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Embora tenha sido escrita antes do término de O tempo e o vento, a novela

Noite (N) pode ser considerada o primeiro livro da última fase do escritor. A busca

por temas da política internacional não está presente aqui, mas o questionamento humano que caracteriza as últimas obras, sim, embora com a utilização de elementos peculiares, diferentes dos romances que lhe sucedem. Essas diferenças, no entanto, não obscurecem as semelhanças com as obras seguintes a O tempo e o

vento33. Nesse sentido, a única voz da crítica que notou a possível conexão foi

(...) a clausura acabou se descobrindo, ao menos em parte, e o que vemos agora é que, apesar do disfarce de seus fantasmas e da atmosfera surrealista em que deambulam dentro da noite, temos finalmente o livro em que Erico começa a confessar-se, a mostrar o fundo de si mesmo, o outro lado de sua alma. É outra dimensão que se oferece ao escritor, dimensão na qual ele penetra cheio de subterfúgios premonitórios, mas movido pela suspeita de que novas possibilidades, mais ricas e numerosas, se abrem para as suas sondagens de animador de criaturas e de ambientes. Por isso mesmo, não acredito que, satisfeito o compromisso com O tempo e o vento, Erico remonte à maneira dos livros anteriores. Ou muito me engano, ou a nova experiência terá uma importância decisiva no seu futuro itinerário (VELLINHO, p. 230-231).

A crítica costuma atribuir ao livro um sentido de anomalia dentro da obra do escritor. Segundo Chaves:

Em geral o livro foi incompreendido, até por muitos dos mais fiéis admiradores de Erico Verissimo, que não aceitaram facilmente essa narrativa angustiada e aniquiladora que interrompia o livre fluxo criador do grande romance histórico. Pode-se dizer que foi a obra menos comentada do autor; como sói acontecer diante das dificuldades, a crítica calou (CHAVES, 1980, p. XIII)34.

Os críticos que se debruçaram sobre o livro encontraram nele uma ligação com os romances urbanos da primeira fase do escritor, entre 1933 e 1943. Apesar do ambiente urbano, os elementos da narrativa e seus signos transcendem as primeiras obras, assumindo diferentes significados. Segundo Maria da Glória Bordini:

História de um indivíduo amnésico, que atravessa a noite de uma grande cidade – facilmente identificável com a topografia de Porto Alegre – em busca de sua identidade, acompanhado por um gigolô mefistofélico e um artista corcunda, o romance do desconhecido se afasta da predominância da claridade que caracteriza todo o romance urbano do autor (BORDINI, 2003, p. 148).

33 Em termos de estrutura e emprego de alguns aspectos formais, Noite antecipa procedimentos que serão utilizados nos últimos livros, notadamente em O prisioneiro e Incidente em Antares.

34 O comentário refere-se à crítica brasileira, pois, como observa o mesmo autor em obra posterior: “Tal não ocorreu (...) no caso da crítica estrangeira, principalmente a norte-americana, como se pode deduzir dos títulos incluídos na bibliografia apresentada no final deste estudo (CHAVES, 2001, p. 136).

A deambulação amnésica do Desconhecido pela noite da cidade assume contornos expressionistas, que dão à obra múltiplas possibilidades interpretativas. Carregada de uma angústia que só pode ser encontrada de forma semelhante em obras posteriores, a novela se passa dentro desse “ambiente alucinatório” (CHAVES, 2001, p. 117), onde “o mundo externo é um labirinto (...) e o indivíduo também já não confere um valor à sua própria existência” (CHAVES, 2001, p. 118).

Diante do caráter da obra, o questionamento que se faz é: qual o papel da música, se ela existe, numa obra assim?

Pois é justamente aí que ela adquire uma força expressiva inaudita, inesperada e fundamental.

3.1.1 A paisagem musical de Noite

O Desconhecido anda pela cidade, perdido na paisagem e em si mesmo, e essa cidade se apresenta como um monstro de hostilidade, agressiva, ruidosa, suja. E é partir daí, do ruído, que se estabelece um parâmetro para a música em Noite. Há uma dualidade entre o ruído hostil da cidade e o aconchego e a familiaridade da música. Já no início, os ruídos se apresentam:

Com o rosto colado ao poste, o Desconhecido escutava os ruídos da noite: o tropel e as vozes indistintas dos transeuntes na calçada; a surda trovoada do tráfego riscada pelo trombetear das buzinas e, a intervalos regulares, pelo tilintar das campainhas dos sinaleiros (N, p. 2).

Em termos psicológicos, o estado de anulação em que o Desconhecido se encontra se traduz no não reconhecimento dos sons mais familiares, que perdem o sentido e terminam se transformando, também eles, em ruído:

Uma voz rouca mas vibrante destacava-se dos outros ruídos da noite. Na calçada oposta um vendedor de jornais gritava: “Diário da Noite! Diário da Noite!” Aos ouvidos do Desconhecido o nome do jornal soava como – “Diaranôi! Diaranôi!” Ele disse baixinho – Diaranôi. Depois repetiu mais alto – Diaranôi! E sorriu, satisfeito, como se de repente houvesse aprendido a língua daquela cidade estrangeira (N, p. 4).

Num primeiro momento, quando o Desconhecido perambula de forma desordenada pela cidade, numa fuga insana e paranóica, todo ruído, seja de carros e máquinas ou de vozes, é interpretado por ele como um sinal de perigo e desconforto, o que só aumenta sua sensação de estar sendo perseguido:

Vozes soavam perto de seus ouvidos, feriam-lhe os tímpanos, mas não lhe diziam nada. No mais, era aquela dor branca na boca do estômago, e a solidão, o abandono, o ruído regular e implacável daquelas passadas que o perseguiam. Levou algum tempo para perceber que eram seus próprios passos que o perseguiam (N, p. 12).

À medida que a narrativa avança, mais intenso se torna o caráter hostil da noite, daquele “espaço que se enchia de guinchos, latidos, vozes” (N, p. 12). O encontro com os dois companheiros que irão infernizar sua jornada noturna só faz aumentar a pressão sobre o Desconhecido. E é aí, no momento em que a angústia se torna insuportável, que aparece o primeiro sinal reconhecível de música:

O Desconhecido viu o homem de branco tirar do bolso um objeto metálico e levá-lo aos lábios, como para o beijar. Seus olhos se entrecerraram e os sons duma gaitinha ergueram-se no ar, primeiro tímidos e indistintos, abafados pelo vozerio geral. Aos poucos, porém, as pessoas foram silenciando e as notas duma valsa começaram como que a alcalinizar o ambiente (N, p. 34).

A única luz que emana na noite é o som daquela gaitinha, tocada por um homem simples, rodeado pela hostilidade de todos. A singeleza da música possui algo de profundamente humano que, naquele ambiente, lembra vozes, sonhos, atos de ternura há muito tempo esquecidos. E aqui ocorre para o Desconhecido a associação entre a música, a melodia tocada pelo homem de branco (como também

é chamado o homem da gaitinha) e a sua inocência, o seu aparente amor incondicional, desprotegido e ainda assim superior a tudo que o rodeia. O homem e sua música pairam acima da atmosfera decadente, mesmo não sendo ele o único a produzir sons musicais. O corcunda em vários momentos deixa escapar melodias entrecortadas e sinais de alguma intimidade com a música. Mas a música que ele produz de maneira alguma emana a mesma vibração da melodia do homem de branco: “O homem do cravo caminhava em silêncio, o corcunda cantarolava uma

música qualquer e de vez em quando fazia um passinho de dança, mas sempre de

cabeça baixa, como que entretido a namorar a própria sombra” (N, p. 35, grifo nosso).

Ao contrário da música do homem de branco, o corcunda canta ou assobia envolto em atitudes completamente destoantes. A música é um mero invólucro para seus reais interesses, e termina reforçando o caráter bizarro de seus atos:

O corcunda estava desinquieto, dizia coisinhas picantes ou brutais para as mulheres, fazia-lhes gestos obscenos e num dado momento parou diante da janela duma loura oxigenada e começou a executar uma dança erótica (...) Alguns minutos depois o corcunda saía da casa da prostituta, assobiando vigorosamente (N, p. 36-37).

Essas diferentes dimensões que a música adquire na novela são distinções fundamentais que irão pautar a utilização da mesma em obras posteriores. Embora a tendência ao afastamento ou inexistência de música em momentos de violência ou morte continue existindo, as divisões se tornam cada vez mais tênues, havendo uma flexibilização da presença musical nas obras do escritor.

Uma das questões que tornam Noite um livro peculiar é a sua concisão, que faz com que diversos elementos da narrativa fiquem condicionados a certas características. Segundo Flávio Loureiro Chaves:

(...) a narrativa de Noite concentra a ação sobre a experiência de uma só personagem e a reduz à duração de cerca de dez horas. Por outro lado, o clima opressivo da cidade encarcerada nada tem a ver com o mundo solar do Capitão Rodrigo, e remete de imediato para o áspero confronto com o nosso presente (2001, p. 116).

Ambas as questões provocam reflexos na música. Ela é igualmente concisa, sem a presença derramada que ocorre em outras obras do escritor; ela é igualmente pontual, já que o tempo reduzido em que a ação ocorre não deixa lugar para excessivas intervenções musicais; e ela se reveste dessa posição única, de antagonismo à escuridão da noite: num mundo tomado pelo vazio, ela aponta um caminho, traz conforto, embora não deixem de existir sons musicais que não contenham esse significado.

A concisão, a pontualidade e a sua utilização em meio a ambientes onde a angústia predomina são características que vão ser utilizadas a partir de Noite, de diferentes formas, nos romances posteriores, o que só reforça a posição integrada ao restante da obra que essa novela ocupa na produção do escritor.