ciências humanas e sociais, começaram a realizar uma série de eventos de ocupação desta região, que deu origem ao chamado Movimento Praia da Estação, que por sua vez originou o Movimento Fora Lacerda e reforçou o movimento iniciado anteriormente, por vários destes mesmos atores, de revitalização do carnaval de rua da cidade, feito de modo independente, sem patrocínios e formado por blocos de foliões. Este movimento veio a se somar e fortalecer movimentos realizados pelos jovens da periferia no Viaduto Santa Tereza, como o Duelo de MC’S: forma de ocupação daquele espaço com as artes do rap, break, grafite. E o Samba da Meia-Noite realizado por sambistas ligados as religiões de matriz afro-brasileira. Todos estes movimentos, somado as ocupações de terrenos por sem casas e de alguns edifícios abandonados tem propiciado novas ágoras para o debate sobre a cidade e suas formas de ocupação, bem como um espaço para o combate as violências de gênero, raça, orientação sexual, de valorização dos direitos humanos, e de uma nova cidadania a favor da diferença. Parte deste ideário estava contida – ainda que seu oposto também - no protesto dos 100 mil que marcharam da Praça Sete no centro da cidade até o Estádio do Mineirão no famoso confronto em que se transformou a cidade, em junho de 2013.

Para ver uma análise principalmente do ponto de vista do conjunto urbano e arquitetônico, mas sem perder de vista o fator político, ver: Trevisan, Eveline Prado. Transformação, ritmo e pulsação: o baixo centro de Belo Horizonte. Belo Horizonte, 2012. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.

34 O movimento Soul explodiu na Belo Horizonte dos anos 70 e foi um movimento étnico-político de resistência negra e de orgulho Afro. Sua existência ensejou uma série de pedaços e trajetos (Magnani, 2006; 2012) pela cidade. Suas roupas, cabelos, modos de dançar, cantar, cumprimentar e fruir a cidade no período da ditadura militar ensejou uma série de perseguições e proibições, ainda assim o movimento tinha suas casas de dança no centro da cidade e pela periferia. O quarteirão do Soul, que funciona na Rua Goitacazes, e na Praça Sete, no centro da cidade, surge nos anos 2000 quando DJ Geraldinho lavador de carros nesta rua do centro encontrou seu parceiro das antigas Ronaldo Black, e ambos resolveram dançar ao som do soul que tocava no carro de Ronaldo. Daí surgiu à ideia de chamar outros velhos amigos e companheiros para ocupar e dançar nas tardes de sábado nesta rua do centro. Ver: Ribeiro, Rita Aparecida da Conceição. IDENTIDADE E RESISTÊNCIA NO URBANO: O QUARTEIRÃO DO SOUL EM BELO HORIZONTE. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais, 2008.

35 Neste sabado 26 de outubro de 2013, em que esboçava estas memórias, surigiu bravamente mais uma ocupação na cidade de Belo Horizonte, no movimento que se intensificou desde fins do ano de 2011 de

com seus bairros de mansões e seus condomínios fechados avizinhados de vilas e favelas,

a cidade do preconceito e do racismo aqui e acolá.

reocupação da polis e de suas ágoras. Desta feita, a ocupação não fora a Praça da Estação tornada Praia da

Estação, ou o Viaduto Santa Tereza com o Samba da Meia Noite – em homenagem aos Exus das Ruas, nem

mesmo o Duelo de Mcs, ou o carnaval de rua independente e feito contra as proibições de se usar as ruas

centrais da cidade. Desta feita a ocupação denominada Luís Estrela ocorreu no bairro de Santa Efigênia,

onde se localiza Manzo, em um antigo e abandonado sobrado transformado agora em espaço cultural para artistas de e da rua.

“Dia 26 de junho [refere-se a o ano de 2013] foi um dia enigmático em BH, último jogo da Copa Das Confederações e a cidade de pé em uma grande manifestação. O desfecho foi uma batalha que se espalhou do mineirão até as ruas do centro da capital. Verdadeiro cenário de guerra onde a PM perdeu totalmente o controle de suas ações e o caos predominou. Vários relatos sobre grupos que se dispersaram pela cidade em arrastões surgiram no dia seguinte, entre estes, uma notícia triste: um morador de rua foi espancado até a morte. Pessoas que participam de grupos que acompanham os moradores de rua ficaram estarrecidos ao saber quem foi a vítima: Luis Estrela, um jovem que teimava em ser artista, que fazia da rua o seu palco, dos curiosos platéia, de roupas usadas figurino de gala. Bailarino de sonhos, cheio de caras e bocas, herói e marginal, que podia perder tudo, menos o senso de humor ácido e a coragem. Assim como outros dois mil moradores de rua sua morte segue sem nenhuma pista. Ninguém sabe, ninguém viu quem agrediu Luis Estrela. Alguns relatos dão notícias de um grupo de espancamento que estava batendo nos moradores de rua indiscriminadamente. Dizem que Luis apanhou até morrer, outros dizem que durante o espancamento ele teve uma crise de convulsão e em todos os relatos uma pista em comum: o medo. Os que viram e sabem quem comandava este grupo tem medo de falar e sabe muito bem porque. As ruas de BH não são seguras e os boatos de grupos de espancamento e intimidação parecem mais reais. As vésperas da Copa das Confederações, nos meses de maio e junho, a fiscalização municipal intensificou suas ações na tentativa de recolher os pertences dos moradores de rua – cobertores, papelão, mochilas com objetos pessoais, utensílios de cozinha, entre outros – para inviabilizar a permanência nos lugares públicos. Mesmo com a recomendação do Ministério Público que proíbe tal prática, ela permanece e conseguimos registrar um Boletim de Ocorrência flagrando fiscais em atuação no dia 28 de junho. Relatos das ruas nos informam que em regiões nobres da cidade um carro branco circula nas madrugadas e seus ocupantes agridem os moradores que dormem na região. Entre as ações de fato, praticadas pelo poder público e as ações isoladas aqui comentadas, nos preocupamos com o momento em que elas se unem, a realização de um mega-evento, no caso a Copa Fifa 2014. As exigências da Fifa, mais o desejo do poder público de apresentar uma cidade limpa e organizada pode render a perseguição e morte de vários outros moradores de rua, numa onda crescente que já estamos vivenciando este ano. Luis Estrela se foi como um cometa, não voltará e deixou por aqui marcas incríveis de humanidade. Definitivamente não podemos aceitar que um crime como este entre apenas para as estatísticas de “crimes sem solução” e seja acobertado com o movimento para os jogos da Copa. Não podemos deixar que a impunidade seja a cortina que esconde pessoas organizadas para limpar a cidade dos moradores em situação de rua e que aproveitam o momento para aterrorizar a todos. Por tudo isso não podemos nos calar e perguntamos: O que aconteceu com Estrela? (...)Uma política de higienização e gentrificação está em prática no nosso país (justamente no período em que nos será imposta a Copa da Fifa…), em especial nas cidades-sede do grande evento. Belo Horizonte que o diga! Somente nos últimos dois anos foram mortos mais de 100 (isso mesmo, cem) pessoas em situação de rua e vulnerabilidade social na capital mineira, uma média aproximada de um a cada semana. Nos últimos dias porém, a coisa engrossou. Somente de 24 a 27 de agosto QUATRO foram mortos em BH. Um absurdo, crueldade, verdadeiro extermínio!” (http://atingidoscopa2014.wordpress.com/)

1.3 Regional leste da cidade de Belo Horizonte: alguns apontamentos sócio-