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Bernardo & Marina: outros aspectos musicais

1.8 O resto é silêncio

1.8.5 Bernardo & Marina: outros aspectos musicais

A existência de um maestro e compositor no romance dá a ele uma dimensão musical bastante ampla, e Erico explora essa possibilidade ao extremo. Todos os capítulos que envolvem Bernardo e sua esposa contêm conotações musicais.

A relação de ambos se equilibra (e desequilibra) na filha morta, Dicinha, que permeia os pensamentos de ambos. Marina, por não esquecê-la, Bernardo, pela fuga. Enquanto Bernardo mergulha no trabalho, que passa a ser a única razão de sua existência, Marina afunda na melancolia, nas lembranças, na esperança de uma saída mágica daquela situação. A filha, viva, era esperança para ambos:

Bernardo (...) via em Dicinha uma futura pianista famosa. Começara a dar- lhe lições, traçara para ela planos fantásticos, vaticinava-lhe uma carreira fabulosa e gostava de dizer que um dia ainda havia de dirigir uma grande orquestra na interpretação do Concerto nº 1 de Tchaikowsky, com Dicinha ao piano. Iludia-se. Via na menina uma vocação que ela na realidade não tinha. Era uma criaturinha sensível, sim, delicada, capaz de apreciar a música, mas sem nenhuma habilidade interpretativa especial. Revelava-se apenas uma aluna medíocre como cem outras. Isso, no entanto, não impedia que ela se comovesse até as lágrimas quando ouvia Mozart ou Beethoven (RS, p. 47).

Até mesmo o nome da menina, ocultado pelo apelido, possui ressonâncias musicais: Eurídice. O nome vem da lenda de Orfeu e Eurídice, tema de muitas obras musicais, principalmente óperas, notadamente Orfeu (1607) de Monteverdi e Orfeu

et Euridice, de C.W. Glück (1762), além de obras de Liszt, Paer, Benda, Offenbach,

Milhaud, Malipiero, Casella e Stravinsky, entre outros. O nome da menina é totalmente imbricado à história da lenda, já que Euridíce morre e Orfeu tenta recuperá-la fazendo uma viagem até o Hades, o que ele faz cantando de forma a comover Caronte, o barqueiro que guarda o rio Estige, no outro lado do qual se encontra o Inferno dos gregos. De certa forma, o nome dado à filha contém já o seu destino. Também as tentativas de Marina em recuperar a filha através de lembranças, em passeios, no seu dia-a-dia, assim como o desconsolo do pai, ligam- na à lenda.

Fica clara a sensibilidade da menina para a música, não obstante as dúvidas quanto ao seu talento como musicista. Mas a expectativa sobre as possibilidades futuras tornam ainda maior a falta que ela faz ao maestro:

Não era apenas o pai que perdia a filha. Era o regente da orquestra que via morrer a solista de seus sonhos. Era o mundo que via desaparecer para sempre uma futura grande virtuose do piano. E algumas semanas depois, num de seus concertos, Bernardo Rezende regia com lágrimas nos olhos, e em memória da pequenina morta, a “Pavane Pour Une Infante Defunte”, de Ravel (RS, p. 47).

Desde o início do texto se estabelece uma relação muito próxima com algumas obras, notadamente essa obra de Ravel. A obra, composta inicialmente como uma peça para piano, em 1899, foi mais tarde orquestrada pelo compositor, sendo essa a sua forma mais conhecida, e que foi tocada pela primeira vez em Paris em 1911. Tem como inspiração uma princesa morta ainda criança, e esse mote a imbrica com a temática da morte de Dicinha, conectando a obra de Ravel a O resto

é silêncio. A Pavane é uma das obras que são executadas no concerto da noite no

Teatro São Pedro. Uma notícia de jornal anuncia o programa:

Amanhã, Sábado de Aleluia, teremos no velho Teatro São Pedro o último concerto da série que o Centro Musical está realizando sob o patrocínio da Secretaria de Educação, e que tem como regente o famoso maestro brasileiro Bernardo Rezende, contratado no Rio de Janeiro especialmente para esse fim. O programa de amanhã foi muito bem escolhido, incluindo uma sinfonia de Beethoven e peças de compositores clássicos e modernos. Teremos finalmente a oportunidade de ouvir em primeira audição, aqui, a famosa “Grande Suíte Brasileira” de autoria do consagrado compositor Bernardo Rezende (RS, p. 51).

A peça de Bernardo dá uma idéia do plano estético do compositor que ele é, enquanto que a sinfonia de Beethoven é um elemento central da parte derradeira do romance, quando Tônio Santiago imagina a possibilidade da escrita de uma obra futura que possa conter todos os elementos de uma longa saga baseada na história do Rio Grande do Sul, idéia seminal realizada posteriormente em O tempo e o vento.

Também os outros capítulos relacionados com Bernardo e Marina contêm títulos musicais: Noturno, Minuete, Fuga, Scherzo. Todos apresentam uma situação dupla, são títulos com nomes de formas musicais, mas que também comentam e traduzem o estado de espírito dos personagens num momento específico.

As múltiplas referências musicais de O resto é silêncio, com sua diversidade de personagens e situações, abrem caminho para a utilização da música em O

tempo e o vento, num momento em que o amadurecimento de questões formais

A trilogia O tempo e o vento representa o cume da criação literária em Erico Veríssimo, e todas as obras da primeira fase podem ser vistas como um exercício do escritor em busca da maturidade artística necessária para a escrita de seu mais importante romance. Maria da Glória Bordini e Regina Zilbermann destacam o significativo episódio narrado pelo próprio Erico sobre o nascimento de Saga:

Achava-me eu (...) com firme tenção de começar a escrever um massudo romance cíclico que teria o nome de Caravana. Seria um trabalho repousado, lento e denso a abranger duzentos anos da vida do Rio Grande. Começaria numa missão jesuítica em 1740 e terminaria em 1940.

Levei a máquina de escrever portátil para a beira de um lago artificial, debaixo de copados pinheiros, decidido a escrever a primeira linha do romance-rio. (...) Silêncio. Tudo tranqüilo. Tudo, menos eu. Não sei que secreta intuição me dizia que não tinha chegado a hora de escrever

Caravana (2004, p. 24).

O escritor vinha, portanto, pensando no romance desde os anos trinta, e amadureceu o projeto até sentir o momento adequado para sua elaboração. O momento adequado só advém depois de 1945, depois da escrita de Saga e O resto

é silêncio, mas também depois da queda de Getúlio Vargas, fato que é significativo

no desfecho da trilogia e que faz com que Erico estenda a narrativa dos planejados 1940 até o ano de 1945. O primeiro volume da trilogia, O continente, foi escrito entre 1947 e 1948, tendo sido publicado em 1949.

Se o final de O resto é silêncio já anuncia a trilogia (CANDIDO, 1972), muitos elementos constantes nos romances anteriores estarão novamente presentes em O

tempo e o vento. A trilogia se constitui, dessa forma, num estuário que reúne e

transfigura em algo novo muitos elementos anteriores, sejam esses elementos temáticos ou estruturais. Desta forma, também o espectro musical contém aspectos inteiramente novos, assim como repete elementos das obras anteriores, transfigura- os e transcende-os de várias maneiras.