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1.3 Caminhos cruzados

1.3.2 Caracterizações individuais

A paisagem musical da cidade é permeada pela paisagem individual de seus personagens. Erico não se furta de fazer associações, dando características musicais aos indivíduos que transitam pelo romance. Prof. Clarimundo, completamente desligado de qualquer questão musical na vida diária, parece apenas ligado à “música das esferas” (CC, p. 3). Salustiano Rosa, personagem que encarna o bon vivant, que está sempre em busca do prazer e de uma posição social de destaque na sociedade, encarna a história da cigarra e da formiga. Salu segue os conselhos do pai: “Os homens são formigas! – repetia o velho. – Formigas que levam às costas fardos cem vezes maiores que elas. Devemos ser mas é cigarras, meu filho! (...) Salu começa a assobiar um samba” (CC, p. 18-19).

Essa associação entre a história infantil contada pelo pai, e o “assobiar um samba” remete a um aspecto que já aparecera antes (o personagem Nestor, de

Clarissa, possui características semelhantes) na obra de Erico: a associação entre o

boa-vida e o gosto pela música popular, notadamente o samba, mas não exclusivamente. Tal associação pode estar relacionada à figura do malandro, tão comum à época, quando o samba começava a se firmar como característica nacional.

Como já vimos em Clarissa, a partir da ascensão de Getúlio Vargas ao poder, a divulgação de certos símbolos como forma de firmar a identidade nacional ganha força, entre eles o samba e o futebol. Na década de trinta o samba já está bastante estilizado, contando com compositores da estirpe de Noel Rosa, que possuem uma visão intelectualizada e boêmia da vida carioca. Um dos temas prediletos abordados nesse período é a chamada malandragem, a exaltação do boa-vida, que foge ao trabalho em busca do prazer, ou da orgia, que é o termo utilizado nessa época. Esta idéia está presente em muitos sambas, vide a letra de O que será de mim, de Ismael Silva e Nilton Bastos, de 1931:

Se eu precisar algum dia De ir pro batente

Não sei o que será Pois vivo na malandragem E vida melhor não há... ...Deixa falar quem quiser Deixa quem quiser falar O trabalho não é bom Ninguém pode duvidar Trabalho só obrigado

Por gosto ninguém vai lá (SILVA; BASTOS apud WORMS, 2002, p. 38).

Se para Salu o que interessa é o prazer, que é representado de forma musical, outro personagem que apresenta características semelhantes na narrativa é Chinita, filha do Cel. Zé Maria Pedrosa e namorada de Salu. Desde que seu pai ganhou na loteria, os delírios de grandeza da moça encontraram terreno fértil nas fitas de cinema. Chinita age, fala, se move e ama de acordo com os filmes que viu, imitando trejeitos e, o que nos interessa particularmente, sempre há uma vaga trilha sonora rodando em sua cabeça para seus atos mais banais. Chinita vive sua vida como se fosse um filme, imersa numa trilha musical que ela mesma cria, um pastiche de suas fantasias e vivências. O simples ato de descer a escada de sua casa está envolto por uma atmosfera musical hollywoodiana:

Chinita bem pode descer a escada com naturalidade e ir para a mesa. Mas ela quer gozar inteirinho o prazer de morar numa casa rica como esta, numa vivenda “de cinema”. Vai descendo a escada devagar. (Na sua cabeça soa uma melodia lindíssima ao ritmo da qual ela se move...) (CC, p. 31).

O cinema influencia seu gosto também quanto à dança e à música que toca no rádio, dando preferência aos gêneros musicais importados dos Estados Unidos:

Chinita se levanta, vai ao hall e põe o rádio a funcionar. Fraco e remoto a princípio, mas definindo-se aos poucos, a melodia de um fox invade a sala. Chinita começa a dançar (...) E agita-se ao ritmo do fox, os seios lhe tremem como gelatina, os braços como que riscam desordenadamente o ar, os pés ágeis se movem sobre o parquê (CC, p. 33).

A reprodução de gestos e trejeitos das atrizes de cinema se dá tanto na linguagem corporal quanto verbal, e o fox provê a trilha perfeita para essa reprodução: “Chinita salta – oh boy! reboleia as nádegas, cada vez mais tomada pelo frenesi da dança. Faz de conta que o pintor e papai são uma platéia, faz de conta que ela é Ruby Keeker. Faz de conta” (CC, p. 33)

Além de Chinita, diversos outros personagens apresentam ligações com aspectos musicais, embora num grau mais superficial, que não chega a caracterizar uma paisagem musical individual. A única exceção é Noel que, de todos os personagens de Caminhos cruzados, é aquele que possui a paisagem musical individual mais rica. Nesse sentido, Noel ocupa em Caminhos cruzados a mesma posição que Amaro ocupa em Clarissa: Noel catalisa a posição do artista no mundo numa linhagem que prossegue pela obra do escritor e encontra sua forma mais completa no Floriano Cambará de O arquipélago.

Tímido e recluso, Noel sonha em seu quarto, evitando o contato com o mundo exterior. Sua extrema timidez lhe causa desconforto na presença de todos, menos de Fernanda. A amiga lhe dá forças que não encontra em si mesmo e em sua família. Em seus momentos de reclusão, temos um rico retrato da paisagem musical de Noel através de suas reflexões, que contém uma notável amplitude: observações musicais de toda espécie, que vão desde pensamentos a respeito de compositores e suas obras, até notas, involuntárias ou não, a respeito de acústica e outras áreas afins.

Uma dessas passagens reflexivas de Noel é particularmente rica em observações musicais. Ao escutar um disco de Debussy num dia de chuva, seu pensamento vaga e chega a notáveis conclusões a respeito de questões que são importantes naquele momento histórico:

Um acorde mais forte apaga a visão. Noel fica atento à música. Por trás da neblina há um chiado permanente que lembra o coaxar longínquo de sapos. É um ruído que Debussy não escreveu mas que está ali no disco, como parte da música (...) Sons moles no quintal: o chape-chape da água da manga contra os canteiros de relva. Noel remergulha em seus pensamentos. Vê mentalmente a cabeça estranha de Debussy, que começa a se balançar de um lado para outro ao compasso da música (...) A melodia é um rio transparente que corre ao sol numa preguiça adormentadora (...) E de novo solta o pensamento. Era possível que Debussy tivesse uma voz áspera como a do jardineiro (...) Bem possível também que, como o jardineiro, não gostasse de tomar banho. Mas o Debussy verdadeiro ficou aqui nesta melodia que o disco prendeu. Tudo que era humano e mortal, que era resíduo, foi eliminado (menos o coral dos sapos) para ficar só na melodia de desenho puro, música de anjos, música de fadas (CC, p. 60).

Essa passagem do romance apresenta vários pontos de confluência com os questionamentos que norteavam os compositores de vanguarda no início dos anos trinta. Os adventos da Música Eletrônica e da Música Concreta provocaram uma série de reflexões a respeito do ruído como possibilidade expressiva e desde então os chamados sons não–musicais foram incorporados à música como um recurso importante. Muito dessa reflexão se deu a partir do surgimento de novas tecnologias, principalmente o rádio e o gramofone, que introduziam uma série de ruídos antes não existentes numa execução musical. Esses ruídos (estática, chiados, zunidos) passaram a interessar os compositores como recurso expressivo, e eles passaram a pesquisar possibilidades de dispor desses sons de alguma forma. Já em 1913, Debussy comentava:

Não será nosso dever encontrar meios sinfônicos de expressar nosso tempo, meios que evoquem o progresso, o arrojo e as vitórias dos dias modernos? O século do avião merece sua própria música (DEBUSSY apud GRIFFITHS, 1993, p. 97).

Embora Debussy não tentasse experimentar além dos limites de uma orquestra, vários compositores mais jovens que ele o fariam nos anos seguintes. Um desses compositores foi Edgar Varése (1883-1965), que estimulou a produção dos primeiros aparelhos eletrônicos que pudessem gerar sons não convencionais.

As reflexões de Noel estão profundamente relacionadas à revolução tecnológica e suas conseqüências. As mudanças que as invenções e aprimoramentos haviam trazido para os ouvintes são dignas de nota num momento

em que compositores de vanguarda de todo o mundo também se questionavam a respeito das novas possibilidades de se ouvir música:

E graças à vitrola - pensa Noel – eu a posso ouvir com o mínimo possível de interferência humana. Se estivesse no teatro, ouvindo agora uma grande orquestra executar esta mesma música, teria de ficar na presença de criaturas que tossem, pigarreiam, amassam papéis de balas, cheiram bem ou mal; teria de ver os músicos que suam e bufam e ficam vermelhos, um maestro que agita a cabeleira e faz gestos grotescos... No entanto este móvel de nogueira me dá a melodia quase pura. Um milagre do gênio de Edison combinado com o esforço de outros pequenos inventores anônimos, mais o talento comercial dos homens que fundaram a Victor Talking

Machine Co., mais o maestro Stokowsky e as muitas dezenas de músicos

que formam a Orquestra Sinfônica de Filadélfia, e ainda principalmente o sonho de Debussy, e o esforço de uma centena de operários anônimos, inclusive as abelhas que fornecem cera para os discos... Para ele tudo isto é um conto de fadas, uma obra de magia (CC, p. 61).

O espanto de Noel ante as novas tecnologias não esconde sua tendência para o isolamento, para a solidão, para uma introspecção que prepara o jovem que ele é para, guiado e estimulado por Fernanda, tomar as decisões fundamentais que irão nortear sua vida.

O aprofundamento das questões musicais e a variedade da paisagem sonora, tanto individual quanto da cidade de Porto Alegre, fazem de Caminhos cruzados um passo fundamental na carreira literária de Erico Veríssimo no que concerne à utilização da música em sua obra.