• Nenhum resultado encontrado

Se em Um lugar ao sol é perceptível a riqueza na utilização de elementos musicais, em Olhai os lírios do campo (OLC), romance que lhe sucede, não podemos deixar de notar o relativo empobrecimento desse aspecto.

A paisagem sonora de Um lugar ao sol até certo ponto se repete em Olhai os

lírios do campo, romance publicado em 1938 e primeiro grande sucesso de público

do autor. A partir de Olhai os lírios do campo, Erico teria mais tempo para se dedicar à literatura, passando a ser um dos poucos escritores brasileiros a viver de seus livros. Segundo Bordini (2003, p. 146), “a solução humanista fez igualmente o sucesso excepcional de Olhai os lírios do campo, permitindo que o autor passasse a viver dos direitos autorais e promovendo o aumento das tiragens dos romances anteriores”.

Em Olhai os lírios do campo, novamente estamos diante do mundo sonoro de Porto Alegre, do ambiente da cidade grande, com seus bailes e cafés. Apesar dessa característica, entretanto, sob o aspecto estrutural, nesse livro o escritor abandona completamente suas experiências com a técnica do contraponto, optando por uma estruturação simples e certa linearidade na construção do romance.

Apesar de conter menos elementos relacionados à música que os romances anteriores, Olhai os lírios do campo nem por isso é destituído de aspectos musicais. O eixo principal do romance, que gira em torno da relação entre Eugênio e Olívia, traz à tona questões relacionadas à música. Eugênio é, desde criança, uma pessoa sensível que devido à pobreza dos pais e a falta de condições materiais, sofre humilhações de todo o tipo, que vão influenciar a futura decisão de optar pelo curso

de medicina e tentar ascender financeira e socialmente. Na infância e adolescência, muitas das manifestações de sensibilidade de Eugênio são expressas relacionadas à música. Eugênio se põe a assobiar ou canta para espantar a tristeza quando perseguido por colegas que o humilham. Na adolescência, Eugênio se apaixona pela filha do diretor do colégio onde estuda, Margaret. A visão de Margaret sempre está associada com a presença da música. Margaret era solista do coro da igreja, e Eugênio ensaiava ir até “a porta da igreja para ouvi-la cantar” (OLC, p. 40). A menina aparece em sua imaginação junto ao órgão da igreja, cantando de forma angelical. A música que vem da capela num dia em especial, quando Eugênio ouve do lado de fora os sons que dela ressoam, colocam-no num estado de sonho. Sua extrema sensibilidade vem à tona com o bater dos sinos:

Os sinos começaram a tocar. O som musical enchia o ar, parecendo aumentar-lhe a luminosidade. Eugênio passou a sentir aqueles sons em todo o corpo. Estremecia e ficava vibrando em cada badalada. Lembrava-se de outros sinos, de outras igrejas, em outros tempos (...) Os sinos lhe traziam tantas recordações (...) Era alegria ou desespero o que ele sentia? Eugênio apertava os lábios, fechava os olhos. Os sinos estavam em seus ouvidos, na sua memória, na sua epiderme, nos seus nervos (OLC, p. 39).

A sensibilidade de Eugênio acaba por registrar com exagerada precisão os sobressaltos da realidade exterior. Nesse sentido Eugênio tem a sensibilidade irmanada com Noel e Amaro, também por essa aproximação com a música, embora sem o conhecimento musical e a cultura desses.

Mais tarde, quando estudante de medicina, Eugênio passa por grandes dúvidas existenciais, e em meio a elas a música o reconcilia consigo mesmo, ameniza suas contradições:

Lembrava-se do pai, da pobreza triste de sua casa, dos gorilas de suas reportagens. Ruminava as suas lutas, as suas humilhações, pensava nas desigualdades da vida, nas injustiças sociais... Se Deus existia, tinha esquecido o mundo, como um autor que esquece voluntariamente o livro de que se envergonha. Não, mas Deus não existia. Ele “queria não acreditar” em Deus. Além do mais, achava uma certa beleza no ateísmo. Vinham-lhe porém momentos de dúvida. Era quando lhe parecia vislumbrar Deus através de suas impressões de beleza ou pavor. Quando se comovia ouvindo um trecho de boa música ou lendo uma história de abnegação e bondade, ele se reconciliava com a vida e se inclinava a aceitar ou pelo menos a procurar Deus (OLC, p. 58).

Em determinado momento, médico recém-formado, Eugênio salva uma criança. A presença de Olívia e a alegria pelo ato fazem-no chorar. Ele e Olívia saem para comemorar e essa alegria se manifesta de forma musical:

Homens e mulheres caminhavam apressados pela rua, precipitavam-se para os bondes e ônibus. Acima da cabeça das criaturas, brilhavam os anúncios luminosos. A vida é boa! Pensava Eugênio. Ele tinha salvo uma criança. Começou a cantarolar baixinho uma canção antiga que julgava esquecida (...) Por que será – perguntou ele a Olívia – por que será que às vezes de repente a gente tem a impressão de que acabou de nascer... ou de que o mundo ainda está fresquinho, recém saído das mãos de quem o fez? Sem esperar resposta, retomou a cantiga, apertando o braço de Olívia (OLC, p. 109).

Em seguida os dois se dirigem a um restaurante alemão, onde são rodeados pela alegria do momento, a música enche o ambiente e os convida a dançar. A experiência se traduz em um momento de rica confraternização humana, onde a música é o elemento catalisador da alegria:

Era um restaurante de ambiente tirolês. Os fregueses, em sua maioria austríacos e alemães, comiam, bebiam e cantavam (...) A vitrola começou a tocar as “Ondas do Danúbio”. Lá do fundo da sala veio uma possante voz masculina, acompanhando a música. Batendo com a faca nas bordas do prato, Eugênio marcava o compasso da valsa (OLC, p. 110).

O aspecto humanista que a música encarna nesses momentos é um elemento que se repete em diferentes situações na obra do escritor. Neste sentido,

profundo humanismo que converge para a mesma direção de obras da maturidade do escritor, principalmente O prisioneiro e Incidente em Antares.