• Nenhum resultado encontrado

1.8 O resto é silêncio

1.8.2 Paisagens musicais individuais

Junto a essa estrutura, interagindo em composição ou em contraposição a ela, estão os personagens, e aqui também a variedade das paisagens musicais se impõe. Desde logo, se evidencia a presença desse compositor, Bernardo Rezende, com sua multiplicidade de aspectos relacionados à música. Bernardo guarda diversas semelhanças com o compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos, que Erico conhecia e apreciava e com o qual teria um contato pessoal alguns anos depois da publicação de O resto é silêncio, quando de sua segunda viagem aos Estados Unidos, episódio que está relatado em A volta do gato preto, publicado em 1947. Como Villa-Lobos, Bernardo é um compositor nacionalista. O jornal da sexta-feira anuncia:

Amanhã, Sábado de Aleluia, teremos no velho Teatro São Pedro o último concerto da série que o Centro Musical está realizando sob o patrocínio da Secretaria da Educação, e que tem como regente o famoso maestro brasileiro Bernardo Rezende, contratado no Rio de Janeiro especialmente para esse fim. O programa de amanhã foi muito bem escolhido, incluindo uma sinfonia de Beethoven e peças de compositores clássicos e modernos. Teremos finalmente a oportunidade de ouvir em primeira audição, aqui, a famosa “Grande Suíte Brasileira” de autoria do consagrado compositor brasileiro Bernardo Rezende (RS, p. 51).

O título Grande Suíte Brasileira deixa claro qual é a orientação estética de Rezende, título que se assemelha com vários deixados por Villa-Lobos9 ligados à

estética nacionalista. O temperamento difícil, a fama de maior compositor brasileiro, a bem-sucedida carreira de maestro, são pontos de contato entre Bernardo e Villa- Lobos que se evidenciam na obra.

A presença de um personagem compositor e regente introduz na narrativa uma vasta possibilidade de conexões musicais. Como vimos nas obras anteriores do escritor, personagens como Noel e Amaro proporcionam comentários e reflexões a respeito de música, obras e compositores. No entanto, o que se dá com Bernardo Rezende é uma profusão de citações relacionadas a aspectos musicais que não havia acontecido antes na obra do escritor. Músicos, compositores, formas musicais, termos técnicos relacionados à música e obras aparecem em grande quantidade nos capítulos em que Rezende é protagonista, e todo esse manancial de informações se adensa no decorrer da obra para produzir o grand finale sinfônico do romance.

Outra característica resultante da presença de Bernardo na obra é relativa aos títulos dos capítulos em que o compositor aparece, ligados a questões musicais. O capítulo sete, onde o compositor aparece pela primeira vez, é intitulado

Appassionata, nome rico em ressonâncias musicais e também literárias. O título se

refere a uma das mais conhecidas e importantes sonatas para piano de Ludwig van Beethoven10. O nome foi dado por um editor de Beethoven, mas se tornou popular por descrever a apaixonada densidade dramática da obra e tem sido utilizado correntemente desde então. Já foram comentadas na introdução deste estudo as inter-influências existentes entre Beethoven e a literatura, que são múltiplas. Mas o que nos interessa particularmente aqui são as influências imediatas a que Erico estava exposto à época da escrita de O resto é silêncio. Não podemos deixar de considerar Appassionata, novela do escritor inglês James Hilton, obra que foi traduzida por Lino Vallandro e publicada no Brasil pela Editora Globo. Erico conhecia e havia traduzido livros de Hilton, notavelmente Adeus, Mr. Chips, publicado em 194111. Em sua primeira viagem aos Estados Unidos, também ocorrida em 1941, James Hilton foi um dos autores que Erico quis conhecer pessoalmente, fato que é narrado em seu primeiro livro de viagens, Gato preto em campo de neve. Além da conexão com a sonata de Beethoven presente no livro de Hilton e que também

10 Sonata nº 23 em fá menor op. 57, de 1804-1805 (GROVE, 1994, p. 35).

11 Os livros de Hilton foram publicados na famosa Coleção Nobel da Editora Globo, entre 1933 e 1958. Segundo Sônia Amorim, “atribui-se a Henrique Bertaso a idéia de criar a Coleção Nobel, mas é inegável a participação de Erico Verissimo, se não na idéia original, pelo menos na escolha de boa

existe em O resto é silêncio, Appassionata tem a música como eixo condutor da narrativa, o que certamente despertou o interesse do escritor naquele momento. Além disso, a novela de Hilton possui vários pontos de contato com um conto escrito posteriormente por Erico, intitulado As mãos de meu filho.

O titulo do capítulo, além de possuir todas essas conotações musicais e literárias, é apropriado para o momento vivido pelo casal Rezende. A perda da única filha e o sentimento de luto vivido pelo casal, que encontra formas antagônicas de lidar com a situação, mas principalmente o ponto de vista de Marina Rezende, que não se conforma com a perda sofrida, justifica o título. O retrato de Bernardo Rezende não é propriamente lisonjeiro:

Marina estava debruçada à sacada do Grande Hotel, olhando a praça (...) Nunca vira tantas cores num céu... E como era lento o pôr do sol do Rio Grande! Pensou em chamar o marido. Achou inútil. Ele não saberia apreciar a beleza daquele instante. Não tinha atenção para coisas que não dissessem respeito à sua carreira artística, à sua glória, ao seu nome. Parecia viver obcecado pelas legendas que os jornais e revistas pudessem escrever para suas fotografias. O maestro Rezende na intimidade. O

famoso compositor Bernardo Rezende sorrindo para a nossa objetiva. O Stokowsky brasileiro assinando autógrafos para as suas fãs (RS, p. 43).

Parte da evolução do escritor, das descrições não-maniqueístas em comparação com alguns personagens dos livros anteriores, provém do fato que de forma geral os personagens com inclinações artísticas dos romances anteriores (Amaro, Noel, Vasco) eram humanistas, com defeitos, sim, mas que geralmente se contrapunham à falta de caráter de outros personagens (Aristides Barreiro, Norival Petra, Leitão Leiria). Havia uma linha divisória bem definida entre os humanistas e os homens que se preocupavam primordialmente com o capital e as aparências. Bernardo Rezende, no entanto, é um artista que contém ambas as facetas. Não deixa de ser um músico consciente de seu ofício, mas não se contrapõe aos afagos da fama e da vaidade, se tornando por vezes insensível a aspectos humanos que lhe são próximos. Essa crítica social relacionada não mais apenas com personagens que são empresários ou capitalistas, mas sim ligada a personagens que têm certa sensibilidade artística, aponta para novos rumos dentro da obra do escritor.

parte dos títulos” (1999, p. 90). Para maiores detalhes a respeito da participação do escritor nesse e em outros empreendimentos editoriais recomendamos a leitura da obra referida.

Mas não é Bernardo Rezende o único personagem que mantém uma relação ambígua com a música, também o desembargador Ximeno Lustosa apresenta um rico envolvimento com questões musicais. Embora tenha uma relação formal com o mundo da cultura, primordialmente preocupado com o status que esta pode lhe conferir, Ximeno gosta de música. A primeira manifestação desse gosto é sua paixão pela ópera, que revela um pouco desse superficialismo nas relações e a predileção pelo que é fácil, palatável:

A música tinha-lhe o poder de alisar-lhe os nervos, de fazê-lo esquecer todos os dissabores da vida. Bem, mas precisava ser música de ópera, principalmente música de ópera. Verdi era o seu deus. Que falassem os pedantes que viessem com seus Beethovens, Debussys, Stravinskys e quejandos: Não havia nada como a doce melodia italiana, doutor, fácil, cantante, cristalina. Ele não podia dormir sem sua dose de ópera... uma ária que fosse, um prelúdio, um intermezzo (RS, p.13).

Ximeno possui preocupações com higiene e saúde que beiram a hipocondria, que se acentuam com a chegada da Semana Santa, o pensamento de sua finitude agravado pela visão da morte de Joana Karewska. Em certo momento hipocondria e ópera confluem:

Mas, e este gosto azedo que não me sai da boca? (...) apanhou um copo com água e pingou dentro algumas gotas de dentrifício (...) Encheu a boca com o líquido leitoso, ergueu a cabeça e, as mãos na cintura, começou a gargarejar musicalmente. Gorjeio... Lucia de Lamermoor... Havia um curioso fenômeno no mundo moderno: os grandes tenores estavam se acabando. Onde um Caruso? Onde um Tita Ruffo? Onde uma Patti? Que se estaria passando com o bel canto? Houve um momento de abstração e sonho em que a mente do desembargador se povoou de teatros e prima-donas. O líquido então lhe invadiu traiçoeiramente o goto. O homem teve um estremecimento e, ansiado, numa súbita náusea, esguichou para o chão a água que tinha na boca (RS, p. 11).

A segunda manifestação da admiração que o desembargador nutre pela música é sua paixão pelo bandolim. Cultiva o hábito como um hobby excêntrico e tenta defender esse hábito perante si mesmo e a sociedade:

Tomou do bandolim que estava em cima duma poltrona, feriu-lhe as cordas com certa bravura. Aprendera a tocar aquele instrumento depois dos quarenta anos, com um amanuense serenateiro de São Gabriel. O bandolim era como um companheiro da solidão. O Dr. Lustosa não achava que o instrumento lhe determinasse uma quebra de dignidade pessoal ou profissional. Grande ledor de biografias, sabia que quase todos os grandes vultos da história haviam tido o seu fraco, o seu passatempo, o seu violon

d’Ingres. Pois no caso dele o violon era o bandolim (...) O bandolim era uma

pitada de condimento picante na sua vida austera, o equivalente duma trêfega florinha amarela num fraque negro e grave. E por tocar bandolim (fazia empenho em que todos soubessem disso) ele se sentia um tanto ou quanto esportivo e mundano (RS, p. 12).

Mas esse mundanismo não pode ferir a imagem de homem austero que o desembargador cultiva, e aí se evidencia o formalismo de sua relação com a música. Sempre preso a convenções sociais, as relações do desembargador com a arte são ambíguas, não contêm a paixão desinteressada de outros personagens da obra de Erico como Noel ou Amaro:

Em assuntos de arte e literatura, guiava-se sempre pela estética oficial, pelo que ele julgava ser o “veredito dos séculos”. Com os mestres, os clássicos, os verdadeiros grandes espíritos, aprendera a distinguir o eterno do efêmero, a separar o joio do trigo (...) As relações, por exemplo, valiam como platéia: gente a quem podemos exibir conhecimentos, dar lições, tocar bandolim, mostrar a nossa coleção de moedas... De resto, se não existissem os amigos, os estranhos – de que lhe serviria ter aquele anel custoso, aquela riquíssima discoteca quase toda composta de música fina? (RS, p. 8-10).

A ambigüidade e o formalismo nas relações com a música perpassam o romance, presentes em diferentes personagens. Na família Barreiro, essas questões chegam ao paroxismo:

Os Barreiros falavam francês durante o almoço e inglês à hora do jantar. No decorrer das refeições Verônica costumava fazer preleções sobre a vida do Barão, enquanto um criado com libré servia a mesa, em torno da qual se guardava um silêncio cerimonioso e grave. Depois do jantar, Aurora, a filha do casal, ia para o piano tocar clássicos; e quando terminava, os outros membros da família aplaudiam, como se estivessem no teatro (RS, p. 33).

Aqui, o costume tipicamente brasileiro das meninas estudarem piano, elemento fundamental da educação feminina nas classes alta e média no século XIX, se depara com um formalismo vazio. O que sobra desse uso é um mero desejo de ostentar, numa época em que novas formas de ouvir música, como o gramofone e o rádio, já existiam.

Curiosamente, essa relação ambígua existente com a música, não havia sido explorada anteriormente pelo escritor. A tomada de consciência sobre o conhecimento das artes e sua utilização como símbolo de status social é uma das características de O resto é silêncio.