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1.5 Um lugar ao sol

1.5.1 Universos coletivos e particulares

Mesmo quando um personagem não tem seu mundo pessoal relacionado a um tipo específico de música, ele transita dentro de um universo musical

pertencente à coletividade da qual participa, ou da qual procura se excluir. O universo social dos bailes e festas, do carnaval, são momentos nos quais os personagens transitam por universos musicais independentemente de seus gostos pessoais. Nestas ocasiões, há uma grande comunhão social, onde diferentes universos pessoais se encontram.

Viu quatro caras pintadas de palhaço, com bocas rasgadas e narizes brancos de alvaiade. Eram os moços da mesa grande. Faziam algazarra, como um bando de papagaios. Um deles tocava violão. Outro repinicava um cavaquinho. Um terceiro esfregava um reco-reco. Sentado na janela, o mais assanhado de todos cantarolou uma canção e depois disse: - Batatal! Batatal! Vamos embora, todos juntos... O bando rompeu numa marcha carnavalesca (ULS, p. 248-249).

Dentro desse contexto festivo, há muitas vezes o choque de elementos contrários, onde vida e morte se encontram. O carnaval surge num momento particularmente conturbado na vida de Vasco, onde a contraposição morte-vida mais uma vez se mostra relacionada à música. A brutalidade do assassinato de Gervásio, amigo e companheiro de quarto de Vasco, gera uma busca desesperada por sensações ligadas à vida:

Vasco caminhava acompanhado pela sombra de seus mortos. Gervásio ia à frente, como o baliza do bloco dos espectros. Gesticulava e berrava e convidava todos para odiar (...) Vasco avistava as luzes do Cassino por entre as árvores. A música do jazz chegava-lhe amortecida aos ouvidos. Parou. Sentou-se num banco. Os mortos se acocoraram todos ao seu redor. Vasco começou a odiá-los. Só amava o fantasma alegre que cantava ao som do jazz, que apontava para o Cassino, que convidava ... (...) Entrou. Sentiu-se mais uma vez perdido na floresta. Não era, entretanto, aquele matagal cerrado, negro e macabro da noite do velório. Era uma floresta luminosa de contos de fadas, com pássaros de todas as cores, sol, muito sol, faiscações, perfumes, flores monstruosamente belas que só vicejam nos climas impossíveis. Ele seguia por entre os pares que dançavam. Recebia encontrões de todos os lados. Ia tonto. O jazz berrava. (...) O jazz tocava... Vasco via o mulato do saxofone, suado, com a cara reluzente, os olhos doidos, possuído do demônio do ritmo, gingando, tocando com os pulmões, com os olhos, com o corpo inteiro (ULS, p. 254-255).

Esse universo no qual Vasco se refugia constitui-se num universo musical coletivo, compartilhado por diferentes personagens, advindos dos mais diversos

estratos sociais. Enquanto grande parte dos personagens transita nesse universo musical coletivo, há personagens que se destacam pelo universo musical extremamente pessoal, onde a música ocupa um papel fundamental, onde as relações com músicos e compositores são marcantes, pelos mundos e relações que evocam. Os universos de Noel e Amaro são exemplares dentro dessas características.

O universo musical de Noel reflete o ambiente ambíguo, onde superproteção e opressão estão presentes em medidas iguais. A riqueza dos pais lhe dava conforto e acesso a discos, livros e a um mundo cultural que não está disponível de forma imediata para Fernanda, que teve de trabalhar e sustentar sua mãe e irmão. Na mesma medida em que a riqueza dá conforto, a opressão e descaso da mãe para com Noel provocam a sensação de desproteção, de hostilidade. Noel busca refúgio na arte, e a música se constitui no principal elemento de ligação com um mundo onírico, onde a hostilidade do mundo não encontra meios de se infiltrar. Em Um

lugar ao sol, Noel sente em certo momento que esse mundo já não lhe basta. A

presença de Fernanda, e mais tarde da filha, provocam a urgência de uma nova relação com a arte e o mundo.

(Noel) lembrou-se dos tempos de solteiro. Tinha o seu quarto, a sua vitrola, os seus discos, os seus livros, a sua intimidade. Sofria porque acabara o curso de direito e não achava jeito nem coragem para advogar. Sofria porque amava Fernanda, companheira de infância, e não tinha emprego com que sustentar uma casa (...) Achava consolo nos livros, que o afastavam cada vez mais da vida. Havia, porém, instantes em que nem os livros nem os prediletos músicos lhe davam paz, bem-estar, felicidade. Então ele procurava Fernanda. A presença dela tinha uma qualidade sedativa. Sempre tão animada, tão corajosa... Aquele otimismo era comunicativo (ULS, p. 213-214).

O universo musical de Noel guarda certa semelhança com o universo de Amaro, que apresenta todos os seus dilemas existenciais relacionados com a música. Também Amaro busca uma saída no mundo ideal da música. Apesar dessa semelhança, o corte com relação à sociedade é mais profundo. Amaro sofre pela perda do emprego e a conseqüente saída da pensão de Tia Zina, não tem mais condições de alugar o piano no qual compõe e precisa devolvê-lo. Além disso, lhe dói o fato de ter de se afastar de Clarissa, por quem se descobre apaixonado. A

saída da pensão provoca esse afastamento, e Amaro passa a espionar Clarissa nas manhãs em que ela toma o ônibus para ir lecionar. A princípio Amaro tenta manter intactos os seus sonhos, manter a mesma atmosfera da pensão onde morara anteriormente:

Amaro conseguira criar ali uma atmosfera onde pudessem reflorescer os seus sonhos, as suas esperanças frustradas. A máscara de Beethoven no tabique. Os livros na estante de madeira sem lustro (...) Tudo aquilo e a lembrança de Clarissa. E as suas músicas... E a sua tristeza (ULS, p. 357).

Mas as dificuldades econômicas o jogam nos braços de Doce, dona da pensão para a qual se muda. Dona Doce lhe causa repugnância, a princípio. Também aqui as diferenças sociais e culturais entre os dois são mediadas pela presença da música. Amaro, depois de ter sido seduzido pela mulata, procura fugir do que considera um ato sujo, buscando abrigo no mundo da música:

O que acontecera era incrível. Ainda sentia na boca o gosto dos beijos babados de Doce. Nojento! (...) Tinha de fugir a toda aquela sujeira... Pensou no seu poema sinfônico. A música dos violinos, entretanto, não conseguia desprender-se da terra. Doce a segurava com as mãos grossas e graxentas. Não havia libertação possível (ULS, p. 366).

Desde sua partida da pensão de Dona Zina, Amaro buscava desesperadamente abrigo e consolo na música. Tentava colocar em prática a composição de grandes obras, que, no entanto não lhe saíam, escapavam-lhe por entre os dedos. A dor provocada pela separação de Clarissa revolve-lhe as idéias. Nos seus pensamentos, Clarissa e música são uma coisa só:

Na rua sentiu-se envolvido pela luz morena da tarde. Pensou em Clarissa. Tudo que era belo, fresco, terno, suave lhe trazia à memória a imagem de Clarissa. E depois havia uma mistura mágica: a imagem se transformava em sons e então Amaro caía de cheio numa sinfonia, como num lago enorme, azul e transparente, duma fundura insondável... Ficava perdido. Estava agora compondo um grande poema sinfônico. (...) Ouvia os violinos desdobrando uma longa frase. Algo de aéreo. De extraterreno. Dando uma idéia de asa. De cousa suspensa no ar. Transparência de vidro. Graça matinal. Só os violinos. O resto da orquestra em silêncio. E Amaro ouvia a sua sinfonia. Era o poema da libertação. O homem fugindo da terra e da vida. Se ao menos pudesse realizar aquilo, já que fracassara em tudo o mais! O diabo era que as cousas que lhe pareciam geniais e duma beleza divina assim imaginadas, ele nunca as conseguia pôr na pauta musical. Só lhe saíam vulgaridades (ULS, p. 359).

O pensamento de Amaro não é original: a idéia de estabelecer um paralelo entre a música e a mulher amada encontra uma referência histórica na Sinfonia Fantástica, do compositor francês Hector Berlioz, obra fundamental do Romantismo musical, onde a amada aparece tematizada como uma idéia recorrente, uma idée

fixe, como Berlioz a chamou. Dessa forma, Amaro é apresentado como uma espécie

de Berlioz frustrado, que não logra terminar sua sinfonia.

Mas o assédio de Doce provoca uma reviravolta na vida de Amaro. Para ele, deixar-se seduzir por Doce constitui-se numa queda, uma queda nas aspirações, o abandono do que ele considera puro, belo. E no balanço mental de Amaro a música é um elemento primordial. A mulata não conseguiria compreender o seu mundo, os seus compositores e poetas. Note-se o traço indelével de racismo presente no pensamento de Amaro:

Como era que um homem de sensibilidade, que fazia música, que se ocupava com Stravinsky, com Ravel, com Debussy, Beethoven; um homem que lia Keats e Shelley no original; um homem, enfim, que tinha uma visão artística da vida, que tinha um olho fino para descobrir o que existia de belo e harmonioso no mundo – como era que esse homem estava amarrado a uma montanha de carne flácida e escura? (ULS, p. 408-409).

Mas o mundo que Doce lhe apresenta também é um mundo que tem suas seduções, apresenta relações não vislumbradas por Amaro. Se por um lado a relação é vista por Amaro como um sinal de sua decadência, por outro significa a possiblidade de voltar a compor, de ter seu piano de volta, de recuperar a faculdade de sonhar. Apesar de inculta, Doce é sensível ao mundo do amante, respeita sua

cultura, lhe reconhece o talento mesmo sem compreendê-lo inteiramente. Mas Amaro não consegue compreender a dedicação de Doce. O fato de viver às custas da mulata lhe provoca a sensação de decadência e um inevitável conflito interior, e ele se apega à música em seus momentos de desespero, música essa que é a ilustração mesma de seu desespero e desejo de fuga:

Ele saiu para a rua, desesperado. Caminhou sem destino. Procurou fugir da terra pensando em seu poema sinfônico. Na sua cabeça toda uma orquestra imaginária tocava desesperadamente. Os violinos queriam arrebatá-lo para o céu, para as regiões estratosféricas e onde não havia mulatas gordas, nem estômagos, nem cousas desagradáveis. E Amaro se deixava levar pelos violinos. Até que a fome, a sede ou o cansaço o chamavam de novo para a terra (ULS, p. 410).