Carlos Eduardo Marques
Bandeira Branca em Pau Forte:
A Senzala de Pai Benedito e o Quilomblé Urbano de Manzo Ngunzo Kaiango.
Campinas
2015
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
CARLOS EDUARDO MARQUES
Bandeira Branca em Pau Forte:
A Senzala de Pai Benedito e o Quilomblé Urbano de Manzo Ngunzo Kaiango.
Orientadora: Prof.a Dr.a Emília Pietrafesa de Godoi
Tese de Doutorado apresentada ao Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas para
obtenção do Título de Doutor em
Antropologia Social.
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO CARLOS EDUARDO MARQUES E ORIENTADA PELA PROF.a DR.a EMÍLIA PIETRAFESA DE GODOI
CAMPINAS
2015
Resumo
A presente tese trata do processo de des-re-territorialização da comunidade de
Manzo. A partir da análise de aspectos da vida vivida e vivenciada pelos moradores de
Manzo, constato que a experiência religiosa do Candomblé emerge como central na
criação do quilombo urbano Manzo Ngunzo Kaiango. Analiso como as práticas, as ações e
as represent(ações) perfazem o lugar e o habitar dos quilomblecistas. Para tanto,
privilegio a análise sociocosmológica das trocas e dos caminhos cruzados através da
expressão êmica tomada da palavra política entendido como uma cosmopolítica.
Abstract
This thesis treats with the process of de-re-territorialization of Manzo
Community. From aspects of the life lived and experienced by quilomblecistas of Manzo,
I’ll present as religious experience of Candomblé emerges as central for the awakening of
the sense of Community, as well creates a urban Quilombo in the city, Manzo Ngunzo
Kaiango. As well as analyze the process in which practices, actions and representa(c)tions
make up the place and dwell of quilomblecistas. Insomuch, this thesis will present a
sociocosmological analysis of exchanges, crossed paths and crossroads through the emic
expression of political speech taking understood as cosmopolitics.
SUMÁRIO
RESUMO ... VII
ABSTRACT ... IX
AGRADECIMENTOS ... XV
LISTAS DE SIGLAS ... XXI
LISTAS DE FIGURAS E IMAGENS ... XXIII
INTRODUÇÃO: Senzala de Pai Benedito ... 1
A etnografia como percurso de pesquisa ... 10
PARTE 1 O CANDOMBLÉ: A SENZALA DE MANZO NGUNZO KAIANGO ... 27
CAPÍTULO 1 - Mãe Efigênia: a cidade e o Ngunzo de Manzo ... 29
1.1 De perto e de dentro, memórias cartográficas de Mãe Efigênia sobre a cidade de Belo Horizonte... 29
1.2 Belo Horizonte pela janela ... 37
1.3 Regional leste da cidade de Belo Horizonte: alguns apontamentos sócio-históricos ... 42
1.4 Santa Efigênia ... 43
1.5 As regiões morais da capital mineira ... 48
1.6 Belo Horizonte: uma cidade fora do lugar ... 55
CAPÍTULO 2 - Senzala de Pai Benedito ... 63
2.1 - Manzo é a Senzala de Pai Benedito ... 67
2.2 A Senzala é Angoleira... 79
Capítulo 3 - Manzo N’gunzo Kaiango... 93
3.1 - Manzo é Angoleiro... 95
Capítulo 4 - A Senzala, o Abassá e o Abantu do Quilomblé... 115
4.2 A estrutura física do Abassá... 121
4.3 A estrutura cosmológica do Abassá ... 126
4.4 - O Abantu ... 133
PARTE 2 A SENZALA É UMA COMUNIDADE QUILOMBOLA ... 153
Capítulo 5 - A Comunidade da Senzala ... 155
Capítulo - 6 O Quilomblé de Manzo: a tomada da palavra-política ... 171
6.1 Caminhos cruzados, palavras trocadas, caminhos trocados, palavras cruzadas: Manzo incorpora o Quilombo ... 173
6.2 A palavra-política como cosmopolítica ... 189
6.3 A Kizomba é uma palavra política ... 198
6.4 Tornar-se quilombola como palavra política ou como falar de categorias reificantes como raça, etnia e religião ... 209
6.5 O Quilomblé de Manzo: a tomada da palavra política e o território quilombola como patrimônio ritual ... 220
Capítulo 7 Toque para Pai Benedito ... 228
Capítulo 8 A Senzala e as políticas públicas ... 252
8.1 A desocupação de Manzo: repercussões, mediações e desdobramentos ... 254
CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 292
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 302
Dedico a minha mãe, Natalina:
mulher, negra, migrante, mãe, pai...
Agradecimentos
Aluvaiá, Bombojira, Pambu Njila são variações nominais, para se referir ao Inquisse
responsável pela proteção e comunicação entre as divindades e os homens. Pambu Njila faz a
comunicação com os outros Inquisses, sem as quais as trocas não se realizariam e os caminhos não
se cruzariam. Pambu na língua Kimbundu significa a encruzilhada, e Njila o caminho, portanto
Pambu Njila é Nganga – senhor – das encruzilhadas e dos caminhos. Dono dos cruzamentos,
atalhos, caminhos, fronteiras, subidas, decidas, é o movimento, a transversalização das ligações e
rupturas, idas e vindas, mudanças e permanências,
linha de fuga e chegada, transversalização de
tempos e cosmos, o princípio e o fim ao mesmo tempo
.
Pambu Njila é o Ngunzo – força vital – que ele participa e representa em um só ato.
Permitindo assim transversalizar a vida vivida e vivenciada. Pambu Njila é a ancestralidade, a vida
vivenciada e o devir. Sem Pambu Njila nada pode existir, e muito menos as páginas que se
seguem. KIUÁ NGANGA PAMBU NJILA!!! KIUÁ NJILA. AUETO !!!
KIUÁ NGANGA PAMBU NJILA! Salve o Senhor dos Caminhos
Cantigas em homenagem a Pambu Njila. Ritual de abertura dos trabalhos no Candomblé de Manzo Pambu Nijila Vem Tomar Xoxô
Mavilutango Mi Kota Ilê, Mavilê Mavilutango Mikota Ilê, Mavilê
Kijanjá Kijanja ê De Kakauere Sinzamunzilê
Anda Sissa Sissa Lukaia Anda Sissa Sissa Lukaia
Sisseua ganguê Sisseuá Ganguê Biolê Biolê Biolata
É Um Bikakakô
Tenda Tenda Bombogira Tendaió
Tenda Tenda Bombogira Tendaió
Mavile, Mavile, Mavambo Ê Compenso ê, á, á, á
Ê Compenso á Mavile, Mavile, Mavile,
Mavilutango Ê Compenso ê, á, á, á Oiá, Oiá Zé, Zé, toma lá
deixa cá Deixa cá, toma lá
Nzila Apavenam Nzila Apavenam Nzila Apavenam Nzila
Apavenam
Na Sua Aldeia ainda ê Nzila Apavenam
Aê, Aê Pambu Njila Aê, Aê Pambu Njila, Aê, Aê Pambu
Njila vamos trabalhar Leva as quizilas dessa Casa para o lado de lá. Laroiê!!!
A minha mãe por seu incentivo e muitas vezes abdicação em prol da minha caminhada.
Por sua luta e carinho essa caminhada e esse sonho também são seus.
Aos amigos quilomblecistas de Manzo faltam-me palavras de agradecimentos pela
amizade e sobram emoções, que como apreendi lá, chama-se ser da família. Aos parentes de
Manzo principalmente Makota Cássia e Mãe Efigênia pelos Ngunzos, ensinamentos, carinhos,
paciência e confiança, peço Agô (licença, permissão, perdão e proteção).
A Professora Dra. Emília P. de Godoi por sua orientação sensível e pelo apoio ao longo da
realização desse trabalho.
Ao estímulo e carinho às vezes intelectual, às vezes afetivo, às vezes militante de diversos
amigxs, colegxs e professorxs que fizeram parte dessa caminhada desde a graduação. De forma
especial àqueles que ajudaram a consolidar a ideia de que o fazer cientifico não pode se distanciar
do comprometimento social.
Aos amigxs que nos momentos em que me faltaram fé, seja nas coisas da tese e do
doutorado, seja nas coisas da “vida fora do doutorado”, foram as pedreiras
1que me sustentaram.
A gratidão quase impossível de se dizer em palavras a Pedro Moutinho, amigo, irmão,
companheiro de debates diuturnos, pela paciência com minhas viagens, empolgações ou
depressões; pelo convívio em campo duante visitas à Manzo, e acima de tudo pelo conforto da
amizade e pela irmandade de esteira. Daniel Martins amigo de uma vida toda e de todas as horas,
“dentro e fora” da tese. Patita e Rê (Renata Nobrega) housemates que me aguentaram dividindo o
mesmo teto. Alex amigo de caráter e bondade impar. A Lilian Gomes amiga com a qual se pode
contar nas horas difíceis da vida pessoal e com quem pôde discutir alguns dos temas expostos
nesse trabalho. Amanda pelo carinho, apoios, sorrisos, constâncias e também pelas leituras,
comentários, correções. Ao Gustavo, Ric, Sarita pela amizade, trocas, alegrias, brains storms. A
Sarita gratidão pela formatação final da tese e ajudas na organização final do material. A Fernanda
Oliveira, Bia Acioly, Helena Dolabella companheiras nas lutas em Manzo. Igão, Dieguito, Lu, Carol,
Patita, Rê e Julian por tornar Campinas um bom lugar para se viver. A Marcela Mendes pelo
companheirismo e bons momentos em terras Campineiras e do Mucuri. Elias pela amizade, pelas
conversas político-ideológicas, pelos refúgios em Sampa. A Patita (Patricia Carvalho) e ao Rafa
Barbi pelos debates teóricos principalmente no começo do doutorado. Dani Rezende pela leitura
atenta de um dos debates com a ciência política. Ana Estrela parodiando-a: “pelas discussões
inspiradoras até e pelas madrugadas”. A Angeka Murakami pela amizade e por me aguentar pelos
longos devaneios poéticos. A Aninha (Ana Lúcia Mercês) querida amiga sempre atenta e a
disposição para uma boa conversa e para resolução de problemas burocráticos acadêmicos.
Aos colegas que percorreram comigo esse percurso desde a graduação. E em especial aos
que se tornaram amigos durante a travessia, tais como Daniel, Daniela Rezende (Dani), Evelin
Malaquias, Lidiane Nunes (Lid), Vanessa Costa, Juliana Batista (Jú), Cassiana Torres (Cass), Rodrigo
Ednilson, Denis, aos amigos do Balu Mágico (“clube futebolístico, etílico, grêmio recreativo,
político...”): Bruno Malaco, Túlio Fortes, Alexandre Coubain, Lilão, Alisson, Daniel, Alvino, Leoncio
1 Existe um ponto de exaltação e de agradecimento, que os filhos de Zazi agradecem as trocas e Ngunzos, com ela agradeço a esses queridíssimos participantes desse processo: “Meu Pai São João Batista é Xangô/
Dono do meu destino até o fim/ Se um dia me faltar, a fé no meu senhor/Derrube essa pedreira sobre mim (...) Xangô Meu Pai/É tão bonito olhar suas pedreiras /E lá no alto das pedreiras de Meu Pai/ Ele nos dá suas forças”
entre outros. Aos amigos e companheiros do Observatório da Juventude e Ações Afirmativas pelo
aprendizado e por mostrar que é possível fazer uma ciência compreensiva e comprometida, de
forma especial a Fernanda Dias (Fezinha), a Fernandinha e Elias. Aos demais companheiros tenazes
de lutas por serem tantos, sintam-se todos agradecidos.
Aos amigos do Núcleo de Estudos Quilombolas - NuQ, que bom ver que o nosso grupo de
estudos e leituras (GAIE), em aproximadamente nove anos se tornou um grupo de pesquisa e
extensão referência com as comunidades quilombolas, ciganas e povos tradicionais. Agradeço
principalmente aos que semearam conosco o GAIE e colhem hoje essa realidade que é o NUQ:
Evélin, Vanessa, Rafael Barbi, Ana Tereza (Tête), Fernanda Oliveira, ao estímulo inicial do professor
Carlos Magno e a coordenação da professora Deborah Lima. Especialmente ao Alex Sampaio,
colega, amigo, companheiro e comparsa no dia-a-dia do núcleo. A querida amiga e agora colega
nas antropologias Helena Dolabella. Aos demais colegas que passaram ou passam pelo NuQ meus
agradecimentos pelas trocas constantes: Mariana Frizeiro, Flora, Marilene, Dudu, Pedro Moutinho,
Juliana Campos, Maurício, Amanda Horta, Bia Accyoli dentre outros.
Aos amigos formados, no longínquo ano de 2004, na então Gerência de Valorização do
Patrimônio e das Identidades Culturais da Secretaria Municipal de Cultura (GEVPI/SMC). A
realização do Inventário sobre as Tradições de origem Afro-brasileira na cidade de Belo Horizonte,
por um lado me permitiu perceber o quanto à cidade desconhece e é devedora a essa sua matriz
formativa e, por outro foi uma das origens das inquietações que animaram várias das minhas
pesquisas. Sou grato ao Marcelo Vilarino pelos ensinamentos do sensível e do respeito pelo outro.
A Denisia Martins que inclusive no âmbito dessa tese me apresentou duas dissertações sobre o
Candomblé em Belo Horizonte.
Aos colegas formados no mestrado, especialmente Lucas, Sandra, Marisa, de forma
especial ao Ricardo, não somente amigo, mas companheiro nas primeiras horas de militância nas
questões referentes aos quilombolas e grande fonte inicial de informação, leituras, debates e
contatos dentro da temática. Marcos Rezende amigo feito a partir da amizade com o Ricardo,
companheiro de lutas quilombolas, literaturas, cinema, futebol. Ana Tereza e Fernanda pelas
parcerias na CAMPO.
Aos queridos de turma de doutorado Patita (Patricia Carvalho), Igão (Igor Scaramuzi),
Desirée Azevedo e Inácio Franco e aos colegas da corte 2011 do mestrado: Carol (Ana Carolina
Campos Almeida), Julian, Dieguito, Camila Midori, a comunidade ampliada de antropólogos de
Barão: Carmem Andriolli, Lucybeth, Ana Francesco, Bob, Eva, Mari Shinorrara e Antônio, Patrik
Thames, Lu Cadernas, Mateus Zani pela amizade, convívio, camaradagem, festas, trocas,
hospedagens solidárias, assistências mútuas - materiais e imateriais - naquela que se tornou nossa
comunidade ainda que às vezes à distância.
Aos colegas de disciplinas da pós e de conversas pelas mesinhas do IFCH: Bruna, Hugo,
Stella, Aline, Luísa, Lari, Fabi, Mariana Petroni, Enerneck, Nat Corazza. Aos colegas de CERES, do
Lata-Ceres e da Revista Ruris, que ao longo desses anos foram espaços de acolhimento e debates,
especialmente Bob, Márcia Nóbrega, Dieguito,Nash Loera, Mariana Chaguri, Rê.
Aos professores, que desde a graduação passando pelo mestrado foram constantes fontes
de incentivos, em especial Eduardo Vargas, Leonardo Fígoli, Ruben Caixeta, e principalmente a
Deborah Lima. Um agradecimento especialíssimo de gratidão a Ana Lúcia Modesto, professora,
amiga e orientadora da monografia e da dissertação que antecederam esse momento. Marlise
Mattos, Bruno Reis, Andréa Zhouri, Lurdinha (Maria de Lourdes Dolabella) in memorian, Nilma
Lino Gomes e Juarez Dayrell (os dois últimos da Faculdade de Educação) pela convivência, debates,
excelentes aulas e acima de tudo compromisso com um fazer transformador e libertador. Ao
professsor Leo Avritzer pelo oferecimento de estrutura e apoio para a realização da tese, através
do Observatório da Justiça –PRODEP/DCP. Da “nova geração” ao Aderval pelas constantes trocas,
a Ana Flávia amiga desde a época de outras lutas antropolíticas, Bia Mendes e Rogério do Pateo
pelas boas conversas e convivências, a Érica pelas palavras sempre carinhosas e de incetivo, a
Karenina Andrade além de tudo pelos refúgios em sua casa, ao Ruben Silva pelas palavras sempre
de incetivo.
Aos professores do PPGAS-UNICAMP pelas sugestões e incentivos. Meus agradecimentos a
Ronaldo Almeida pelas vivências e pelas sugestões e leituras. Chris (Christiano Tambascia) que
gentilmente debateu parte de um dos capítulos desse trabalho. Mauro Almeida sempre uma
referência ética e teórica. A John Monteiro (in memorian) de convivência fugaz, mas marcante e
especialmente a Nádia Farage, excelente professora, exemplo de decência e ponto de apoio
afetivo, intelectual e político (relato aqui uma história exemplar da relação da professora Nádia
com seus alunos): Era o primeiro dia letivo de aula, uma sexta-feira pós carnaval. Após o fim da
aula, a professora Nádia me procura e afirma: você é o Carlos né, que foi orientando da querida
professora Ana Modesto? Eu: - sim sou eu. A professora Nádia: - que bom te conhecer. Olha só, é
assim: você já tem lugar para morar. Se quiser pode ir para minha casa. Pode ficar lá, imagino que
talvez não tenha lugar ainda aqui em Barão Geraldo!
Por fim, mas não menos importante agradeço aos Profa.Dra. Ilka Leite (UFSC), Renata
Paoliello (UNESP), Wilson Penteado (UFRBa), Daniel Simião (UnB), Mauro Almeida (UNICAMP),
José Maurício Arruti (UNICAMP), Ronaldo Almida (UNICAMP) E A Deborah Stucchi (MPF) -
participação na banca de qualificação - por aceitarem participar das bancas avaliativas desse
processo.
Agradeço aos cocidadãos anônimos principalmente àqueles das camadas sociais menos
privilegiadas – e que tem via de regras seu acesso negado às universidades públicas - pela
concessão, através da CAPES, de uma bolsa que foi essencial para o desenvolvimento da tese aqui
apresentada.
Saravá Meu Pai Benedito!!! Adorei as Almas!!!
Yá Yá Massemba Roberto Mendes e Capinam Que noite mais funda calunga No porão de um navio negreiro Que viagem mais longa candonga
Ouvindo o batuque das ondas Compasso de um coração de pássaro
No fundo do cativeiro É o semba do mundo calunga Batendo samba em meu peito
Kawo Kabiecile Kawo Okê arô oke
Quem me pariu foi o ventre de um navio Quem me ouviu foi o vento no vazio
Do ventre escuro de um porão Vou baixar no seu terreiro Epa raio, machado e trovão
Epa justiça de guerreiro Ê semba ê
Samba á o Balanço das ondas Nas noites mais longas
Me ensinou a cantar Ê semba ê
Samba á
Dor é o lugar mais fundo É o umbigo do mundo
É o fundo do mar Ê semba ê
Samba á No balanço das ondas
Okê aro
Me ensinou a bater seu tambor Ê semba ê
Samba á
No escuro porão eu vi o clarão
Do giro do mundo Que noite mais funda calunga No porão de um navio negreiro Que viagem mais longa candonga
Ouvindo o batuque das ondas Compasso de um coração de pássaro
No fundo do cativeiro É o semba do mundo calunga Batendo samba em meu peito
Kawo Kabiecile Kawo Okê arô oke
Quem me pariu foi o ventre de um navio Quem me ouviu foi o vento no vazio
Do ventre escuro de um porão Vou baixar no seu terreiro Epa raio, machado, trovão Epa justiça de guerreiro
Ê semba ê ê samba á
é o céu que cobriu nas noites de frio minha solidão
Ê semba ê ê samba á
é oceano sem, fim sem amor, sem irmão ê kaô quero ser seu tambor
Ê semba ê ê samba á
eu faço a lua brilhar o esplendor e clarão luar de Luanda em meu coração
umbigo da cor abrigo da dor
a primeira umbigada massemba yáyá massemba é o samba que dá
Vou aprender a ler Pra ensinar os meus camaradas!
Vou aprender a ler Pra ensinar os meus camaradas!
Listas de siglas
ALMG – Assembléia Legislativa de Minas Gerais
CEABRA – Coletivo de Empresários e Empreendedores Afro-brasileiros em Minas Gerais
CENARAB – Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira
CEPIR – Coordenadoria Estadual de Promoção da Igualdade Racial
CONEPIR – Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial
CPIR/PBH – Coordenadoria de Promoção da Igualdade Racial da Prefeitura de Belo Horizonte
DPE-MG– Defensoria Publica Estadual
DPU– Defensoria Publica Federal
EDH – Escritório de Direitos Humanos
EDUCAFRO – Pré-vestibular comunitário Educação e Cidadania de Negros(as) e pessoas da camada
popular.
FAFICH/UFMG – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas
Gerais
FCP – Fundação Cultural Palmares
ICP – Inquérito Civil Público
IEPHA – Instituto Estadual de Patrimônio Histórico e Artíistico de Minas Gerais
IFCH/UNICAMP – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPHAN – Instituto Patrimônio Histórico e Artíistico Nacional
MPF – Ministério Público Federal
NuQ-UFMG – Núcleo de Estudos em Populações Tradicionais e Quilombolas da Universidade
Federal de Minas Gerais
PBH – Prefeitura de Belo Horizonte
PUC – Pontificia Universidade Católica
SEDESE – Secretaria de Estado de Trabalho e Desenvolvimento Social
SEPLAG – Secretaria de Estado do Planejamento
SEPPIR – Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República
UNEGRO – União de Negros pela Igualdade
Listas de figuras e imagens
Figura 1: Planta Geral da Cidade de Belo Horizonte em sua inauguração, a regiao rasurada é
a zona urbana
51
Figura 2: Planta Geral da futura Cidade de Belo Horizonte, ainda chamada de Cidade de
Minas.
52
Figura 3: Mapas representando à progressão da mancha urbana da cidade de Belo
Horizonte, a área tracejada de preto é a cidade planejada.
59
Figura 4: Mapas representando à progressão da mancha urbana da cidade de Belo
Horizonte, a área tracejada de preto é a cidade planejada.
61
Figura 5: A partir do mapa das unidades de planejamento da PBH, podemos ver alguns dos
bairros e lugares conformados pelo encontro das regionais Centro- Sul e Leste, trajetos,
percursos e manchas urbanas citados no trabalho.
62
INTRODUÇÃO: Senzala de Pai Benedito
Fundanga ao ê Pembe Fundanga ao ê Pembe Okê Pembê Okê Pemba Auíza Kassange Auíza De Angola Okê Pembê Sambangola Segurazilê Mona Oia o Pembê Segurazilê Mona Oia o Pembá Moku iu que Pemba Oiô Tata Mona que Pembê Moku iu que Pemba Oiô Tata Mona Que Pembá Pembentá que Pembentá é Monakalê Pembentaá que Pembentá é Monakalê Saidi é um Pembekô Saidi é um Pembalê Pemba não anda, Pemba voa Segura a Pemba que a Pemba é boa Cantigas de purificação com a Pemba e Incenso na abertura dos trabalhos no Candomblé de Manzo. Feita após a saudação a Pambu Njila.
“Eu não me identifico com os escravos e sim com os quilombolas. Não estou acostumada a obedecer e servir, eu sou do lado livre. Eu acho que é por isto, a sensação de liberdade o tempo todo. Eu acho que ser quilombola é diferente de ser escravo. Escravo para mim é sempre a imagem de alguém servindo, apanhando. Já o quilombola eu vejo pronto para a luta exigindo os direitos. Esta é a diferença, por isto nós somos quilombolas, vejo isto em mim e nos meus irmãos.”
Makota Cássia2 - Quilombo Urbano de Manzo Ngunzo Kaiango.
2 Makotas são as Mães que cuidam do santo. O radical Ma, designa mãe e Kota designa aquela que cuida do
Inquisse. Ver-se-á mais a frente o processo de iniciação e a importância desse título e cargo no
funcionamento de um Candomblé Angola. Makota Kidoialê Cássia Cristina é uma das principais lideranças do que ela mesma define como “vida civil” da comunidade. É filha biológica de Mãe Efigênia, a fundadora e matriarca da Comunidade de Manzo: “(...)Eu oriento os filhos de santo nas atividades da casa. Pois sou
Makota. Eu confirmei o santo quando eu tinha quinze anos. Makota é um cargo, é como se eu fosse a governanta da casa. Tomo conta tanto da criadagem quanto das visitas. É também uma relação pública, mais ou menos isso. (...) Faço parte da Comunidade Quilombola Manzo Ngunzo Kaiango. Nos autorreconhecemos e fomos certificados pela Fundação Cultural Palmares em 2007. Estamos localizados no bairro Santa Efigênia, em Belo Horizonte, há mais de 32 anos. Possuímos um terreiro de candomblé e um trabalho social com a cultura afro-brasileira, onde atuamos com as crianças e adolescentes do morro daqui de Santa Efigênia. Somos uma comunidade onde a família é envolvida em atividades, não só religiosas como também culturais.”
Mukuiu! Licença aos mais velhos e aos mais novos
3.
A Comunidade Manzo
4Ngunzo Kaiango localiza-se na zona leste de Belo
Horizonte, em um terreno urbano que abriga um número variável de pessoas, em torno
de onze famílias - e cerca de 40 pessoas - antes da retirada compulsória do grupo de seu
Manzo.
.Cabe o registro inicial: mediante medidas administrativas - no caso interdição por
motivo de riscos múltiplos à segurança dos moradores e de terceiros - a Prefeitura de Belo
Horizonte-PBH retirou a comunidade de seu território por um período de
aproximadamente 11 meses, durante os anos de 2011-2012, até que se efetuassem obras
emergenciais de reparações construtivas. Obras estas, que foram realizadas pelo poder
público municipal sem a devida participação da comunidade e que restou por violar suas
sociocosmologias e descaracterizou o Terreiro, centro vital da comunidade. Ver-se-á este
processo ao longo deste trabalho.
3 Este é o modo como muitos do Candomblé Angola pedem licença para usar a palavra - ela mesma, como se verá, um Ngunzo, também pedem e oferecem – fazem a troca e o caminho cruzado - bênçãos. Mukuiu e suas variações Maku iu, Mokoiou é a saudação em Angola, que pode ser traduzida como um pedido de Benção ao que se responde geralmente Mukuiu N’Zambi, ou Zambi na Aueto algo como que Deus lhe abençoe. Seguido sempre de um pedido de licença aos mais velhos, aqueles a quem se deve honrar com palavras de respeito à sabedoria. Da mesma forma, que se pede licença da palavra aos mais novos a quem se deve honrar com o exemplo.
4 Os termos do Candomblé Angola, no corpo principal do texto, serão grafados sempre que possível de acordo com as regras do português e por aproximação linguística, porque já faz parte da prática de trocas e
caminhos cruzados linguísticos, dos praticantes do Angola no Brasil uma mescla linguística. Faz-se necessário
reconhecer que esse processo de aproximação é bastante complexo; um exemplo: o termo Quibundo N’kisse, que se refere as deidades Angolas poderia ser aproximado na língua portuguesa, como Inquisse ou Inquice. No caso optei por Inquisse. Além disto, grafarei a inicial com letra maiúscula quando se dirigir a religiosidade como um todo e de minúscula em casos específicos. Faz-se mister esclarecer que a fonte para as traduções dos vocábulos, quando necessário, foram os próprios moradores do Quilomblé de Manzo, razão pela qual não recorri à etimologia dos vocábulos. Nesse sentido, Manzo é traduzido no contexto da nossa pesquisa como Casa.
Manzo Ngunzo Kaiango é a Casa da Força de Matamba. Manzo significa Casa.
Ngunzo é a energia, o elemento constitutivo e construtivo do Candomblé, o principio
dinâmico que participa e representa ao mesmo tempo, a força que circula e permanece
em um movimento simétrico centrípeto e centrífugo, ou seja, contém e veicula o princípio
genérico e ao mesmo tempo diferenciado da vida. A força dinâmica que permite a
ancestralidade, o ser e o devir. Sem Ngunzo não existiria energia vital. É transmissível,
acumulável, perdível, transformacional. Conduzido e transmitido – trocado nos termos de
Manzo - através de objetos, de coisas, pessoas, animais, elementos da natureza, é ao
mesmo tempo material e simbólico, trata-se, portanto, de um fe(i)tiche na precisa
definição de Latour (2002;1994), que assegura a existência presente, o porvir e as
necessárias relações com a ancestralidade. Não existe candomblé sem Ngunzo.
O Ngunzo é assentado no terreiro, tornando este um local sagrado. É
transmitido a todos os elementos conformadores do Abantu – comunidade do Ngunzo.
Como energia sua taxa é variável, e é necessário o constante girar em torno do Intoto, nos
precisos termos que ouvi em Manzo, e que apresentarei no decorrer deste trabalho.
Ngunzo é poder. Ngunzo é benção, cumprimento, votos, aquilo que se troca. Ngunzo é
carisma, senioridade. Ngunzo são as salivas, o suor, a palavra, o toque, aquilo que os
Santos passam a seus filhos e aos presentes nos momentos em que estão manifestados. É
aquilo que se troca entre os membros da família – entendida não apenas como a
construção feita a partir de um laço consanguíneo - e da comunidade do Santo. É o que se
oferece a outro. É o que se come. É o que sai da boca, nos termos que ouvi em Manzo,
para a importância da palavra que se diz. Ngunzo é conhecimento. Ngunzo é a Casa do
Candomblé. O Ngunzo con(forma) aquilo que Goldman denomina de Ontologia do
Candomblé “um sistema que privilegia fluxos contínuos e cortes (e não puras
descontinuidades), multiplicidades (e não qualquer dialética entre o um e o múltiplo) e
agenciamentos eficazes (e não formas de ordenamento e sua implementação prática)”
(Goldman, 2005:05). Se Goldman aqui privilegia o candomblé como sistema religioso é o
Ngunzo que permite esse sistema em e na rel(ação).
Kaiango é uma das qualidades ou enredo da Inquisse Matamba. Matamba é a
“dona” do terreiro de Mãe Efigênia/Mametu Muiandê e o santo de frente ou do Ori -
cabeça - de Mãe Efigênia. Matamba é a divindade dos ventos, tempestades e raios,
correspondente à Iansã no candomblé de nação Ketu. É saudada com os cumprimentos de
Oya, Oya, Oya ê! Nenguá Mavanju - Kiuá Matamba: Senhora dos Ventos - Viva Matamba.
Mãe dos Mvumbi - mortos -, é a guia dos espíritos desencarnados.
A matriarca da Comunidade, Mametu
5Muiandê (Efigênia Maria da Conceição),
está ligada a todos os moradores por laços de parentesco, seja consanguíneo ou religioso.
A comunidade se organizou e habita
6o Quilombo desde a década de 1970, quando foi
fundada uma Casa de Umbanda, denominada Terreiro de Umbanda Senzala de Pai
Benedito posteriormente transformada em Terreiro de Candomblé da Nação Angola
Manzo Ngunzo Kaiango, que se autorreconheceu, e foi certificada em 13/03/2007 pela
Fundação Cultural Palmares, como remanescente de quilombo (Registrada no Livro de
Cadastro Geral nº10, Registro nº 942, fl.07 e publicação no DOU do dia 16/04/2007).
Possui também processo aberto junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária-INCRA, para a realização de Identificação e Desintrusão de seu Território (Processo
INCRA/MG 54170.006166/2007-91, aberto em 01/11/2007).
5 Mametu é o título dado na Nação Angola do Candomblé, àquele iniciado que atingiu o grau de Mãe de
Santo, chamada também de Zeladora do Santo. Este título equivale ao de Ialorixá no Candomblé da Nação Ketu. No caso masculino, o zelador de Santo recebe o título é de Tatetu, equivalente ao de Babalorixá no
Candomblé da Nação Ketu. A Mametu pode ser denominada por seus títulos completos, como Mam’etu Ria
Mukixi – Sacerdotisa no Angola. Mam’etu Nkise ou Inquissiane – Minha ou nossa Mãe de Santo. E o Tatetu
tem como títulos, Tat’etu Ria Mukixi – Sacerdote no Angola. Tata Mukixi/ Tata Nkisi, ouTat’etu Nkisi – Meu ou nosso Pai de Santo. Tata se traduz por Pai, e Ma por Mãe.
6 Sigo aqui para a ideia de habitar, as pegadas de Heidegger para quem a existência possui como estrutura fundamental o ser-no-mundo. Em 1951 na Conferência Construir, habitar e pensar, o filosofo aponta que o habitar não se refere apenas ao fato de se possuir uma residência e sim no modo como o homem é um
ser-no-mundo, ou seja, como ele se encontra no mundo e ajuda a construir o mundo que o circunda. Deste
modo, me parece que é em Heidegger descontando seu antropocentrismo, que se tem um dos princípios para, o que mais tarde veio a ser denominado de virada ontológica. A virada ontológica aqui é uma tradução aproximada da sociocosmológica de Manzo, em nossos termos. Como se verá mais a frente neste trabalho.
A Comunidade se organiza civilmente através da Associação de Resistência
Religiosa e Cultural da Comunidade Quilombola Manzo Ngunzo Kaiango. A Associação se
apresenta como um espaço de referência para a comunidade do entorno, foi declarada
como de utilidade Pública Municipal, em 24 de fevereiro de 2011, pela lei 10.112/2011, e
de utilidade Pública Estadual através do Projeto de Lei n° 2.527/2011, aprovado pela
Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Denominado por Mametu Muiandê como “uma
Casa de portas abertas”, o Quilomblé
7possui um projeto social e cultural que,
dependendo da oferta de voluntários, oferece cursos de musicalização e dança afro,
penteado afro, dentre outros, e de maneira permanente o curso de capoeira e maculelê.
O projeto, denominado Kizomba,
8atua principalmente com crianças e jovens do entorno.
Mantido principalmente por dois filhos consanguíneos de Mametu Muiandê, o Projeto
tem como finalidade, conforme um documento escrito por seus a(u)tores, “atividades
socioculturais como forma de educá-los para o exercício pleno da cidadania” e visa formar
“jovens e adultos conscientes de seu papel social e que se sintam sujeitos de sua própria
história.”
A partir da apresentação dos dados etnográficos
9da Comunidade de Terreiro
e Quilombola de Manzo Ngunzo Kaiango, localizada na região leste de Belo Horizonte,
Minas Gerais, e sua luta pelo reconhecimento de seu lugar, intentarei através da
expressão local “tomada da palavra política” apresentar a sociocosmológica de Manzo. A
7 Quilomblé é um neologismo criado por alguns de nós pesquisadores participantes do Núcleo de Estudos em Populações Tradicionais e Quilombolas - NuQ-UFMG que estudamos e/ou apoiamos as lutas da Comunidade pela titulação de seu território, e é resultante da junção das palavras Quilombo e Candomblé. 8 Nas palavras de Mametu Muiandê: a festa do povo que resistiu a escravidão. Ver-se-á mais a frente uma análise do projeto.
9 Buscar-se-á uma apresentação que privilegie os dados etnográficos, pois deste modo, o confronto entre a teoria acumulada e a realidade vivenciada privilegiará a perspectiva do particular sobre o geral - do corpóreo sobre o abstrato. Como diria Peirano (1992) uma interlocução teórica inspirada nos dados etnográficos e não mera ilustração etnográfica. Ou seja, aquilo que é dito e é feito (Peirano 2001,2006). “(...) a pesquisa
etnográfica é o meio pelo qual a teoria antropológica se desenvolve e se sofistica, quando desafia os conceitos estabelecidos pelo confronto que se dá entre i) a teoria e o senso comum que o pesquisador leva para o campo e ii) a observação entre os nativos que estuda.” (PEIRANO, 1992:08)
sociocosmológica pode ser lida nesse trabalho, como um modo de ordenar e pensar o
mundo a partir da cosmovisão do Candomblé. Pode ser lida como uma transversalização
dos processos de trocas e caminhos cruzados. Trata-se de uma transversalização que
conjuga o mesmo e a diferença. Para valer-me de uma afirmação de Dos Anjos (2008) de
uma “filosofia política afro-brasileira”, que dispõe das suas próprias maneiras de articular
as relações entre o “interior” e o “exterior”. Em um modelo criativo, no qual aquilo que se
faz – o santo, por exemplo – é aquilo que já existe como potência, eis o Ngunzo, isto é, um
modelo de criação no qual o ‘dado’ e o ‘feito’ se encontram em uma relação de
‘pressuposição recíproca’ (Goldman, 2009).
Pode ser lido também nesse trabalho como um caminho cruzado e vivamente
vivido nas trocas: o movimento transversal, tal qual o Ngunzo, de se fazer política em um
processo de disputa com o Estado e sua forma-Estado
10e suas ordenações, convenções,
prescrições e normatizações. Pode ainda ser lido como um território cruzado, ou como um
processo de desterritorialização – reterritorialização. Pode ser lida também como uma
vivência que é anima para a tomada da palavra-política, dentre outras leituras possíveis
que serão apresentadas ao longo do trabalho. Visto tratar de um conceito chave para essa
pesquisa, seus múltiplos sentidos se explicitarão ao longo dos capítulos. E para que não
10 Por forma-Estado refiro-me ao modelo, legal e legalista, que busca resumir a vida vivida e vivenciada a teoremas e axiomas que subtraem as operações de vivência das condições do sensível. A teoria social, mesmo as de matrizes progressistas tendem a resumir a política à sua forma Estado-Nação e essa a um “organismo funcional” do sistema capitalista. A leitura nesses termos não é distante da realidade aqui estudada, entretanto, para que seja uma leitura radical seria mais interessante arguirmos esse modelo descritivo a partir das rotinas e rituais – da vida vivida e vivenciada– - que organizam e não necessariamente fundam os modelos de regulação moral. Nesse sentido forma-Estado aqui é demonstrativa dos limites teóricos desse modelo de organização burocrático-política e seus vícios fáticos de origem, classe, status, pertencimento ideológico, religioso, dentre outros. A Diferença como política ultrapassa o modelo liberal-burguês em reconhecer o outro, vai mais além, trata-se de assumir as consequências de sermos permanentemente atravessados pelo outro. Nesse processo torna-se possível analisar o Estado, não apenas como forma, mas também como prática e realidade, que se vale da violência legítima ou não, como se verá ao longo desse trabalho. A poética da cosmopolítica de Manzo é o caminho cruzado e a troca com os múltiplos outros, como se verá ao longo desse trabalho.
reste dúvida, trata-se de uma construção conceitual do pesquisador, que espero
tornar-se-á a partir da explicitação dos dados etnográficos, uma escolha teórica coerente.
Este trabalho busca apresentar como o pertencimento religioso funda uma
comunidade e a luta pelo candomblé cria um quilombo na cidade
11, bem como um
processo em que as práticas, ações sociais e as represent(ações) perfazem o lugar e o
habitar, as práticas, os pertencimentos, as moralidades e as convenções dos
quilomblecistas. Para tanto privilegiará o processo de troca e de caminhos cruzados
através da tomada da palavra política como a forma sociocosmológica e cosmopolítica
deste processo. Dito de outro modo interessa o que em Manzo é designado como
“política”, ou melhor, “tomada da palavra política”, ao mesmo tempo em que se busca
nesta descrição escapar de um novo tipo de substancialização, agora nativa da política
(Goldman 2006; 2001; 2003). No caso aqui em particular o movimento transversal, tal
qual o Ngunzo, de se fazer política em um processo de disputa com o Estado e suas
ordenações, convenções, prescrições e normatizações.
Dito de outro modo, em Manzo ver-se-á que a ontologia do social e a reflexão
sobre o político estão associadas. Não existe, como se verá nessa sociocosmológica e em
sua cosmopolítica, uma teleologia da história. A política, nos termos da sociocosmológica
de Manzo, é troca e caminhos cruzados, que são os princípios e as energias da existência
do grupo
12. A política, portanto, subsiste e – nos termos de Manzo – gira em momentos
11 O que caracteriza o fazer etnográfico no contexto da cidade é o duplo movimento de mergulhar no particular, para depois emergir e estabelecer comparações com outras experiências que, no âmbito urbano, podem transcender os níveis locais e nacionais.
12 A troca de mensagens abaixo ilumina a afirmativa. Para que se entenda, resumamos: No dia 02 de setembro de 2014 postei no facebook, uma notícia a respeito de uma longa reunião ocorrida em Manzo, na noite anterior, dia 01 de setembro, quando comunidade e eu – na função de apoiador da mesma – expusemos para, entre outros presentes, um advogado da Defensoria Pública Federal, uma advogada da Defensoria Pública Estadual, um procurador da República do Ministério Público Federal, um membro da coordenação do Comitê de Quilombos da Associação Brasileira de Antropologia – ABA, para funcionários do Incra - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, dentre outros, as violações que a Comunidade
específicos, porque ela já existe como potência de troca e caminhos cruzados. Diria então
que em Manzo temos uma comunidade em relação com o Estado e que demanda,
inclusive, políticas a este Estado. Entretanto, propõe cosmopolíticas que podem ser lidas
como contra o Estado, no sentido de demonstrar os limites desta forma-Estado e seus
vícios de origem, classe, estatus, pertencimento ideológico, religioso, dentre outros.
Manzo é contra a forma-Estado, enquanto potência de uma forma outra de fazer política.
Interessa-me neste exercício de antropologia, a política. Mas não a política
como problemática da manutenção da ordem, da norma e da coesão. Se a cosmopolítica
como se verá em Manzo é tentativa de emancipação deste grupo das insuficiências da
forma-estado ainda que sem romper por completo com esta forma
burocrático-organizativa, a sua sociocosmológica cumpre, com denodo para o antropólogo, a correta
afirmação de Lima e Goldman (2013:24) “(...) qualquer antropologia é política (...)”
13.
sofrera e sofre e de como a comunidade através de suas palavras políticas imaginava ver soluções possíveis para o ocorrido. Postei então:
"’Ogum foi menino, mas deu a Palavra, e Palavra de Ogum não é caçoada’. Mãe Efigênia lembrando aos presentes na reunião no Quilombo de Manzo, que a palavra empenhada é Ngunzo. A palavra proferida é a palavra que se troca e, portanto, carregada de potência. Só não é possível afirmar infelizmente que os atores do poder público tenham entendido. Aueto!!!! ARUÊ INKOSI MUKUMBI, N´INKICE NGANGA KEUALA” Ao que Makota Cássia, liderança política do Quilombo e do terreiro comentou:
Cassia Cristina: “Incrível né Carlos, como aquele pedacinho de chão mesmo nos tirando toda nossa simbologia ainda sobrevive nosso gunzo, nosso sagrado. É por isso que resisto, e é nesse sentido que temos a certeza do que somos. AUETO MANZO KOZANDIO MINHA MÃE !!!”
13 Dito de outro modo, a ciência política fundou seu império na ciência de, do e para o Estado. A antropologia por colocar seu primado na troca com os conhecimentos outros permite que Manzo nos mostre que sistemas políticos devem ser entendidos, como sistemas de relações – categorias (onto)lógicas - ao invés de apenas as categorias institucionais em contextos práticos. Estou aqui no caminho sugerido por Clastres e seu magnânimo projeto de pesquisa, que buscava recusar o encapsulamento da política a um modelo jurídico e de Estado:
“É uma concepção instrumental do Estado, ou seja, o Estado é o instrumento da dominação da classe dominante sobre as outras; tanto na lógica, como na cronológica, o Estado vem depois, tão logo a sociedade é dividida em classes (...) parece-me o contrário que acontece; não é a divisão em grupos sociais opostos, não é a divisão em ricos e pobres, explorados e exploradores, a primeira divisão, aquela que funda afinal todas as outras, é a divisão entre os que comandam e entre os que obedecem. Ou seja, o Estado. Porque fundamentalmente é assim, é a divisão da sociedade entre os que tem poder e os que se submetem ao poder. No momento em que isso existe, isto é, a relação de comando/obediência (...) tudo é possível (...) ao
A sociocosmosociológica de Manzo devolve a categorias transversais como
tornar-se quilombola sua potência como se verá, e à antropologia nesta mesma operação,
seu devido lugar como campo dinâmico que se coloca para além de uma ciência positiva e
de uma teoria funcionalista, repondo-lhe todo um campo de agência que permiti-lhe-á
afirmar-se como uma disciplina política nas ciências. E mais do que isto, como se verá no
capítulo em que analiso a tomada da palavra política, a antropologia – ou pelo menos
este antropólogo –, afectada
14pelos conceitos nativos, reforça a ideia de que outros
mundos são possíveis para além da forma-Estado e de suas sociocosmológicas
15.
contrario de ser o Estado o instrumento de dominação de uma classe, portanto o que vem depois de uma divisão anterior da sociedade, é o Estado, que engendra as classes. (...) é a partir do poder, da detenção do poder que se engendra o trabalho alienado (...)” Clastres (2013: 234-235-237)
A genialidade de Clastres nestas afirmativas, para além de libertar o pensamento de esquerda do vulgarismo economicista, consiste em repor - paradoxalmente para aqueles aferroados a uma ciência normativa, jurídica e já de Estado - a Política a seu estado de potência e maquina produtiva. Dito de maneira clara, como fez Clastres em outro trecho desta longa e seminal entrevista, a questão de uma reflexão da política e política não é o Estado já como instituição e sim o que permite, ou o que leva, ou, ao contrário, o que impede o surgimento do Estado. Como belíssimamente conclui o filosofo Bento Prado Junior (2014:15) sobre a obra de Clastres: “se não há pensamento pré-lógico, não há paraíso pré-político”. Eis aí a antropologia como uma sociocosmológica da política.
14 Afecto não se confunde com afeto. O afeto pode-se entendido como uma empatia, e foi o ponto de partida dessa pesquisa, seu alimento e seu Ngunzo; como se verá será ao longo do trabalho. Nesse sentido, cabe assumir as alegrias e as dores dessa opção. Entretanto, trata-se também de um trabalho afectado, ou seja, por um lado, propõe uma coextensividade conceitual entre as sociocosmológicas estudadas e os mundos projetados pela etnografia; não se trata de uma represent(ação) e sim da rel(ação) campo e texto. Aqui me valho, parcialmente, do sentido proposto por Fraveet-Saada (1995) para a ideia de afecto, entretanto, faz necessário reconhecer que a proposta da autora é mais radical que o uso que faço do conceito. E, por ouro lado, Afectar... é atividade de se colocar em constante questionamento. A diferença Eu - Outro, não impede, ao contrário, incita a revelação sobre nós. Assim na medida em que analiso a sociocosmológica de Manzo e seus processos cosmopolíticos, revelam-se pelo espelho um bocado da sociocosmológica nossa. Agradeço a Ana Estrela por boas conversas, sobre esta questão.
15 Vacinado por 08 anos de pesquisa, militância e atuação com a questão quilombola, e de acordo com os dados etnográficos dessa pesquisa, sigo aqui Deleuze (S/D:37-38) e ao invés dos encantos do estudo da
forma-Estado e da existência de um padrão, algo mais usual nesse campo de pesquisa, me parece mais
promissor, o conjunto dos processos de devires minoritários. Na nossa tradição, como demonstra Deleuze “o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão. (...) O padrão é esse.(...)” Entretanto como lembra o filosofo e demonstra Manzo existem também “todos os devires que são minoria.”
A etnografia como percurso de pesquisa
Este trabalho está centrado em relatos, principalmente de Mãe Efigênia e
Makota Cássia. Busca-se entender como os quilombolas vivem e pensam sua tradição. No
sentido aqui adotado, tradição é devir, como sugere Emília P. Godoi (1999: 29) “por sua
força d’avenir”, perspectivas que colocam em movimento passado, presente e futuro. Em
termos de Manzo, pensaria em troca de Ngunzo em que o passado faz troca com o
presente e as perspectivas futuras, do mesmo modo que perspectivas futuras fazem
trocas com o passado e o presente, e o presente faz troca tanto com passado como com o
futuro. E assim sucessivamente em uma troca constante. Para que não restem dúvidas,
valho-me da precisa definição de Emília P. Godoi (1999: 87) “Quando emprega-se aqui o
termo tradição, não se quer dizer, absolutamente que estas práticas são sobrevivências de
costumes antigos, anteriores (...) devem ser entendidas como portadoras de uma
racionalidade própria(...)”. Sugeriria nos termos dessa pesquisa, na citação anterior de
Emília Pietrafesa de Godoi, apenas a substituição do termo racionalidade própria por
sociocosmológica, pois contém também aspectos do sensível.
A descrição e a possibilidade de transversalização dos mesmos, que sugerirei
ao longo do trabalho, se valem principalmente do encontro etnográfico – em seus
transversais sentidos –, portanto, pode ser em encontro de, e de encontro a entre
pesquisador e pesquisados.
Buscar-se-á categorias, regras, práticas, representações mediante as quais os
membros de Manzo pensam e vivem sua existência. Deste modo o que se pretende aqui é
uma abordagem de dupla dimensão: em que não se privilegie nem tão somente a teoria
da prática e da ação que enfatiza um comportamento concreto e não somente uma teoria
da represent(ação) que enfatiza o universo simbólico. Parece-me que a junção de ambas é
a forma com que os “Quilomblecistas de Manzo” se deixaram apreender pelo
pesquisador. De modo que se busca então entender a vida vivida e vivenciada deste
grupo.
Por vivido e vivenciado busco traduzir a sociocosmológica do “Povo de Santo”,
ou seja, um processo social complexo, que foge das definições dogmáticas e formalistas.
Vivido e vivenciado é o que se apresenta como múltiplicidade, potência, diferença, fluxos,
agenciamentos metamórficos, nômade; em oposição às categorias dogmáticas e
formalistas - demasiado ocidentais e colonialistas - como os conceitos de norma e seus
correlatos: unidades, uniformidades, sistemas fechados, sedentarizados. Por outro lado,
vivido e vivenciado é a celebração da agência, feito e fato da e na prática, feito e fato da e
na ação e (rel)ação social. Ao longo do trabalho retomarei este conceito de forma a
melhor explicitar a construção do mesmo que emprego nesta pesquisa.
Bourdieu (1996), em seu texto “A ilusão biográfica”, chama a atenção para os
perigos do uso – diria eu abuso - dos relatos e histórias de vida, já que estes carregariam
uma noção teleológica da história, nas palavras do autor “uma filosofia da história, no
sentido histórico” (pp.184). Tal concepção, como se sabe, parte da premissa de que a
história tem um sentido, na qual o indivíduo nasce, cresce, se desenvolve e morre. Um
sentido, portanto, linear e organizado em torno da própria finitude do relato histórico. O
risco, neste caso, de se apresentar os dados como sendo “inseparavelmente o conjunto
dos acontecimentos de uma existência individual concebida como uma história e o relato
dessa história” (BOURDIEU, 1996, p.183) é bastante grande.
Os usos da biografia, para Bourdieu – ao que acresço os relatos etnográficos –
podem carregar consigo estes vícios de origem e representarem uma narrativa fechada,
estável e organizada em razão de seu final, ao qual o indivíduo ou o grupo de indivíduos é
apresentado como estando predestinado. A biografia – e em certo sentido, os relatos
etnográficos –, tornar-se-iam uma dupla ilusão, primeiro quando apresenta as vidas como
sendo um todo coerente, linear, em que os acontecimentos se organizam em termos de
causas e fins. E depois quando tenta estender e narrativa linear, coerente e teleológica da
vida de uma pessoa para um dado período, apresentando-o também de forma um tanto
quanto teleológica. De fato, a vida vivida e vivenciada em Manzo é descontínua,
justaposta, aleatória, imprevista.
A vida vivida e vivenciada em Manzo compõe-se de contextos e relações
múltiplas e transversais em que os elementos sociais agem sobre o indivíduo, mas este
detém múltiplas possibilidades de atuação em diferentes campos, ainda que essas
possibilidades sofram tentativas de tolhimento e sejam dificultadas para que se
submetam ao modelo esperado da forma-Estado.
Valer-me-ei, portanto, dos relatos e da observação destes contextos, relações
e ações, que obtive em visitas múltiplas e em diversas situações, mas não intenciono
reconstruir uma totalidade histórica de Manzo e sua luta, pois tratar-se-ia de uma ilusão
etnográfica.
A etnografia, mais do que uma ilusão do fazer antropológico, – ainda que
possa sê-la, é sempre um risco, do qual não posso afirmar ter escapado – é mais que um
método é uma forma de se estar no mundo (Peirano, 2008) que neste estudo me permitiu
estudar tanto os princípios prescritivos – uma conjunção simétrica entre metafísica e
filosofia social e natural (Goldman,2005) – da sociocosmologia do Povo de Santo de
Manzo que formam a ordem sociocultural, quanto a ordem performativa experimentada
na vida vivida e vivenciada. Firth exemplifica esse processo em uma das obras primas da
antropologia, a bela etnografia Nós, os Tikopias (1998) e explica em O significado da
Antropologia Social (1974:48) estes princípios dizendo que etnografia é a descrição do
“que ela diz e o que ela faz - distinção entre as normas da ação e as das expectativas” em
uma análise de “circunstâncias sociais” em que o “processo social significa a operação da
vida social” (pp.21).
Em antropologia, parafraseando Geertz, fazem-se etnografias, ou como diria
Peirano (1992) esse é o nosso ritual dramático. Até mesmo Rivers – antropólogo de
gabinete, como costumeiramente nos é apresentado –, em seu Notes and queries (1912)
reconhecia - ainda que sem objetivá-lo - que o fazer antropológico requer trabalho de
campo; relação de simpatia no contato da pesquisa; e busca do abstrato a partir do
concreto.
O percurso etnográfico visa à descrição de uma sócio-lógica resultante do
encontro entre pesquisador e pesquisado e dos modos, saberes e fazeres de cada um
destes. Neste sentido, menos do que elaborar tipologia, o que se propõe é entender
aquilo que torna possível a sociocosmológica do santo e da relação desta com o Estado
em um tipo de relação cosmopolítica. Interessa mais os meios – em termos êmicos de
Manzo, os caminhos – do que as extremidades. Nos termos do mestre Otávio Velho (1998:
12): “Deixar-se afetar pelo nativo pressupõe que ‘ele/ela’ tenha algo a nos ensinar. Não
apenas sobre ele mesmo, mas sobre nós”.
O antropólogo é sempre o autor de seu texto etnográfico, mas não no sentido
de um romancista. A presença do autor e o modo de feitura do trabalho não se tratam
apenas de um recurso para a apresentação da alteridade do contato ou um modo de
afirmar a veracidade de sua estadia em campo ou mesmo da complacência de seu saber
humanista. Trata-se de um relato do processo transformador a que é submetido o
pesquisador no contato com o outro. Pelo qual, ao fim, ambos não serão mais os mesmos.
Vicent Crapanzano (2004), em uma metáfora com a figura do Deus Grego
Hermes, aponta que o antropólogo, tal como Hermes, é um mensageiro. Não um simples
mensageiro, pois este decodifica a mensagem, interpreta-a, clareia o opaco, torna familiar
o estranho; O antropólogo, além de ser mensageiro, aquele que deveria interpretar, deve
ser também, como Hermes, um símbolo de fertilidade, e seu texto etnográfico devem ser
potentes em significações. Dito nos modos como aprendi em Manzo, não se trata de um
texto como veracidade e como absoluto, mas sim de transversalização de contextos e
processos. A descrição da vida vivida e vivenciada como sugere a sociocosmológica Angola
sabe que Pambu Njila é caminho, e que o caminho se faz caminhando e, portanto, é
múltiplo, diverso, dinâmico, contraditório, marginal, inespecífico... tudo aquilo que
apavoraria uma descrição de uma ciência da ordem.
Para Wagner (2010), a relação pesquisador e pesquisado está contida em uma
paralelidade epistemológica, pois somos todos inventores de cultura. A antropologia, para
este autor, deve ser uma relação entre equáveis
– a não confusão entre igualdade e
equidade é uma contribuição que faz toda diferença neste contexto – pois media seres
culturais através da “objetividade relativa” e da “relatividade cultural”. Tanto
antropólogos como nativos são inventores culturais. Para Wagner (2010:37), ao invés do
“somos todos nativos” de Geertz (1997) que pode ser ingênuo, deve-se buscar o “somos
todos de algum modo antropólogos”.
Tal operação não é apenas de inversão dos termos: nativos por antropólogos,
mas é principalmente epistêmica. Wagner propõe uma relação em que os nativos,
também são antropólogos, mas de modo diverso do que supõe nossa epistême
antropológica. O que ele propõe - é que os outros revelam bastante sobre nó s- e que me
parece ter ocorrido no trajeto etnográfico da pesquisa em Manzo. O convite é pelo
abandono à ideia de que os antropólogos descrevem cultura enquanto os nativos fazem
cultura. Os processos são simultâneos e cruzados. Antropólogos e nativos inventam e
descrevem culturas ainda que de modos diferentes. Operação que não é simples. Não se
trata de humanismo e afeição pelo outro, trata-se de afecção, o outro é autônomo a nós e
dotado de um mundo que nada deve ao nosso. Afecção permite através do contato com a
Diferença engendrar um caminho cruzado que poderá levar a superação dicotômica do
grande divisor para valer-me de Goldman e Lima (1998). Não se trata – necessariamente -
de se transformar no outro, ou transformar o outro em nós e sim da relação de potências
em transformação, criadora de relações e do social.
Este processo, por justaposição, permite experienciar-me através dos
significados que trouxe do campo; a operação nos leva a relativizar a nossa própria cultura
e não somente a cultura outra, tão bem definida na famosa passagem do antropólogo
como xamã
16. O fazer etnográfico nasce de uma base relacional, produzida através de uma
16 Entendo que da maneira como adotada pelo autor, não pode ser tomado como sinônimo de extirpar. O xamã na obra de Wagner é um administrador de potências em transformação; e não um extirpador que
mediação de pontos de vista. O fazer etnográfico é um processo ritual de invenção através
da relação na qual o antropólogo não pode simplesmente apreender a cultura do outro
como se estivesse lá pronta para ser registrada (Wagner, 2010:37); ele deve em uma
espécie de jogo entre nossos conceitos e as ações do outro, abstrair das noções ai surgidas
os constrangimentos e implicações.
A antropologia proposta por Wagner, tal como a ideia de cultura, não é
produzida, mas ativamente inventada e experienciada. A experiência se dá através da
relação, o antropólogo experimenta a diferença no campo, de modo que a busca por
entender os sujeitos da pesquisa produz um nós e eles que “inventa”, não sem
constrangimentos e implicações, a “cultura”.
O percurso e a escrita etnográfica que me proponho aqui é então cultural, no
sentido pleno e político do termo, ou seja, experienciada, afetiva e afectada. Manzo
ritualiza um território e territorializa um ritual. Neste processo tornam-se quilombolas.
O antropólogo em seu processo etnográfico ritualiza uma descrição da relação social e
representação social.
Em outro diapasão, mas, de certo modo, complementar, Roberto Cardoso de
Oliveira discorre sobre a especificidade do ponto de vista do antropólogo nascido nas
nações latino-americanas
17:
Não mais um estrangeiro. Alguém que observe de um ponto de vista - ou horizonte – constituído no exterior, porém, agora, um membro de uma sociedade colonizada em sua origem – depois transformada em nova nação -, um observador eticamente contrafeito de um processo de colonização dos povos aborígenes situados no interior dessa mesma nação. Portanto, do ponto de vista desse observador interno de uma sociedade que reproduz mecanismos de dominação e de exploração herdados historicamente, o que subsiste não
dissolve as diferenças, o que acabaria com a positividade da alteridade como criadora de relações e do social. A este debate agradeço as conversas sempre produtivas com a então housemate Patrícia Carvalho Rosa. E com as trocas de mensagem com Rafael Barbi.
17 Como afirma Mariza Peirano (1992 a: 148), “o escrever antropológico implica, assim, questões morais,
poderá ser apenas o deslocamento de um conceito metropolitano – e colonial -, sem repercussões na própria constituição desse ponto de vista. Tratar-se-ia, antes, de um ponto de vista diferente, significativamente reformulado, no qual a inserção do observador - isto é, do antropólogo como cidadão de um país fracionado em diferentes etnias – acaba por ocupar um lugar como profissional da disciplina na etnia dominante, cujo desconforto ético só é diluído se passar a atuar – seja na academia, seja fora dela – como intérprete e defensor daquelas minorias étnicas. (Cardoso de Oliveira, 2000:42)
O trabalho antropológico em Cardoso de Oliveira, com o qual concordo, deve
ser pautado pelo envolvimento:
Neste sentido, o antropólogo deve se comprometer com a luta dos grupos que reivindicam direitos a terra e à cidadania, como tem sido o caso das comunidades indígenas e quilombolas no Brasil. Ele deve disponibilizar os conhecimentos sobre esses grupos e sobre a sociedade que os oprime. Seu trabalho se caracteriza por uma leitura crítica e independente, centrada na convivência com o grupo estudado. Neste sentido, os antropólogos têm contribuído para a redução de preconceitos e estereótipos de ordem racial e étnica, de gênero, de classe e cultura. (Ibdem)
Ser antropólogo em Manzo é ser percebido para além de um pesquisador,
como um membro da família
18e um “assessor” da Comunidade, alguém que pode atuar
com o grupo em seus caminhos cruzados. Optar por uma pesquisa por um lado afectada e
por outro lado afetivo-posicionado não significa desconhecer certa esquize
19, apresentada
muitas das vezes em conflitos entre o pesquisador militante e comprometido com nossos
parceiros do processo etnográfico e nossos compromissos institucionais pautados por
regras, regulamentos e normas que quase nunca condizem com o primeiro compromisso.
Esse descompasso – a qual essa tese exemplifica – é exposto pela própria sociocosmologia
estudada, que acaba por denunciar o seu limite enquanto fazer da e para a ordem.
Por fim, o encontro etnográfico entre pesquisador e pesquisado e a escrita daí
decorrente tratam-se de um diálogo, entretanto, por suas características uma tese tende:
18 Ver-se-á mais a frente à sociocosmologia de ser da “família do Santo”.
19 Refiro-me, por um lado: ao desconforto com a pouca efetividade na prática da atuação de um antropólogo para além de uma relação de afeição e carinho. E por outro: a inescapabilidade – ainda bem - de se ser quem se é e suas influências na pesquisa: no caso, um pesquisador preto, pobre, de família migrante e humilde do sertão do nordeste, filho de mãe “solteira”, da classe trabalhadora subalterna.