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1.7 Saga

1.7.4 Pastoral

A última parte de Saga, intitulada Pastoral, apresenta o seguinte fragmento encimando o título:

Figura 4 - Fragmento da Sinfonia nº6, Pastoral, de Ludwig van Beethoven (VERISSIMO, 1940, p.313 -

S1).

Este fragmento pertence ao primeiro movimento da Sexta Sinfonia, conhecida como Pastoral. Note-se que o fragmento foi erroneamente assinalado como sendo parte da Terceira Sinfonia, provavelmente por um lapso ou do escritor ou do editor. Naturalmente, não faria nenhum sentido tal fragmento pertencer à Eroica. Como o título da última parte do romance indica, as ligações intertextuais confluem para a

Pastoral de Beethoven, fechando o plano sinfônico da obra.

A Sexta Sinfonia de Beethoven foi composta em 1808, concomitante com a

Quinta Sinfonia. Possui cinco movimentos, caracterizando a tendência de Beethoven

em aumentar o tamanho das sinfonias, tendência que estabelece o padrão a ser seguido pelas gerações posteriores de compositores românticos. É uma obra descritiva, apesar da observação de Beethoven (apud MARSTON, 1996, p. 235) de que era “mais uma expressão de sentimento do que de pintura”. O fragmento citado é do início da sinfonia, um Allegro ma non troppo que tem como subtítulo Erwachen

heiterer Empfindungen bei der Ankunft auf dem Lande (Despertar de sentimentos

felizes na chegada ao campo). O diálogo musical-literário se estabelece de forma plena com o sentimento de Vasco ao voltar para o Brasil, com a intenção de se estabelecer no campo, de volta à natureza, prenunciada e sugerida já na primeira

parte do romance, quando Vasco, preso a uma cama de hospital em Barcelona devido a ferimentos sofridos no campo de batalha, e já pressentindo a inutilidade e a sordidez da guerra, ouve de seu colega de convalescença, D. Miguel, que “o mal de nosso tempo é que os homens se afastaram da natureza” (S, p. 159). Num processo cíclico, as idéias de Vasco se desenvolvem a partir de lembranças, sentimentos e troca de experiências variadas que o levam à solução final. O trecho da Pastoral que é citado corresponde exatamente ao sentimento de Vasco em sua nova morada:

O arado é meu carro de vitória, e quem marca o ritmo desta marcha triunfal são dois lerdos e plácidos bois oscos, bons e vigorosos como o chão que estamos a preparar para as próximas sementeiras.

Fevereiro de um novo ano. O verão vai forte, mas o sol é dourado e benigno no vale de Águas Claras, a quase oitocentos metros acima do nível do mar (S, p. 392).

Esta última parte de Saga guarda outras correspondências com a Pastoral, além das já citadas. Cada um dos cinco movimentos da Sexta Sinfonia está relacionado a sentimentos ligados à natureza. O primeiro movimento, conforme já dito anteriormente, está relacionado a sentimentos felizes na chegada ao campo. O segundo movimento, um Andante molto moto, tem como subtítulo Szene am Bach (Cena junto ao riacho); o terceiro movimento, um Allegro, tem como subtítulo

Lustiges Zusammensein der Landleute (Alegre reunião de camponeses); o quarto

movimento, novamente um Allegro, tem como subtítulo Gewitter, Sturm (Trovoada, tempestade); o quinto movimento, um Allegretto, tem como subtítulo Hirtengesang:

Frohe und dankbare Gefühle nach dem Sturm (Canção do pastor: sentimentos

alegres e gratos após a tempestade).

Não apenas o primeiro movimento encontra ressonâncias na parte final de

Saga, mas cada um dos outros movimentos são reprisados em um momento ou

outro. Vasco e Clarissa moram no sítio de veraneio de Fernanda e Noel localizado “no benigno vale de Águas Claras, a quase oitocentos metros acima do nível do mar” (S, p. 391, grifo nosso). O segundo movimento da Pastoral é reprisado constantemente, as cenas junto ao riacho, onde as águas correm tranqüilas num vale onde Vasco vive alvoroçado na “ânsia de querer levar à tela o azul dessas montanhas, céus, sombras e lagunas: o verde destas árvores, colinas, roças, relvas

e florestas; a transparência dessas águas, distâncias e neblinas; e o tépido ouro deste sol” (S, p. 391, grifo nosso).

A “alegre reunião de camponeses” do terceiro movimento é evocada na reunião com um vizinho, Dr. Winkler. Vasco não é um camponês comum, é um homem da cidade, culto, aficcionado das artes. Uma “alegre reunião de camponeses” para Vasco não seria, portanto, uma reunião comum. Dr. Winkler dá o ensejo a esta reunião, uma reunião de camponeses intelectuais:

No alto duma colina, a dois quilômetros de nosso sítio, num chalé em estilo bávaro, mora um alemão alto, louro, barbudo e silencioso, que vive solitário entre seus livros e seus cães de raça. É um apaixonado da música e muitas vezes pela manhã ou ao entardecer, quando o vento sopra do sul, chegam até nós os sons de seu órgão. E é bem estranho sentir a gente que a alma de Bach anda perdida pelo vale de Águas Claras, assombrando estas montanhas e florestas, penetrando os chalés e entrando pelos ouvidos dessas criaturas simples, encardidas e de olhos vazios.

O mês passado fiz relações com o meu vizinho solitário, que é um homem bastante cultivado. Trouxe-o à minha casa e mostrei-lhe meus livros e quadros. Ele gostou tanto de uma natureza-morta, que acabei dando-lhe a tela de presente. O homem relutou em aceitá-la, mas como eu insistisse, acabou cedendo. Quando lhe falei em Beethoven com entusiasmo, a sua

rendição foi completa (S, p. 396, grifo nosso).

Mais uma vez Beethoven estabelece a linha de ligação do diálogo musical e literário, um diálogo que se torna polifônico com o acréscimo de novas linhas melódicas a cada passo. Bach (Szene am Bach) é o próprio riacho onde o encontro dos camponeses ocorre. O alegre encontro de camponeses intelectuais ocorre à sombra (ou som) de Bach e Beethoven. Mais que um amigo, Dr. Winkler se torna o ponto de ligação direto de Vasco com a música ao se tornar seu professor. “Resolvi aprender música com o Dr. Winkler e espero um dia compor alguma coisa. O desconhecimento técnico da arte musical é uma de minhas maiores deficiências” (S, p. 397).

A tempestade do quarto movimento da Pastoral encontra eco na chegada da guerra. “Uma noite todo o horror da guerra nos entrou em casa e na alma através do noticiário do rádio e dos jornais” (S, p. 404): trovoada, tempestade. “A Holanda e a Bélgica invadidas e dominadas... O rolo compressor germânico a avançar esmagador e invencível... Cidades bombardeadas em chamas... Populações civis em fuga pelos caminhos e metralhadas impiedosamente” (S, p. 405). Saga foi

escrito durante esse período da história, quando a Segunda Guerra iniciava. Erico apontou em seu livro de memórias (VERISSIMO, 1978, p. 272) e também no prefácio de Saga (S, p. 9) o quanto o estado sombrio da época influenciou na atmosfera carregada do romance. Esse aspecto da tempestade não encontra solução no romance, a solução do quinto movimento da Pastoral, os “sentimentos gratos após a tempestade”. O último movimento da Pastoral é resolvido de forma a fugir do conflito. O agradecimento após a tempestade é o valor do que eles, Vasco e Clarissa, sentem em comum: a esperança de paz e de que tudo melhore:

Aos poucos um calor de confiança e de coragem se apodera de mim. É algo de profundo e essencial que me vem de Clarissa, da criatura que ela tem nas entranhas, algo que surge das plantas e dos animais domésticos, que brota da terra... (...) Imóveis e abraçados, Clarissa e eu aqui ficamos em silêncio, com os olhos postos no horizonte, a esperar o novo dia com um secreto temor e uma secreta esperança (S, p. 408).