Aruê Nganga Tateto Kinsaba - Salve o Senhor Pai das Folhas Katendê Mukua-Xi Nsaba! - Katendê Habitante Das Folhas! Kiuá Katendê Katendê de la digina,
Aluandê Meu Katentê lá diginá Katendê Katendenganga
Mau mau Maruê Katendê ê eiá Katendê ê eia Tá me chamando Na Aruanda, Aldeiá Tá me chamando Na Aruanda, Aldeia Katendê Ê Ê Ê Katendê Katendenganga Katendê Na Aruanda Ê Katendê oia Bibikoia Katendê oia Bibikoia Keua Me oia Bibikoia Keua Me oia Bibikoia Katendenganga Kurusu Katula de Angomi Poramô
Katendenganga Kurusu Katula de Angomi Poramô
Maingandu okê okê Ganga Tombency okê oká
Maiangandu okê okê Ganga Tombency okê oká
Katendê Unqueto Tatetu Azan Mipanzo Ê Katendê Unqueto Tatetu
Azam Minpanzo Á Sale Maianguê Minipanzo Sale Maianguê Katendê sale
Salê dundum Malembe meu Katendê
Tata que Minaê
Cantigas do ritual em homenagem Ao Inquisse Katendê, o senhor das folhas é o terceiro Inquisse a ser saudado no Xirê.
Posteriormente, após a feitura no Santo, a iniciação de Mãe Efigênia no
Candomblé de Angola, a Comunidade passou a ser chamar Manzo Ngunzo Kaiango “Casa
da Força de Matamba
80.” Cássia afirma:
(...) foi em 1986 que viramos Terreiro de Candomblé e aí vem até hoje. Toca-se um Terreiro de Candomblé, mas respeitando sempre Pai Benedito, em respeito até mesmo ao terreno, ao espaço dele que foi o primeiro que chegou aqui com a gente. (Makota Cássia, julho de 2012)
Mãe Efigênia explica este processo:
80 Kaiango é uma das qualidades da Inquisse Matamba. Matamba é a “dona” do terreiro, por ser a “dona” da cabeça da Mãe Efigênia. Matamba é a divindade dos ventos, tempestades e raios, aproxima-se à Iansã no candomblé de nação Ketu. E saudada com os cumprimentos de Nenguá Mavanju – Kiuá Matamba: Senhora dos Ventos – Viva Matamba. Mãe dos Mvumbi (mortos), é a guia dos espíritos desencarnados.Oya, Oya, Oya ê!/Oya Matamba de kakoroká zingue/Oya, Oya, Oya ê!/Oya Matamba de Kakoroká zingue ô.
A Senzala de Pai Benedito é o nome que se deu desde o inicio, quando a registrei como Casa de Umbanda. Éramos uma Casa de Umbanda e eu não tirei até hoje. Ai eu fiz o Santo, raspei minha cabeça no Santo, dentro do Candomblé e meu pai de santo me disse que não podia manter este nome, pois Senzala vem da Umbanda era preciso um nome em Banto. Ai nós olhamos no jogo e ficou
Manzo Ngunzo Kaiango: A Casa da Força de Matamba, Manzo é Casa, Ngunzo é
Força e Kaiango é a qualidade da minha Mãe Iansã. E ai ficou a Comunidade Manzo Ngunzo Kaiango. (Mãe Efigênia, julho de 2012)
É comum entre os moradores e frequentadores, se referirem ao Quilomblé por
ambos os nomes. Quando perguntada a respeito, Mãe Efigênia se referiu a este fenômeno
como sendo a resultante de uma mudança temporalmente recente: “Manzo Kaiango todo
mundo conhece. Mas a Comunidade sabe que o Terreiro é de Pai Benedito. É tanto, que
quando faz a Festa de Pai Benedito a Casa, você já viu né!!! então são os dois.”
Makota Cássia, certa vez quando indagada sobre o nome do grupo,
respondeu:
A mudança de nome tem haver com a cantiga da Casa. Matamba precisava trazer uma cantiga. Mas é aquela coisa não adianta querer sair da Senzala de São Benedito e chegar em Manzo, eu acho que Manzo caminha atrás da Senzala, pois se criou e trocou o nome para ter a cantiga, mas até hoje a cantiga não chegou. Então assim, fez o jogo e confirmou que teria que ter um nome Bantu para a cantiga. Por exemplo, em outras Casas de Angola, tem a cantiga da Casa, a cantiga da boa vinda, na casa do Pai de Santo da Mãe é: Bibiqualaê, Imabiotê
Batukassange, Bibiqualaê!!! Mas me lembro de que fomos a Pai Benedito e ele
disse: coloque o nome que quiserem, mas para nego nunca vai seixar de ser a Senzala de Pai Benedito. Então o nome é para a Cantiga da Casa e de boas vindas, e é um nome do Candomblé. Mas é por causa da cantiga de saudação e não necessariamente por ser um Candomblé, ainda que exista por causa do Candomblé. Mas veja tem Candomblés de muita tradição com nome em português. (...)
Manzo é o nome que está no registro. Penso que nós invertemos. A comunidade devia ser Senzala de Pai Benedito e o Terreiro de Candomblé ser Manzo Ngunzo Kaiango. Mas hoje como a Comunidade é Manzo podemos dizer que a Senzala de Pai Benedito é o Terreiro que existe dentro da Comunidade. (Makota Cássia, janeiro de 2014).
O ato da nomeação que poderia ser visto como uma formalidade “uma
expressão” para o Candomblé é uma definição menos corriqueira, como se percebe nas
falas, ele aponta para a própria emergência política da comunidade. Tal qual a digina de
um iniciado, o nome é palavra
81– ou seja, Ngunzo e é passada através do jogo de búzios.
Não se trata de uma atividade trivial e nem mesmo um ato secundário. Só se nomeia
aquilo que foi despertado, ou seja, o nomear foi a forma de se reforçar a pertença ao
santo. Nominar é fazer caminho cruzado, por isto, ambos os nomes podem e devem
conviver transversalizando seus Ngunzos: “Não posso abandonar este nome. É a senzala
de Pai Benedito e aqui Pai Benedito faz cura, Pai Benedito benze.” (Mãe Efigênia).
Mãe Efigênia, foi criada no Jeje e raspada em Angola
82. Deste modo, Mametu
Muiandê, se define como uma angoleira de raiz, que começou na Umbanda, rito que
mantém e que, como visto e ainda ver-se-á é um dos alicerces da existência da
Comunidade e do Quilombo. A Umbanda e o Candomblé tal qual aprende-se em Manzo,
são cultos interrelacionados. São multiplicidades ou linhas – para mais uma vez recorrer
ao vocabulário de Deleuze e Guatari – que conformam um todo que é específico para cada
casa de santo. O fato da convivência entre Umbanda e Candomblé, pelo menos para o
universo das casas de santo de Belo Horizonte – como dito participei como pesquisador
no período de 10 anos de dois Inventários de Bens Culturais Afro-Brasileiros na cidade de
Belo Horizonte – advém antes do antropólogo e de sua concepção e modelo de religião do
que da realidade pesquisada. Nos termos precisos empregados por Birman (1995:16)
“Onde os religiosos veem um conjunto de “linhas” inter-relacionadas sem limites
institucionais precisos, os estudiosos buscam limites claros e inequívocos entre crenças
(...).”
3.1 - Manzo é Angoleiro
81 Ver-se-á mais a frente uma análise a partir da Cosmológica Angola do conceito nativo de Palavra.
82 Como se tratam de pessoas terceiras, omitiremos seus nomes civis, de santo, de digina e de suas casas ou terreiros a que pertenciam.
(...) cada casa é uma casa, cada candomblé é único, portanto, é engraçado pesquisas definitivas, pois para cada Inquisse, cada mito, cada história, para cada quilombo, temos uma história única, e nenhuma é mais verdadeira que a outra. São apenas diferentes. Somos como já te disse outras vezes, uma cultura oral. Portanto depende de quem conta. Tem esta coisa de tradição, mas cada Pai tem a sua, o que se faz aqui em Manzo, não se faz igual na casa de meu Pai
[Lucas não foi iniciado em Manzo e é membro de outro Terreiro de Angola], ou
em outra. Apesar de existir alguns que conhecem mais de Angola. Não tem uma única regra. (Lucas, fecereiro de 2014)
A afirmação de Lucas, companheiro de Mãe Efigênia, nos mostra que é
necessário uma visão abrangente, mas que ao mesmo tempo permita ver cada terreiro
como um fragmento do todo. Que não se perca de vista uma perspectiva global do
pertencimento a Angola, mas respeitando o estudo particularizado de cada terreiro, suas
práticas, reelaborações, retenções, transformações, em consonância com a situação
espaço-temporal.
Cada casa é uma casa e os rituais do candomblé são bastantes variáveis
devido à diversidade da prática cotidiana e a “tradição”. Tradição nos ensina a
sociocosmológica Angola: não é aquilo que permanece imutável, ao contrário, é aquilo
que se modifica constantemente a partir das decisões de cada mãe ou pai de santo, criada
e recriada no contexto e cotidiano da “roça de santo”. Entretanto, se a tradição é mutável,
se cada casa é uma casa, e não existe uma realidade mais verdadeira que outra e se a
regra não busca o unitário; permanece também como parte dessa filosofia social e
natural, a ideia de que existe um conjunto mítico, ritualístico, comportamental, de
etiquetas, litúrgicos, dentre muitos outros, que permite identificar as comunidades do
Santo, bem como aqueles que detêm maiores conhecimentos dentro destas
comunidades. Esse processo é denominado de pertencimento a Nação de Candomblé. Os
filhos de santo, por isto mesmo, fazem questão de identificar a qual Nação pertence e, via
de regra, nominam e listam as principais características que, no seu entender, torna a sua
Nação específica em relação a outras, Nações.
Os candomblecistas, no contexto da cidade de Belo Horizonte
83, se
apresentam como pertencendo a uma das três principais nações do candomblé: nagô, jeje
ou angola, com suas variantes e especificidades. Os nagôs cultuam os/as orixás, os jejes
os/as voduns e os angolas os/as inquisses e caboclos. A liturgia, de cada um, segue a
língua ritual e as variações dialetais, do Iourubá, do Fon/Gbé e do Banto. Raul Lody (2008:
XV) na Apresentação da nova edição de Candomblés da Bahia de Edson Carneiro comenta
que “três grandes modelos socioreligiosos ganham os espaços na Bahia e no Brasil,
reconhecido nas nações Queto/Iorubá/Nagô, Jeje/Nagô de base fon/ewe e iorubá, e
Angola/Congo ou Moxicongo.” Mais a frente ele afirma que “os modelos chamados
nações foram organizados a partir de semelhanças principalmente linguísticas” (2008:XVI)
e por fim fala em uma divisao do Candomble nos dias de hoje contendo as seguintes
nações: Queto-Nagô (Iorubá); Jexá ou Ijexá (Iorubá); Jeje (Fon); Angola (Banto); Congo
(Banto); Angola-Congo (Banto); Nação de Caboclo (modelo afro-brasileiro).
Cabe ainda aqui destacar que os chamados Povos Bantos – e aqui seguimos a
definição imprecisa do termo - são os africanos austrais e que ocuparam principalmente a
hoje região sudeste brasileira, principalmente às Minas Gerais. Em termos temporais sua
chegada ao Brasil se deu durante todo o período escravocrata, mas com índices quase
sempre decrescentes, de modo que segundo a historiografia nas últimas décadas do
comercio escravocrata, a presença Iorubá era dominante entre os africanos
desembarcados como escravos. Os povos Iorubás: sudaneses e nagôs por razoes geo-
sócio-históricas e cosmológica que não cabe aqui explicitar - para uma definição de fôlego
e notável ver Parés (2013) – continuaram a chegar até o último momento do sistema
escravista e ocuparam principalmente o Nordeste e a região litorânea. Os Povos Fon, por
83 Como já dito, baseio-me aqui no fato de ter participado de duas pesquisas de Inventário e Mapeamento de bens culturais afro-brasileiros no município de Belo Horizonte. A primeira realizada nos anos de 2003/2004 e a segunda nos anos de 2011/2012. Na primeira atuei como pesquisador de campo nos Terreiros de Umbanda e Candomblé e na segunda na coordenação dos levantamentos de dados de Terreiros de Umbanda e Candomblé e de Quilombos Urbanos.
sua vez, foram deslocados principalmente para o nordeste setentrional e para partes do
litoral do sudeste.
Para Lucas, as nações são discursos e reconstruções mitológicas, ritualísticas,
políticas, comunitárias e identitárias realizadas pelos negros que foram escravizados na
diáspora:
O candomblé é também um culto à ancestralidade, que visa preservar o que os nossos ancestrais deixaram. O nosso culto para alguns é visto como arcaico. Só que tínhamos a necessidade de que aquilo não se perdesse, então adaptamos as coisas brasileiras. (...) Na África o culto era bem diferente. O candomblé é uma coisa bem típica nossa, porque na realidade os cultos africanos são cultos isolados, cada tribo cultuava uma entidade específica, uma força da natureza específica. No candomblé aqui nos abrangemos muitas tradições e doutrinas.
Um exemplo desta reconstrução brasileira do candomblé é o uso constante de
termos que pertenceriam a outras nações
84. Assim palavras que “classicamente”
representariam uma Nação, na verdade, pertenceriam inicialmente ao vocábulo de outra.
Ou o constante uso de termos de uma Nação por outra, como no caso de Manzo.
Quando perguntada, a respeito da utilização de termos em Iorubá, Mãe
Efigênia fala de uma troca existente entre os membros das diferentes Nações, uma vez
mais, portanto, a transversalidade da abrangência das tradições e doutrinas, da
multiplicidade e da força criativa dessa sociocosmológica, como tenho advogado. Mãe
Efigênia fala também de uma tradição marcada pela oralidade. Para ela, houve uma maior
popularidade da nação Queto. Sua explicação se aproximaria do que se convencionou a
chamar no campo etno-histórico de nagoização do Candomblé brasileiro.
Os nagôs, usualmente identificados apenas como quetos, são numericamente
a maioria dos Candomblés na cidade de Belo Horizonte, e coube a eles a introdução – pelo
menos no relato oficial – do Candomblé nessa cidade. O panteão dos Orixás e suas
84 Esta constatação é apresentada também em outras etnografias a respeito do Candomblé, como por exemplo, Parés 2013, Carneiro, 2008, dentre outros.
litúrgias tornaram-se dominantes não só em Belo Horizonte, como no Brasil, seja no
campo acadêmico, cultural, artístico e de domínio público. A razão para esse fenômeno é
múltipla, diversa e variável a cada contexto, apesar de seguir um padrão etno-histórico.
Ainda que não seja o tema central, cito Parés em seu texto O Mundo Atlantico e a
constituição da hegemonia nagô no Candomblé Baiano (2010):
É importante notar que a cidade de Ketu, depois de ter sido destruída pelos daomeanos em 1883 e 1886, foi reconstruída só em 1896, e é provável que as notícias desses eventos chegassem à Bahia naquela época. Levando em conta que o etnônimo ketu não está documentado na historiografia da escravidão brasileira, e que as referências escritas a candomblés de “nação” ketu aparecem apenas nos anos 1930, poder-se-ia especular que a identidade ketu de casas como o Engenho Velho ou o Gantois foi uma elaboração tardia do final do século XIX, talvez inspirada pela reconstrução de Ketu. Se isso for verdade, teríamos um exemplo de como formas de “invenção da tradição” foram entrelaçadas com a dinâmica transatlântica no processo de “nagôização”.(Parés, 2010:179)
Para um maior conhecimento sobre este movimento complexo que envolve
uma notável conjuntura de fatores sócio-históricos inter-relacionados: cabe reiterar a
importância decisiva da agência dos líderes religiosos nagôs na sua autopromoção; assim
como o papel dos viajantes transatlânticos que mantinham contatos regulares com a
costa africana, todos eles inseridos na complexa teia de interesses, disputas e alianças que
costuravam a micropolítica da comunidade negro-baiana; a participação de intelectuais,
principalmente escritores e antropólogos dentre outros; no que Parés denomina de
“nagôização” do Candomblé, incluindo aí uma análise do processo de purificação ritual
como sendo um processo sócio-demográfico com raízes nas relações entre africanos e
crioulos, ou seja, entre negros estrangeiros e negros nacionais, ou ainda entre escravos e
ex-escravos, ou seja, entre nascidos livres e aqueles ainda escravizados, acrescida de uma
sistemática demografia de casamentos preferênciais que levará a um duplo movimento:
primeiramente de predominância masculina africana no culto do candomblé e em um
segundo momento, a predominância feminina crioula
85.
Mãe Efigênia explica que, antigamente, os termos Iorubás eram usados em
muito Terreiro Angola:
Nós falávamos antigamente muito em Iorubá, pois é uma mistura, pois era muito difícil ter um sacerdote ou uma sacerdotisa que dominasse e passasse o Banto. Meu Pai de Santo, que pesquisou muito e trouxe de lá para nós a língua banto, mas nós mais velhos de santo, de 30 anos ou mais, temos dificuldades ainda para falar em banto. (Mãe Efigênia, julho de 2012)
Makota Cássia segue na mesma direção:
Na família de Angola nem todo mundo segue as mesmas hierarquias. Tem muitas casas de Angola que tem muitas referencias de Ketu. É muito difícil achar uma Angola pura.
Para J. Lorand Matory (1999), a “pureza nagô” e a ideologia da cultura iorubá,
a que se refere em outros termos Makota Cássia e Mãe Efigênia, que foi colada ao
candomblé baiano, e por extensão, arrisco dizer ao candomblé mineiro, derivou de um
contexto geopolítico não apenas brasileiro mas transatlântico. Consiste num produto de
um diálogo transatlântico, ainda em processo. Para os autores dessa escola é necessário
fazer uma reconstrução etno-histórica do período do fim do século XIX na região da atual
Nigéria, bem como do surgimento de uma elite negra em Lagos, que eles denominam
como a “renascença iorubá”.
Segundo estes autores, esta elite é resultante da própria diáspora interna
africana ocorrida em princípios do século XIX, quando navios ingleses capturavam navios
negreiros que partiam do Golfo de Guiné e realocavam os cativos em Freetown, na Serra
85 Entender tal fenômeno tornou-se um dos principais campos de pesquisa no que se refere aos estudos sobre o Candomblé, principalmente com um diálogo bastante frutífero entre a história e a antropologia, em um espaço discursivo, que vai para além das fronteiras brasileiras – apesar de ter como centros de irradiações a cidade de Salvador – UFBA e a cidade de Campinas -Unicamp - e abarca os chamados debates sobre o Atlântico Negro e a chamada Afro-American Culture. Para conhecer melhor este debate ver Parés 2013, 2010,2008,2012, Gilroy 2001, Mintz e Price 2003, Martory 1999, dentre outros.
Leoa, onde seus descendentes eram chamados de “creoles” ou “krios”. Estes ex-cativos
escolarizados pelos missionários ingleses tornaram-se uma classe de africanos influentes e
com postos no governo colonial inglês. Deste modo tornaram-se uma importante classe
letrada, os “saros”, que produziram os padrões ortográficos e léxicos pelos quais o iorubá
seria estabelecido como língua escrita. Outra parte desta elite se constituiu em
comerciantes bastante proeminentes que passaram junto com comerciantes baianos, a
financiarem o intercâmbio de viagens entre as costas da África Ocidental e a Bahia. Em
1890 e 1891, o governo colonial subsidiou viagens regulares e foi implementada uma linha
experimental de navio a vapor entre Lagos e as cidades da costa do Brasil. Estes
comerciantes e viajantes negros livres foram os principais interlocutores e facilitadores do
retorno de ex-escravos brasileiros para a costa da atual Nigéria.
Os chamados “retornados” afirmaram-se como mão de obra especializada na
arquitetura e em técnicas de construção da Lagos colonial. A somatória destes grupos
passou a controlar o comércio da região do Golfo da Guiné, com mercadorias e serviços
identificados como provenientes “do país do homem branco”, ao mesmo tempo em que
forneciam aos brasileiros objetos religiosos e serviços autenticados por uma origem
africana. Estes autores sustentam a tese de que a “pureza nagô” constitui, acima de tudo,
um grande capital ideológico transatlântico.
Nessa vertente, portanto, o processo de trocas do denominado Atlântico
Negro, somado a etnogenese iorubá, protagonizada pelos retornados brasileiros e pela
elite saros levou a um movimento cultural que, buscou reviver aspectos da religião do
antigo reino de Oió, destruído pelas guerras do início do século XIX. Seria este
nacionalismo iorubá que reexportado para o Brasil, funcionou como uma ideologia da
pureza ritual nagô. Em solo brasileiro, esta pureza ritual foi adotada por lideranças
carismáticas do Candomblé como Mãe Aninha do Axé Opô Afonjá, Mãe Menininha do
Gantois, Mãe Senhora, dentre outras e reforçada por pesquisadores, notadamente os
antropólogos brasileiros, franceses e norte-americanos. Os estudos que advogam essa
tese, envolvem etnografias multisituadas – no caso de Martory: USA, Brasil, Afro-Caribe e
Costa dos Escravos na África e trabalho histórico:
Considero o trabalho de etnógrafo e de detetive de arquivos extremamente importante. Ele nos permite colocar em questão o padrão teórico de representação da cultura africana nas Américas, que fala de memória coletiva na ausência de agency, ou intencionalidade estratégica, dos diversos atores. Falando quer da “Santería” e Candomblé, quer de “shouting” (isto é, o dançar e falar sob a influência do Espírito Santo nas igrejas negras dos Estados Unidos), quer discutindo a identificação negra com a Etiópia bíblica ou o movimento de repatriação de Marcus Garvey, quer olhando a ordem política dos quilombos, palenques e maroon societies, a África que vive nas Américas negras não deve ser medida em termos da sobrevivência mais ou menos pura de um “alhures” primordial. A África que vive nas Américas é uma mobilização estratégica de um repertório cultural circum-Atlântico de quinhentos anos. Em suma, muito do que é chamado de “memória” cultural ou coletiva na diáspora africana, e em toda nação, ocorre em contextos de poder, negociação e recriação. Este ponto é