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Parte II – Temas Desenvolvidos ao Longo do Estágio

2. Consumo de Benzodiazepinas

2.1.1. Benzodiazepinas – Contexto Histórico e Mecanismo de Ação

As benzodiazepinas são fármacos sedativo-hipnóticos amplamente usados na prática clínica, a nível mundial.62 Esta classe de fármacos surgiu na década de 50 com a identificação do

clordiazepóxido, por parte do químico Leo Sternbach, em 1955.63 Esta descoberta foi celebrada já

que, nessa altura, as alternativas terapêuticas, como os barbitúricos, eram muito menos seguras devido à sua margem terapêutica estreita e efeitos secundários.63 Com o crescente entusiasmo, a

procura por novas moléculas continuou e, utilizando modificações moleculares, novos compostos foram introduzidos no mercado, como é o caso do diazepam e oxazepam, entre outros.63 Como foi

dito anteriormente, a segurança das BZ era, para além da sua eficácia, o seu cartão de visita para a prescrição e consumo em massa. Sabia-se que efeitos como a depressão respiratória, causada por uma sobredosagem de barbitúricos, por exemplo, não aconteciam, mas, no entanto, durante anos, não se sabia o porquê. De facto, o mecanismo de ação das BZ só começou a ser descrito em 1977, quando finalmente se associou a sua atividade ao neurotransmissor (NT) ácido gama-aminobutírico (GABA).63 O GABA é um NT inibitório do SNC com dois tipos de recetores: o recetor GABA

A que é

um recetor ionotrópico com 6 subunidades alfa, 4 beta e 3 gama. Este recetor é um canal iónico permeável, neste caso, ao ião cloro; e o recetor GABAB que, por sua vez, é um recetor metabotrópico,

30 As BZ são agonistas alostéricos do recetor GABAA, ou seja, ligam-se a um local diferente do

local ativo, neste caso denominado por local das BZ, e potenciam a ação inibitória deste NT.63,64 Esta

interação é interessante, não só pelo facto da sua ação ser o aumento da frequência de abertura do canal e não o aumento da duração como os barbitúricos, mas também pela panóplia de atividades que as diferentes BZ apresentam. O recetor tem diferentes subunidades que se combinam levando à existência de múltiplas isoformas. A interação das moléculas benzodiazepínicas com as diferentes isoformas faz com que o efeito terapêutico seja diverso, consoante a atividade que estão a inibir a nível do SNC.64 Deste modo, as BZ têm uma ação sedativa, amnésica, hipnótica, anestésica quando

em combinação com outros sedativos, anti convulsivantes e miorelaxantes. Tais atividades, por sua vez, dão aso a múltiplas indicações terapêuticas, consoante as características de cada molécula, como por exemplo o tempo de ação. As BZ podem ser classificadas como de ação curta, inferior a 8 horas, ação intermédia, entre 8 a 24 horas, ou ação longa, superior a 24 horas. Na Tabela 4 estão classificadas algumas BZ de acordo com o seu tempo de semivida.65 Nesta, é possível observar

alguns exemplos de BZ aprovadas em Portugal. No entanto, ao efetuar uma pesquisa no prontuário terapêutico, observa-se que são comercializadas 20 moléculas nas farmácias portuguesas.66

Tabela 4 - Exemplos de BZ e respetivas indicações terapêuticas, de acordo com o tempo de ação. (adaptado de 64,66 )

Tempo de ação DCI Indicação Terapêutica

Ação Curta (menor que 8 horas)

Brotizolam Insónia Midazolam Sedação/Anestesia/Ansiedade Triazolam Insónia Ação Intermédia (entre 8 e 24 horas) Oxazepam Ansiedade Alprazolam Ansiedade Lorazepam Ansiedade/Insónia/Adjuvante Anestesia/Crise Epilética Ação Longa

(maior que 24 horas)

Loflazepato de etilo Ansiedade

Diazepam Ansiedade/Espasmos

musculares/Convulsões

Cloxazolam Ansiedade/Insónia

Farmacologicamente, todas as BZ têm os mesmos efeitos – ansiolíticos, hipnóticos, relaxantes musculares, anti convulsivantes e amnésicos – mas, podem ser divididas tendo em conta a sua utilização clínica. Frequentemente, e como é possível observar pela tabela acima, as BZ de ação curta são utilizadas como hipnóticas no tratamento de insónia e as de duração intermédia e longa como ansiolíticas.65, 67, 68

31 A nível de efeitos secundários, estes estão relacionados com o próprio efeito farmacológico das BZ, são dependentes da dose e potenciados pelo uso concomitante de outros depressores do sistema nervoso central, como o álcool por exemplo.64, 67 Os efeitos adversos mais comuns são ataxia,

sedação excessiva, sonolência, astenia, irritabilidade, amnésia anterógrada, entre outros.64, 67 A

amnésia pode ser útil a nível clínico, sendo que as BZ podem ser administradas antes de procedimentos potencialmente traumatizantes para o doente, como é o caso de exames invasivos ou tratamentos quimiotrápicos.64 Por outro lado, a molécula flunitrazepam – nome comercial Ruhypnol®

- ficou conhecida como “a droga da violação” visto que foi amplamente utilizado em crimes desta natureza devido aos seus efeitos sedativos e amnésicos e à facilidade de adulteração de bebidas com a mesma.63, 64 O uso exacerbado e impróprio do fármaco levou a que o fabricante alterasse a

formulação para que o comprimido fosse menos solúvel em água e, ainda, para que deixasse uma cor azul na solução de modo a poder ser reconhecido que a bebida está alterada.63 Em Portugal, a

autorização de introdução de mercado do flunitrazepam foi revogada em 2010.69

As BZ de curta-duração têm um maior risco associado de dependência, pois são mais rapidamente eliminadas o que não permite uma suspensão gradual, podendo levar até a sintomas de abstinência entre as doses.64, 65, 67 Por exemplo, o triazolam, utilizado para tratar insónias, é de curta

duração – cerca de 4 horas - e provoca ansiedade reflexa durante o dia, o que leva a um maior potencial de dependência e também de abuso, uma vez que pode levar o doente a tomar doses em excesso para diminuir os sintomas.64, 70 A dependência das BZ é um problema de saúde pública que

foi aumentando com o aumento do consumo das mesmas.63 As BZ causam dependência física se o

seu uso for continuado. O síndrome de abstinência de BZ caracteriza-se por ansiedade e insónia exacerbadas e até uma excitabilidade do SNC que pode provocar convulsões.64 Curiosamente, no

caso do alprazolam, para além destes sintomas, devido aos seus efeitos adrenérgicos alfa 2, quando há uma interrupção abrupta do fármaco, pode existir um estado hiperadrenérgico devido à hipersensibilidade destes recetores. Este, sendo assim, pode provocar crises hipertensivas e taquicardia.70 Os sintomas paradoxais podem também ocorrer, especialmente na população mais

idosa, estes passam por inquietação, pesadelos, agressividade e até podem ocorrer psicoses, entre outros.67, 71

Assim, as BZ, em Portugal, estão maioritariamente indicadas no tratamento de ansiedade e insónia quando estas são de carácter grave.71 Quanto à duração de tratamento, está preconizado que

para ansiedade patológica não deve ser maior do que 8 a 12 semanas e, que para insónia patológica não deve passar as 4 semanas. Ambas incluem já o tempo necessário à descontinuação do fármaco.71

Ainda, a Direção Geral de Saúde recomenda que não deve ser utilizada mais do que uma BZ no tratamento das duas patologias. Estas recomendações são suportadas pela Agência Europeia do Medicamento (EMA) e pela Food and Drug Administration (FDA).71 As BZ estão contraindicadas em

doentes crónicos com miastenia gravis, ataxia, apneia do sono, insuficiência respiratória, glaucoma de ângulo fechado e ainda em situações agudas de depressão do SNC.

32 Nos capítulos seguintes, irá ser feita uma descrição do padrão de consumo das BZ em Portugal e no mundo e, ainda, as consequências estudadas do consumo a longo prazo das mesmas.

2.1.2. Consumo de Benzodiazepinas

Desde a introdução no mercado da primeira BZ que este grupo de fármacos ganhou popularidade entre os prescritores devido às suas novas características, tal como já foi explicado no capítulo anterior. Na década de 1970, a prescrição destes fármacos continuava a aumentar, assim como a sua popularidade entre os médicos e utentes.63 Apenas a partir dos anos 80 é que começou

a surgir a preocupação com o abuso e a dependência relacionada com estas moléculas, o que mudou a maneira como as pessoas percecionavam as BZ sem que, no entanto, o número de prescrições diminuísse.63

O consumo a nível mundial destes fármacos é ainda avassalador. Por exemplo, em 2007, nos Estados Unidos da América (EUA), foram feitas cerca de 85 milhões de prescrições contendo BZ para doentes em ambulatório.68 Um estudo, publicado em 2015 e realizado nos EUA, analisou dados de

cerca de 220 milhões de adultos sobre o consumo de BZ. Destes, cerca de 5,2% tinha aviado uma receita com BZ pelo menos uma vez no ano de 2008.68 Os autores estimaram que 1 em cada 20

adultos nos EUA compram uma BZ durante o período de um ano e que, dentro deste grupo, cerca de 30% dos indivíduos entre 51 e 80 anos utiliza BZ por um período superior a 120 dias. 68 Neste estudo,

foi também interessante perceber que 9 em cada 10 dos utilizadores de BZ durante mais de 120 dias tinha a sua prescrição feita por um médico dos cuidados de saúde primários ou por um não-psiquiatra.

68 Este último facto ilustra bem a pressão para a prescrição sentida nos cuidados de saúde primários,

feita pelos próprios doentes, e, ainda a percepção, por parte dos prescritores, de que as medidas não farmacológicas não são tão eficazes para a resolução do problema em tempo útil.68, 70, 72, 73

Em Inglaterra, foram realizadas cerca de 16 milhões de prescrições em 2015 74, enquanto que

na Alemanha, cerca de 5% da população abrangida por seguros de saúde, privados ou públicos, recebe uma prescrição de BZ 75

Já em Portugal, quando comparado com outros países da União Europeia, o consumo de BZ é muito maior 65, 76 Quando se compara a Dose Diária Média por 1000 habitantes (DHD) em Portugal

com outros países europeus a diferença é abismal – 96 DHD comparado a 53 DHD em Itália ou 62 DHD na Noruega.65 Ainda, entre os anos de 2003 e 2010 houve um aumento de 24%77, o que é

incongruente com as recomendações já implementadas pela EMA em 1991, que limitam o consumo de BZ a casos onde é estritamente necessário.71

As BZ são, em Portugal, o grupo de psicofármacos mais utilizados, o que contrasta com outros países da Europa, como a Finlândia, onde o zolpidem e o zoplicone – fármacos hipnóticos benzodiazepinas-like - dominam o mercado.76 Definitivamente, as BZ, representam a maior parte dos

fármacos psicoativos prescritos, sendo que as 3 moléculas com maior consumo são o alprazolam com 23,7 DHD, o lorazepam com 16,9 DHD e o diazepam com 9,2 DHD.76 À semelhança de outros estudos

33 já mencionados, é nos cuidados de saúde primários que a maior parte das prescrições tem origem, sendo neste local que ocorrem 82% das prescrições do setor público.76

Os estudos mencionados acima, quer para os outros países, quer para Portugal, ilustram também outro padrão de consumo. As BZ são maioritariamente prescritas a mulheres, quando comparado aos homens e, ainda, a adultos mais velhos, quando é analisada a idade do doente.68, 72, 75, 76 Este último facto, é de particular interesse quando se analisa as consequências da utilização de

BZ nos idosos, que vão ser detalhadas no próximo capítulo.