CAPÍTULO 1 Mãe Efigênia: a cidade e o Ngunzo de Manzo
1.5 As regiões morais da capital mineira
O Estado das Minas Gerais dos fins do século XIX reunia a maior população do
Brasil, com cerca de três milhões e duzentos mil indivíduos. O contingente populacional,
bem como a extensão do estado e a descentralização do poder, que era vista como “um
problema” levaram a mudança da capital do Estado e a fundação de uma cidade-símbolo a
ser erguida de modo monumental a partir de um modelo técnico-científico de organização
do meio urbano, que servisse como um espetacular(izado) surgimento de uma nova época
política, social, econômica dentre outras.
É digno de nota que a tentativa de mudança da capital mineira, segundo Junia
Caldeira (1998) já havia se manifestado antes em 1789 - Inconfidência Mineira - e
posteriormente em 1821, 1833, 1843, 1851, 1867, mas o projeto só se realizou com a
proclamação da República, deste modo, em 1891 a nova constituição republicana do
importantes para a qualidade de vida e o bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais.
47 Em seu artigo primeiro a lei define a área de abrangência da APA Art. 1º - Sob a denominação de APA Sul
RMBH, fica declarada Área de Proteção Ambiental a região situada nos Municípios de Belo Horizonte, Brumadinho, Caeté, Ibirité, Itabirito, Nova Lima, Raposos, Rio Acima e Santa Bárbara (Figura 01), com a delimitação geográfica constante do Anexo deste Decreto.
estado de Minas Gerais trazia em seu artigo 13 a seguinte determinação: “Art.13 é
decretada a mudança da capital do Estado para um local que, oferecendo as precisas
condições higiênicas, se preste à construção de uma grande cidade”.
A nova capital mineira, deveria ser como consta na declaração de mudança da
capital, “um novo espaço higiênico e grandioso, o que significa não colonial, limpo, varrido
pela luz, visível para o controle, em suma, moderno”. Para Veiga (1994) a nova capital era
um laboratório de experiências que tinha como finalidade fabricar uma urbanidade
entendida como modernidade. Este processo de uma nova época, para Paula e Monte-
Mór (2000), fez partes dos esforços republicanos de “mudar para não transformar”. Belo
Horizonte seria metáfora da nova ordem, aquela que mudou para manter tudo como
antes. Nas paragens mineiras o projeto ordenador, apesar de modernizador no sentido
urbano, deveria coadunar e reforçar as tradições mineiras e os valores da mineiridade. A
nova capital deveria ser, portanto moderna na forma e tradicional no conteúdo. Pimentel
(1989:27) corretamente afirma que “o moderno, na verdade, refaz e aprofunda a
dominação. (...) hoje burguesia, urbana e industrial. Ontem, senhorial e agrária”.
Em 1895, tendo como norte o cientificismo positivista da época
48, é aprovado
o projeto do engenheiro carioca Aarão Reis, inspirado no higienismo de Haussman e nos
traços simétricos de L’Enfant. O projeto refletia o temor pela desordem urbana gerada
pela imprevisibilidade, bem como o pavor pelos conflitos entre atores de diferentes
segmentos sociais. E deste modo, além de celebrar a nova época respondia aos
incômodos que parte das elites mineiras sentia em relação a Ouro Preto e sua divisão
frouxa do espaço urbano entre os diferentes grupos sociais. Segundo o regulamento da
comissão construtora da nova capital, a mesma se organizaria do seguinte modo:
48 Para maior entendimento das questões políticas envolvidas na mudança da capital ver Junia Caldeira (1998) Pimentel (1989), Veiga (1994) Gomes (2004), Guimarães (1991).
(...) a planta da futura cidade dispondo-se na parte central, no local do atual arraial, a área urbana de 8.815.382 m², dividida em quarteirões de 120x120 m, pelas ruas largas e bem orientadas, que se cruzam em ângulos retos e por algumas avenidas que as cortam em ângulos de 45º. Às ruas fiz dar a largura de 20 m, necessária para a conveniente arborização, a livre circulação de veículos, o trafego dos carris e os trabalhos de colocação e reparações das canalizações subterrâneas. Às avenidas fixei a largura de 35 m, suficiente para dar lhes beleza e o conforto que deverão, de futuro proporcionar a população. Apenas a uma das avenidas, que corta a zona urbana de norte a sul, e que é destinada a ligação dos bairros opostos, dei a largura de 50 m, para constituí-la em centro obrigado da cidade, e assim forçar a população, quanto possível a ir se desenvolvendo do centro para a periferia como convém a economia municipal, à manutenção da higiene sanitária, ao prosseguimento regular dos trabalhos técnicos. Essa zona urbana é delimitada e separada da suburbana por uma avenida do contorno, que facilitará a conveniente distribuição dos impostos locais, e que, de futuro será uma das mais apreciadas belezas da nova cidade. A zona suburbana, de 24.930.803 m², em que os quarteirões irregulares, os lotes de áreas diversas e as ruas traçadas de conformidade com a topografia e tendo apenas 14 m de largura – circunda inteiramente a urbana, formando vários bairros, e é, por sua vez envolvida por uma terceira zona de 17.747.619 m², reservada aos sítios destinados à pequena lavoura. 49
A carta acima do engenheiro responsável pelo projeto e pela construção da
nova capital não deixa dúvidas, a mesma nasceu sobre o signo do novo, da ordem, do
planejamento, do progresso, da organização, da técnica e da razão. Um modelo que
pretendia abolir as diferenças vistas como desarmônicas, mas não as desigualdades. Neste
projeto, como se vê acima, a diversidade deve ser combatida em nome de uma
normatização que busca a homogeneização e a imposição de uma ordem classificatória
pelos detentores da palavra política, ou seja, as elites econômicas e políticas.
Belo horizonte, foi definida pelo projeto de Aarão Reis, como uma cidade
concêntrica, dividida em três zonas: urbana, suburbana e rural. A zona urbana planejada
tem um traçado, que segue parâmetros geométricos em que se privilegiam os ângulos
retos para as vias principais e as diagonais para as vias secundarias conformando um
quadro de rigidez interna e uma clara delimitação das zonas (ver croqui abaixo). Apesar de
moderna, Belo Horizonte, possuía uma Avenida do Contorno, que delimitava não apenas
de modo simbólico, mas geograficamente a zona urbana e planejada das demais zonas:
suburbanas e rural de planejamento precário ou inexistente (Figura 1).
Figura 1: Planta Geral da Cidade de Belo Horizonte em sua inauguração, a regiao rasurada é a zona urbana.
Fonte: http://goo.gl/kFxgBy
Uma cidade que deveria se ver como centro, portanto sem espaços para os
entredois (Agier, 2011) e para a vida vivida e vivenciada, ou seja, a vida experienciada que
funda a cidadania. Nas palavras de Aarão Reis “para constituí-la em centro obrigado da
cidade, e assim forçar a população, quanto possível a ir se desenvolvendo do centro para a
periferia como convém a economia municipal, à manutenção da higiene sanitária, ao
prosseguimento regular dos trabalhos técnicos” ou então “um novo espaço higiênico e
grandioso, o que significa não colonial, limpo, varrido pela luz, visível para o controle, em
suma, moderno”, uma cidade sem margens para os hors-lieux (Agier, 2011) e para novos
espaços-tempos, que não se conformam nem demasiado dentro e nem demasiado fora do
centro obrigado e forçado da cidade e da população.
Os entredois, os lugares de fora que o projeto ordenador da nova capital quis
eliminar são as trocas e caminhos cruzados que tornam possível, a transformação do
espaço em um fluxo de des-re-territorialização e por consequência buscou-se eliminar as
diferenças, a política em sua dimensão potencial de palavra na polis. Manzo é a
exemplificação da continuidade deste projeto, mas é ao mesmo tempo uma de suas
principais denúncias.
Manzo se apresenta a esse modelo, como o dificilmente controlável, o que as
elites construtoras da nova capital e as elites atuais ainda temem. Belo Horizonte, nasce
como cidade, na mesma medida em que se tentou negar seu caráter citadino. Berenice
Guimarães (1991), em “Cafuas, barracos e barracões”, reconstrói a tentativa de negar à
cidade aquilo que chamo aqui de sua citadinidade (inspirado em Agier 2011). Trata-se da
imposição de um ordenamento violento, de negação da diferença através da expulsão
fisica daqueles que carregavam no corpo e nas atitudes a diferença indesejada. Ao mesmo
tempo, Guimarães mostra como, e esta é sua principal contribuição ao debate, desde
sempre este modelo foi questionado e violado pelos sujeitos, que mesmo subalternizados
foram participantes da construção da verdadeira citadinidade, a partir de suas
resistências. Pimentel ao analisar o surgimento da nova capital chama a atenção para o
fato de que:
Belo Horizonte é a imposição de uma urbis planejada claramente para delimitar os espaços das classes sociais. Não que Ouro Preto ou as demais cidades coloniais não fossem segregadoras. Claro que eram, mas o “plano da cidade” era fortuito, aleatório. Nelas não nos deparamos com a intervenção do Estado para marcar os lugares como se verá depois na Paris de Haussmann, na Viena de Sitte e Wagner, no Rio de Janeiro de Pereira Passos e na Belo Horizonte de Aarão Reis. (Pimentel, 1989:28)